No final da Guerra de Espanha (1936-1939) vários grupos de refugiados portugueses atravessaram os Pirinéus para França, onde foram instalados em campos de concentração
Um texto de Francisco Galope
A aviação franquista martiriza a capital da Catalunha com raides aéreos diários. Atraiçoada pela pretensa neutralidade das democracias ocidentais e pelo abandono da União Soviética, a República já tem pouca resistência a opor à ofensiva, lançada há pouco mais de um mês pelas forças «nacionalistas» apoiadas pela Alemanha nazi e pela Itália fascista.
O silvar das bombas a cortarem o ar e o troar noturno da artilharia são parte da rotina quotidiana, ao ponto de muita gente já nem se dar ao trabalho de procurar os abrigos subterrâneos ao ouvir as sirenes antiaéreas.
Nessa sexta-feira, 22 de janeiro de 1939, o português Jaime Cortesão sente a casa a abanar com o estrondo dos bombardeamentos. Exilado em Espanha desde a implantação da república, em 1931, o médico, escritor, político, historiador e opositor ao salazarismo, vê as colunas de fumo a elevarem-se sobre o centro da cidade quando sai para se encontrar com Jaime de Morais, destacado chefe político e militar que tem combatido pela República. Ambos vão tomar conhecimento de que Barcelona está condenada e tem de ser evacuada.
«Dois dias ainda nos apegámos com aferro à esperança duma resistência desesperada nas últimas linhas de defesa natural», escreverá Cortesão no seu caderno, num trecho autobiográfico intitulado No Desfecho da Guerra de Espanha (publicado, em 1962, por Óscar Lopes, no livro Jaime Cortesão – a Obra e o Homem).
Foram dois dias de agitado desespero.
Com a rutura da Frente Popular Portuguesa, a derrota iminente da república espanhola e a desmobilização dos combatentes estrangeiros, não há, para eles, mais nada a fazer em Espanha. O fim do que resta do regime democrático em Espanha significa também a morte do Plano Lusitânia (Plano L), para derrubar Salazar recorrendo a antifascistas portugueses enrijecidos na Guerra de Espanha (ver Visão História n.º 18).
É a custo que conseguem encontrar dois carros para tirarem as respetivas famílias (11 pessoas) de Barcelona, além de uma camioneta para as bagagens. A coberto da noite de segunda-feira põem-se a caminho de Centellas, onde vivem filhos de Jaime Morais e está aquartelado um pequeno contingente de tropas combatentes portuguesas (outro, de entre 200 a 300 pessoas, encontra-se perto, em San Juan de las Abadesas).
Em Centellas, vários portugueses querem associar-se ao grupo para atravessar os Pirinéus. Entre eles, os oficiais Cláudio Vilanova e Pedro Batista Rocha. Este último, militante do PCP, major de artilharia no exército republicano espanhol, descreve nas suas memórias o caos das estradas pejadas de gente em fuga. No meio de um tempo frio e borrascoso circulam camiões apinhados de mulheres, crianças e velhos. Há gente a cavalo, de burro ou a pé, transportando parcos haveres e feridos levados em macas.
«Nalgumas localidades improvisaram-se comedouros públicos que distribuíam refeições àquele afluxo de refugiados que apareciam de todo o lado», conta Rocha no manuscrito A Derrota, só parcialmente reproduzido no seu livro Escrito com Paixão (Editorial Caminho) – o original datilografado está à guarda do Prof. João Arsénio Nunes, do ISCTE, que gentilmente nos proporcionou o acesso a essa documentação.
Não tardará e começarão a faltar os bens alimentares. Quem os tem, guarda-os para si. Até o combustível escasseia, e os carros são abandonados na berma da estrada quando se esvaziam os depósitos.
“A ESPANHA SERIA FASCISTA…”
Em San Juan recebem, no dia 26, a notícia da queda de Barcelona. Comandados pelo major Inácio Anta, os portugueses ali aquartelados decidem também partir em direção à fronteira francesa. Contudo, o pequeno grupo vindo de Centellas opta por se manter autónomo. Dispõe de reservas de combustível e de mantimentos, bem como de armas para defesa. Seguem para Camprodom.
O governo republicano, que entretanto se retirou de Barcelona para Figueras, dera ordens para se impedir, até ao dia 28, a passagem de militares e civis pela fronteira, que do lado francês se mantém fechada aos refugiados – no total cerca de meio milhão.
Cortesão e Morais vão a Figueras dialogar com o governo e o Estado-Maior, e, invocando a condição de estrangeiros, conseguem obter as autorizações necessárias para o grupo que já abrange 50 pessoas. Com os papéis carimbados, fazem-se ao caminho. Mas em Mollo, a caravana é mandada parar e regressar a Camprodom. O tempo não ajuda aos ânimos, como testemunhou Pedro Batista Rocha:
«As más notícias, a sensação de derrota, até o céu cinzento como que a vestir crepes pelo desastre, contribuíram para o estado geral de acabrunhamento que cada um tentava disfarçar o melhor que podia. A Espanha seria fascista…»
A chuva miúda não parece querer parar. O frio não abranda. Mas, após um compasso de espera, podem seguir viagem rumo a França, pelo vale d’Arès, guiados por um pouco esclarecedor mapa Michelin. Muita bagagem já foi deixadas para trás. O camião transporta agora pessoas que se tapam o melhor que podem com capotes rapidamente encharcados. A tensão nervosa é grande. Há mulheres, crianças chorosas e velhos fatigados. Todos a tremerem de frio.
A estrada piora à medida que serpenteia pelos Pirinéus. Ao fundo das ribanceiras, veem-se carros que, depois de ficarem sem gasolina, foram para ali atirados. Na berma, há malas abandonadas. Roupas, estojos e até máquinas de escrever, que pesam para quem tem quilómetros a pé pela frente.
A chuva converte-se em neve, a visibilidade é quase nula e os carros começam a derrapar por causa do gelo na estrada. As crianças aconchegam-se às mães e a mulher de Jaime de Morais desmaia. A caravana imobiliza-se. Torna-se impossível continuar. Um grupo de homens resolve, então, fazer um reconhecimento da zona e descobre, ali perto, uma maisa (casa rural catalã), onde o grupo é acolhido. Trata-se de uma grande propriedade já repleta de outros grupos de refugiados.
«Éramos cinquenta náufragos escorrendo água, tomados de aflição e desespero», relatará Jaime Cortesão.
Ali ficam durante alguns dias. O grupo organiza-se, alimenta-se das reservas que leva e compra alimentos aos donos da propriedade que aproveitam para «meter a unha».
«Quase toda a rapaziada participava na preparação da comida», conta Rocha. E Judith Cortesão (filha de Jaime), vestida com umas calças da tropa, revela-se uma camarada à altura, carregando lenha, acendendo o lume ou descascando batatas. Como há falta de talheres e pratos, come-se à vez. Contudo, no meio da amargura, não se deixaram de abrir duas garrafas de vinho do Porto para celebrar o 31 de Janeiro, data do primeiro levantamento revolucionário republicano, em 1891.
No final de janeiro e início de fevereiro de 1939 cerca de meio milhão de pessoas atravessou a fronteira entre Espanha e França, entre elas mais de duas centenas de portugueses que por serem opositores do regime de Salazar não podiam voltar a Portugal
Os preparativos de partida iniciam-se numa manhã de sol esplendoroso e a caravana põe-se novamente em marcha. Mas, quando está a cerca de um quilómetro da fronteira, os carros têm de ser abandonados por causa da imensa camada de neve que obstrui a precária estrada de montanha. Toda a gente tem de seguir a pé, incluindo crianças, doentes e, segundo Cortesão, uma mulher grávida de nove meses.
O problema das bagagens é parcialmente resolvido graças ao providencial aparecimento de um carroceiro catalão que andava por perto e que, depois de muita negociação e algumas ameaças por parte dos portugueses, aluga o seu carro de bois.
A carroça afigura-se providencial. E Cortesão consegue empilhar nela algumas das caixas de arquivo que trouxera de Barcelona. Carregada, a «desengonçada caranguejola» põe-se a caminho, montanha abaixo, encabeçando o cortejo de refugiados portugueses. Demasiado carregada, segue ladeada por alguns homens que amparam a pirâmide oscilante de bagagens. Cortesão testemunhará que não foi fácil fazer passar a carroça «por cima da neve e por entre o dédalo de veículos abandonados».
É perto das duas da tarde do dia 3 de Fevereiro quando passam, finalmente, a fronteira – um isolado posto de carabineiros espanhóis. A localidade francesa mais próxima situa-se ainda a uns 13 quilómetros, com a estrada a descer abruptamente dos 1 700 para os 800 metros de altitude e a converter-se numa «estreita vereda total e espessamente coberta de neve».
Os sinais do caos e do pânico da fuga são cada vez mais. Uma vez mais, carros, roupas, peças de calçado, livros papéis e alimentos abandonados amontoam-se no caminho ou no declive das ravinas. A descida faz-se depressa pela vereda inclinadíssima, ladeada pela borda de uma ravina abrupta. Num ponto onde o caminho é muito estreito, a terra esboroa-se sob o peso da roda direita da carroça que se curva, despenhando-se com toda a carga.
Jaime Coretsão sente um aperto no coração. Lá em baixo ficarão enterrados sob a neve os seus haveres. Mas o que mais lhe dói são os ficheiros em que acumulara vinte anos de trabalho de investigação. Então com 54 anos e cansado, ainda tenta descer para salvar alguma coisa, mas resvala, rolando pelo declive e magoando-se.
“Estrangeiros indesejáveis”
É noite quando os refugiados avistam uma fila de gendarmes franceses a cortarem a estrada. Pouco depois de atravessarem a fronteira, o grupo separa-se. Na primeira localidade que encontram, Prats-de-Mollo os portugueses são recebidos por organizações humanitárias com leite quente, pão e chocolates. Mas o acolhimento passou por várias fases, as restantes menos simpáticas.
Vários foram os grupos que, à semelhança do de Cortesão e Morais, atravessaram nesses dias frios a fronteira franco-espanhola.
Infiltrado entre os exilados portugueses, um agente da PVDE (precursora da PIDE) com o nome de código «homem de Barcelona», também fez a travessia dos Pirinéus para reportar a Lisboa, no dia 12 de fevereiro: «Por vários meios pude saber que entre os internacionais vinham 176 portugueses misturados com os espanhóis.»
A esmagadora maioria dos refugiados estaria indocumentada. «Chegados a França, os que tinham passaportes, verdadeiros ou emitidos com outros nomes pelos consulados da Argentina ou México, puderam escapar, ainda que com dificuldade ao internamento nos campos de concentração», lembra o historiador César de Oliveira, no seu livro Salazar e a Guerra Civil de Espanha (Edições «O Jornal»). Era o caso de Jaime Cortesão, Jaime de Morais Emídio Guerreiro (mais tarde fundador do PPD/PSD) e Utra Machado, entre outros.
Virada politicamente à direita, a França tomou medidas contra o esperado afluxo do que dizia serem «estrangeiros indesejáveis» – um eufemismo para «vermelhos», logo tidos como perigosos, tendo criado vários campos de internamento.
A maioria dos refugiados, combatentes e não combatentes, é inicialmente encaminhada para o campo de concentração de Argelés-sur-Mer. Depois haverá uma distribuição pelos de Gurs, Saint Cyprien, Barcaré, Vernet e Var-Draugignan.
Pedro Batista Rocha conhecerá os de Argelés-sur-Mer, Gurs e Vernet, guardados por gendarmes senegaleses que praticavam, sobretudo numa fase inicial, todo o tipo de abusos sobre os prisioneiros.
O militante do PCP é transferido, juntamente com outros portugueses, para Argelés, poucos dias depois de chegar a França. A situação nos primeiros dias é dramática, contará. Chegam de noite, integrados numa fila interminável de gente.
«Atravessámos as ruas duma localidade e fomos encaminhados para os lados da praia, onde estavam a ser concentrados os refugiados. Avistámos inúmeras fogueiras que se estendiam por vários quilómetros.»
Na praia, há vedações de arame farpado guardadas por senegaleses e spahis (cavalaria ligeira do norte de África), soldados do exército e gendarmes.
À volta de cada fogueira, vislumbram-se dezenas de vultos acocorados.
«Encontrávamo-nos num talhão delimitado por uma dupla barreira de arame farpado e, vencidos pela fadiga, parámos.»
Sem lenha para fazerem fogo, cansados e com fome, frio e sono, deitaram-se na areia ao ar livre, envoltos numa neblina rasteira e húmida. No dia seguinte, procurariam as barracas. Para melhor se protegerem, deitam-se todos do mesmo lado, aconchegados uns contra os outros, cobertos por um capote.
«De manhã, quando acordámos, devido à geada, o capote estava duro como papelão. A nossa roupa húmida. Os pés frigidíssimos. A areia à nossa volta estava coberta de uma espessa camada de orvalho.»
O abastecimento é um problema. Falta tudo e passa-se fome ao ponto de se abaterem os animais que acompanham alguns desde Espanha: cavalos, cães e burros servem de repasto aos famintos. A gordura é guardada para «adubar» sopas ou serve de combustível a latas de conserva convertidas em lamparinas com as torcidas feitas a partir de fios de cobertor; dos ossos fazem-se as estacas para fixar toldos abarracados. Tudo se aproveita, desde as crinas às peles de animais, após uma curta curtimenta, aos restos de automóveis desmantelados.
Os campos organizam-se lentamente. E, dentro deles, os prisioneiros por correntes políticas, ocupando o tempo com atividades desportivas, culturais e de formação e até estudando. Num dos campos, o núcleo comunista português chega a editar um boletim de quatro páginas.
Os combatentes internacionais de países democráticos começam a ser repatriados. Alguns conseguem emigrar para a União Soviética, Cuba, México e Argentina. Para os originários de ditaduras, como Portugal, Alemanha e Itália, o repatriamento era sinónimo de prisão e tortura. E estes são usados como mão de obra barata na agricultura francesa. Com o deflagrar da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, são chamados a voluntariarem-se para a Legião Estrangeira ou a participarem em brigadas de trabalho.
A invasão da França pela Alemanha, no ano seguinte, vai apanhar vários portugueses ainda nos campos. Alguns são aliciados para trabalhar na Alemanha, entre eles Pedro Batista da Rocha. Outros, como o comunista Júlio Mateus Farinha e o anarquista José Rodrigues Reboredo, optaram por regressar a Portugal, com tudo o que isso implicava. Nestes dois casos, o campo de concentração da PVDE no Tarrafal, Cabo Verde.
E houve quem tivesse tido mais azar e fosse parar aos campos de concentração alemães. O anarquista José Agostinho das Neves foi deportado para Dachau, em 1944, sendo libertado no ano seguinte pelas tropas norte-americanas. O major Inácio Anta, que comandava o contingente português em San Juan de las Abadesas, seria transferido, em janeiro de 1943, para Sachsenhausen, onde morreria em fevereiro de 1945, dois meses antes da libertação desse campo pelos soviéticos.
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