domingo, 29 de setembro de 2013












II
A APRENDIZAGEM
ENTRE O HEREDITÁRIO E O ADQUIRIDO

«Uns dizem: por amor dos outros, ninguém se desvie do seu caminho, do caminho do seu interesse. Para quê? O homem é o produto fatal da herança e do meio. Tal pai, tal filho. Chega-te aos bons, serás um deles; chega-te aos maus, serás pior do que eles. Diz-me com quem andas, dir-te-ei as manhãs que tens. E estes apotegmas populares, vários sábios pretendem corroborá-los com as suas observações.»

«Nesta teoria, o carácter de cada um tinge-se indelevelmente com as cores do sangue dos seus progenitores e do céu da sua pátria. Dos que a defendem, uns atribuem tudo à herança, outros dão imensa importância ao meio, e há ainda os que, mais judiciosamente, combinam os dois factores na força inelutável da evolução.
O homem evolve fatalmente. Não pretenda ninguém intervir no seu desenvolvimento, que o não altera, e, quando muito, só vingará perturbá-lo temerariamente. Seria inútil, senão até indiscreto e nocivo. E nem temos motivo para o deplorar, porque sobre os seus mesmos escombros a evolução ergue cada vez mais grandioso o edifício do progresso. O universo melhora por si.
Está claro que este determinismo esquece que, além da herança e do meio, lia o próprio homem, que é também uma força, e esquece o professor, que é ao mesmo tempo um coeficiente poderoso do passado e do presente, um elemento considerável não só do meio, porque a herança é mais do que simplesmente uma herança orgânica. O professor é a força externa organizadora de todas essas influências que pesam sobre a liberdade humana, é ele quem a dirige na sua faina de consolidar as boas, extirpando conjuntamente as que lhe sejam perniciosas.»

«O ensino é uma assistência, uma socialização; e, por isso, também o não querem todos os adversários do socialismo, todos os individualistas.
Assim como os deterministas são os fanáticos da herança e do meio, da evolução, os individualistas são os fanáticos da personalidade humana, da educação pessoal, do auto-didactismo, da self-instruction

«Para os fatalistas, o esforço de cada homem é infinitésimo no turbilhão do universo; para os individualistas, esse esforço, só de per si, é capaz de alevantar cada homem ao nível, à flor da civilização. Uns e outros abandonam-no na luta pela existência. Assistir-lhe afigura-se-lhes quase uma profanação, tanto divinizam as forças do destino ou da vontade.
Proclamando esta doutrina, em Portugal, cita-se logo Alexandre Herculano e mais modernamente Oliveira Martins, que pouco ou nada deveram às aulas. Podiam citar-se ainda outros exemplos, e, entre eles, o da Sr.ª D.ª Maria Amália Vaz de Carvalho. Mas, sem falar das influências pessoais, que de perto contribuíram para a formação destas poderosas individualidades, quem não sabe do amor, da paixão absorvente de todas elas pelos livros, isto é, da sua intimidade com os grandes mestres do espírito humano?
Os Robinsons [Crusoés] não se compreendem sem uma sólida armadura, que a ninguém é lícito alcançar sem o ensino. Alguns individualistas temem tanto o ensino, que desejariam segregar o homem de toda a convivência social. Ensino ou governo, é sempre atrofiante e corrosivo, enfraquece e despedaça as molas da alma humana; e, na sociedade, o homem corre sempre o risco de ser dirigido, o que vale o mesmo que dizer violentado. A grande e salutar educação é unicamente a das reacções naturais. Para estes o homem nasce bom e é boa a natureza, só é má a sociedade. Que acumulação de absurdos! Se todos os homens nascessem bons, como é que o trato de qualquer deles com os outros, igualmente bons, o depravaria? Donde lhe viria o mal, se a natureza que o cerca, fosse inalteravelmente, eternamente boa?
E condena-se a intervenção do ensino para se concluir, por uma forma bárbara de intervenção, o isolamento social. É, em vez da assistência, do amor, a tortura celular. Lastimosamente, temos já, de facto, esse regime entre nós, embora só como regime penal; é a penitenciária, aplicada aos que, decaídos pelos seus crimes, mais do que ninguém necessitariam de todo o magnetismo da fraternidade, da bondade, para de novo se levantarem à dignidade humana.»

«Os fanáticos da personalidade humana ainda fazem pior: lançam o indivíduo nas lutas da existência, lutas naturais e sociais, e deixam-no! Esse abandono é mais que desastroso, é um perigo para a moralidade.»

«As reacções naturais não só não basta para formar o homem, mas não encerram, em si, bálsamo e conforto para todas as feridas que rasgam.
O desastre ensina? Efectivamente quase parece necessário sofrê-lo para lhe perder o medo. Mas já basta o desastre inseparável de todo aprendizado e estudo, de todo ensaio; não o agravemos. A função do mestre não é suprimi-lo, que seria quimérico, mas atenuá-lo, mas torná-lo o mais suportável e o menos danoso possível.»

«Há, sem dúvida, uma moral natural, uma disciplina das leis naturais, da necessidade.
Quem não passou necessidades, não formou o seu carácter. A necessidade é a primeira educadora da vontade. É, como se diz, a mãe de todas as indústrias. […] Ela tonifica a vontade, ela desenvolve pelas suas resistências o calor que também é necessário à vida activa do espírito. É, por isso, que as crianças pobres têm quase sempre mais esperteza e decisão do que as crianças ricas. E não serei eu que maldiga deste aprendizado […].»

«Mas não se fique por aí! Como os nossos antepassados, procuremos uma inspiração superior, um ideal. As necessidades individuais, egoístas, impõem-se primeiro; mas, além da disciplina das leis naturais, há outra mais alta, a das leis morais, a das obrigações altruístas. Esta é que é verdadeiramente a disciplina moral.
Não se perpetue ninguém no regime das necessidades; e, sobretudo, não se exagerem, não se encrueçam! Que são os selvagens, que são muitos degenerados, senão almas penadas, almas amarradas ao poste do obscurantismo pelas necessidades, pelas fatalidades orgânicas? Tentemos tudo por desatá-los quanto possível dessas prisões.»

«A moral das reacções naturais é a sagração do fatalismo, da força e do acaso. Não desaparece o governo, mas o homem decai para [ficar] sob o governo da força bruta e da superstição.»

«Não basta a luta natural pela existência para formar o homem civilizado. As suas consequências podem mesmo ser ruinosas à felicidade e à moral. Todos precisam de que os inicie em meio das reacções naturais, tão aleatórias! A acção esclarecida e amorável do ensino. Ponha, pois, cada qual ao serviço dos outros a sua instrução e autoridade, não só para que eles tropecem e caiam o menos possível e se não molestem, mas ainda para que do choque com as forças físicas não saia também mal ferida a sua emotividade e a sua razão, e, com elas, a sua dignidade.
Não! – contravém o individualismo, sem se dar por vencido – não é isso! Não basta, à educação, a luta natural, porque é necessária ao mesmo tempo a luta social. O regime da necessidade decerto que é insuficiente, porque se faz mister também o da liberdade, a livre disciplina das energias individuais no seu vivo e fecundo recontro. Na luta social a alma humana acabará, por si mesma, de se temperar virilmente. Nada de intervirem na educação! Laisser faire, laiesez passer. Até onde pode chegar o culto fanático da personalidade! É, em todo o desabrimento da sua intratável rispidez, pretender, como de nós dizia Voltaire, curar os danos do terramoto[de Lisboa, 1755] com os suplícios do auto de fé [a que foi sujeito o padre Malagrida]. Imaginarão tão descaroados individualistas que vivemos num mundo celestial, todo perfeições?
Leibniz, ao sustentar que este mundo era o melhor dos mundos possível, não negava a existência do mal; e, desde a sua mocidade, que, para o debelar, ele apelou para o ensino, cuja eficácia pôs em relevo, parodiando Arquimedes na célebre asserção: Dai-me o ensino e eu vos mudarei a face da Europa

«A luta social não é um jogo festivo de livres iniciativas. Através das harmonias da civilização – que é doce escutar como Platão escutava a música das esferas – quem é que não ouve distintamente os soluços e as imprecações das vítimas das contenções humanas? A liberdade é a condição de todo o bem, e só ela o realiza, mas a que custo! Por isso ela aperfeiçoa e acelera incessantemente o seu aprendizado por meio do ensino.»

«Reconhecendo a lastimosa realidade da luta social, afirmamos com isso a sua necessidade, a sua fatalidade? A luta pela vida rege também a nossa espécie? Será verdadeiro o aforismo de Hobbes, adoptado por Malthus: Homo homini lúpus? O homem terá necessidade de lutar com o homem, como tem a [necessidade] de comer e de exercitar os seus músculos? Terá de educar-se na luta para a luta? A la guerre comme à la guerre?
O que é necessário ou obrigatório é a lei física ou moral, e não a desordem. A luta social é comparável à fome, ao calafrio. Como estas perturbações, que revelam a necessidade das leis orgânicas a que todos temos de obedecer para conservar a vida, ela denuncia uma infracção à lei moral. E, assim como a facilidade dos meios de existência, regulados pela higiene, até da negra fome faz um grato apetite, assim também o progresso da humanidade, vai fazendo com que a ferina luta social se transforme numa fraterna emulação, ou, quando muito, numa passageira desinteligência, inofensiva […].»

«O homem tem de educar-se para a sociabilidade, para a cooperação, para a virtude, não para a luta. Mas, se a luta social não é uma necessidade essencial, permanente, da natureza humana, não será, contudo, uma necessidade transitória, uma condição impreterível de aperfeiçoamento? Para nos formarmos, não teremos de passar pela sua escola? Numa palavra, não será educativa? E, portanto, subtrair-lhe alguém pelo regime do ensino não será um mal?
Constituirá a luta social o preparatório indispensável para alcançarmos a virtude?
A este respeito, pronunciam-se, afirmativamente, três opiniões, duas dos que julgam igualmente necessário deixar o homem fazer o mal, e uma dos que julgam necessário deixá-lo, senão fazer o mal, ao menos transigir com ele.
Há quem pense que o homem, para ser bom, necessita de cansar o seu instinto de combatividade, de saciar a sua animalidade, ou, pelo menos, de lhe dar uma satisfação.

Felizmente que a torpe doutrina não se aplica à mulher!
Os que a seguem, procedem como os donos das confeitarias, que deixam os pequenos [empregados], à entrada para o seu serviço, comer tanto doce, que o fiquem enjoando para sempre. Esperam que o vício caia de maduro e se desfaça de podre.
Mas será pela saciedade que o homem perca o gosto ao vício? Não. O efeito da saciedade não é a temperança, é o tédio, a irritabilidade, a doença física e moral; [não] será o cansaço do vício, mas é com certeza a extinção da alma e da vida.»

«As curiosidades mórbidas não são curiosidades, instigações intelectuais, mas apetites, a que a sã razão não deve ceder. Nessa ginástica lhe cumpre logo enrijar-se e aguerrir-se contra o mal. Ademais o vício está tão perto da virtude, que, aos nossos mínimos desmandos, temos de sobejo infelizmente ocasiões de o irmos conhecendo e imaginando por nós mesmos, sem precisarmos de o cometer propositalmente e de nos afundar nele para não virmos alguma vez a cair nele por ignorância.»

«O vício não se corrige por si mesmo. É preciso preveni-lo, reprimi-lo, sobretudo, preveni-lo. Os grandes meios são os morais.»

«Há também quem entenda necessário entregar o homem à luta social para que o seu vício encontre os vícios dos mais e se modere.
Deixem os rapazes quebrar a cabeça. Deixá-los fazer a experiência do mal. Ao tempo, é que o fruto se sazona: deixá-los curar-se das suas verduras. São depois os melhores.
Inspiram-se no mesmo princípio os que dizem que todos precisam de ter sido republicanos em rapazes para darem depois bons monárquicos. A verdura, aqui, é o republicanismo.
Para estes a luta social é uma espécie de purgatório, de cadinho ardente, por cujo fogo tem de passar as paixões para que a virtude se acendre. O vício, fazendo erupção, até limpa.
Contam com as violências da sociedade para a educação pessoal. O homem há-de refrear os seus arrebatamentos, porque lhe pagam o mal com o mal. Do choque dos vícios é que ressalta para as almas a centelha da virtude.
Nesta teoria não se faz o mal, unicamente porque os outros o não deixam fazer. E, quando deixarem? Quando quem se desmande, for o mais forte, o mais inteligente? É a exploração de todos os fracos, da mulher, da criança, do povo, de todos os que não possam ou não saibam rebater o mal.
É por isso que tantos homens de talento ou de elevada hierarquia julgam que tudo lhes é permitido.
Há ainda a opinião dos que declaram necessário que o homem se lance na luta social para alcançar a virtude, não propriamente fazendo o aprendizado do mal, mas aprendendo a tratar, a comprazer com ele.
Para poder exercitar o bem, não há remédio senão fazer a boca doce aos maus, captar o seu concurso, domesticá-los. É, associando-nos primeiro com eles, servindo-os, que depois os podemos ter do nosso lado.»

«Se o choque das energias pessoais, a luta social, não gera sempre virtude, clamam os individualistas, é lastimoso, mas que remédio, pois doutro modo não há progresso possível! Sacrifiquem-se vidas e almas, que é para o bem geral.»
«O ensino, pretendendo alhear o indivíduo à luta de homem para homem, o que faz, é desarmá-lo e estorvar a marcha ascentente da humanidade. A luta é a lei da perfectibilidade. Toda a assistência social não só se frustra de encontro a esta lei, mas é mesmo atentatória dela.
A ensinar-se, ensine-se a luta social.»

«Será assim? Afirmá-lo-á a história? […] não. […] As ciências físico-químicas demonstram a conversão de todas as forças e, portanto, a sua unidade e solidariedade […]. A biologia demonstra a transformação das espécies, isto é, também a sua unidade e solidariedade […], é o próprio autor da teoria da unidade das espécies, que vem declarar-nos que animais e plantas só se transformam e aperfeiçoam no rude combate pela existência.
A psicologia demonstra a unidade e solidariedade de todas as faculdades e de todas as suas criações […]; A sociologia demonstra a solidariedade moral do homem, os seus deveres de cooperação e assistência, o nosso século é o século em que mais intimamente se comunicam indivíduos, classes, povos e nações.»

«Os grandes conflitos travam-se principalmente na natureza inorgânica; e, contudo, aí mesmo à revolucionária teoria das catástrofes se opõe hoje a teoria da evolução, que explica a história da terra pela acção lentamente acumulada das causas actuais e, aí mesmo, a mais pura expressão da solidariedade mineral, o cristal, se mostra incompatível com uma incessante agitação.»

«Na sociedade a luta tende a extinguir-se. […] E a escola, o ensino, vai por toda a parte enlaçando as almas.»
«A conclusão a tirar da magnitude das influências da herança e do meio, do poderio da evo1ução, é, reconhecendo-as, que o ensino se torna, por isso mesmo, mais necessário e instante, porque tem de travar a luta com várias delas; é, reconhecendo as dificuldades da luta, que, sem embargo, a vitória do ensino, do mestre, é certa, pois que dessas influências as mais fortes, as eternas, que são as boas, estão do seu lado, e as que ele tem de combater, são as que pela sua própria natureza hóstil, aberrante, anormal, estão destinadas a extinguir-se.
O mundo vai pertencendo cada vez mais ao bem. Mas não imaginemos nunca os nossos discípulos, os nossos filhos, educados, só porque calçam luvas e botas de verniz.»

“Conferências de Pedagogia. Notas”, in Universidade de Coimbra: curso de pedagogia: notas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1900; tb. “Conferencias de Pedagogia: notas”, in A Universidade de Coimbra, 2.ª ed., Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.












sábado, 28 de setembro de 2013



Recordar Republicanos!
Adriano Mendes de Vasconcelos e 
o "Habeas Corpus"












Do livro "As Constituintes de 1911 e os seus  Deputados"




 









Correspondência enviada por Adriano Mendes de Vasconcelos para Bernardino Machado ( Do espólio de Bernardino Machado - Casa Comum - Fundação Mário Soares)
























sexta-feira, 27 de setembro de 2013





Exposição "Raul Rêgo (1913-2002). A Vida num Percurso na Cidade…"

Setembro 25, 2013
No centenário do nascimento de Raul Rêgo, a Câmara Municipal de Lisboa lembra o homem e a marca que deixou, tornando presentes as ideias por que lutou e as causas que defendeu. Figura que marcou o nosso tempo, dando um relevante contributo ao advento e consolidação da nossa democracia. 
5 outubro a 31 dezembro | 2ªf.-6ªf. | 10h00-19h00 | Galeria de Exposições
Entrada livre
Local:  Paços do Concelho de Lisboa










 







quinta-feira, 26 de setembro de 2013















I
O ENSINO E A SUA IMPORTÂNCIA


SABER É PODER

«Saber é poder; por isso só são fortes as nações instruídas. A ignorância, eis a causa de todas as misérias: dos embaraços financeiros, da penúria económica, do amolecimento de costumes. A ignorância para tudo empobrece o homem: torna-o fraco operário, incapaz de sustentar com vantagem ou sequer com igualdade a luta da concorrência; torna-o mau cidadão, que regateia ao Estado as suas dívidas de sangue e de dinheiro; finalmente, arranca-lhe uma a uma as virtudes morais com que os povos fraternizam na coesão de uma mesma família. Toda a nação doente é ver que é uma nação ignorante; e não existe terapêutica eficaz, que não disfarce apenas a moléstia, que a cure de raiz, nenhuma senão a instrução.
Porque é que o programa político da nossa regeneração material principalmente bem merece os aplausos públicos? Porque, ao passo que foi abrindo o caminho dos mercados aos géneros de cada região, ao mesmo passo tem aproximado os indivíduos mais distantes; e desta vida em comum formou-se uma escola de mútua aprendizagem.»

“A Sociedade de Instrução do Porto”, In O Ensino, Coimbra, Typographia França Amado, 1898; tb. in Affirmações Publicas, 1882-1886, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1888; tb. in Homenagens, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1902.

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«Aqui me chegou às mãos o seu segundo artigo – O Ideal e a Política.
Não sei o que se possa dizer-lhe da observação, por onde começa, que muita gente prescinde do saber e até parece que se dá bem com isso. A pobreza do espírito é uma bem-aventurança, neste e no outro mundo, mas para quem se coloque num ponto de vista que não é o seu.
Não penso que a economia do corpo deva preceder a do espírito. Se não pode! A recíproca é que é a proposição verdadeira. Aquela é, como diz, a ordem natural, mas só esta é a ordem social. As sociedades não se eximem, evidentemente, é necessidade natural de comer, mas têm que satisfazê-la pela sua indústria, pelo saber. Não há outro meio, nem melhor. É tão poderoso, que se vai tornando cada dia mais difícil computar todas as riquezas que devemos ao génio do homem, tal a rapidez com que as descobertas e os inventos se sucedem!
A instrução, tinha-lhe eu escrito, é um capital, o único que está em nós aumentar indefinidamente; mas os capitais, adverte o meu amigo, sem matéria-prima sobre que operem, não dão juro. De acordo! Simplesmente a instrução, ao tempo que ministra um capital, instrumento de trabalho, desenvolvendo as faculdades produtoras do homem, dota-o com conhecimentos, que são a matéria-prima sobre que opera aquele capital. Não se referia no seu artigo a esta, mas às matérias-primas naturais? Não conheço meio de as criar e só a ciência é capaz de as descobrir ou produzir. A sua frase, o revólver do capital, a instrução, num vazio moral e crematístico, não representa uma realidade, porque é como se alguém aventasse que se pode instruir, instruir às direitas, sem com isso suscitar uma melhor aptidão, uma disposição maior para praticar actos úteis e bons. Os factos como os das greves e do anarquismo hodierno no meio da crise industrial da Europa, só a instrução os poderá remediar; só ela dilucidará a nebulose que um saber incompleto criou em torno das inteligências proletárias […]
A asserção, o catecismo vale pouco hoje em si e vale nada ensinado pelo barbeiro da aldeia, à parte o seu excessivo realismo, enjeita apenas um certo ensino, não pretenderá concluir contra ambos os ensinos, dogmático e leigo. A consequência legitima, pelo contrário, [é] a necessidade de reforçar os estudos leigos.
A instrução não é tal hoje em dia fatalmente exterior, formalística. Fatalmente! Mas seria esquecer a acção renovadora produzida no ensino por uma plêiade de ilustres pedagogos, seria esquecer os frutos que ainda entre nós se têm colhido dos esforços empregados para dar vida e animação à escola!
Falta-nos, é certo, nestes nossos tempos de transição indecisa, a fé das idades antigas; mas não desapareceu a fé, não é exacto que não exista base para a educação moral do homem, e que somente num futuro, mais ou menos remoto, o racionalismo e várias outras coisas virão a constituí-la. A base da educação é hoje o que foi e será sempre, constituem-na as verdades morais, que o tempo acrescenta, porque a moral, como toda a ciência, está em perpétua elaboração, mas que ele não altera. Diga-me que o desenvolvimento da moralidade é difícil e lento, mas não o negue […]
Os embaraços económicos das nações ocidentais, cada vez, todavia, mais instruídas, não provam que a instrução não baste para resolver as questões do trabalho. Assim o tem compreendido essas nações, empenhando todos os seus recursos para melhorar a educação do trabalhador. Elas reconhecem que o seu progresso científico ainda não presta a todas as classes, que a instrução, cujo nível tem subido, considerando-se o mais alto grau a que atinge, ainda se não propagou suficientemente para aproximar as classes operárias das classes dirigentes, não aumentou na mesma proporção para umas e outras o que faz com que, relativamente ao estado das ciências, se tenha de confessar que o operário não era dantes menos instruído do que é hoje. Eis a distinção que é necessário fazer.
O aumento progressivo dos crimes e das doenças de que a instrução, como observa, não é responsável, não prova que a instrução não basta para resolver as questões morais, as questões de carácter. Tais aberrações, não falando nas causas físicas, que a ciência médica trata de combater, provém da situação do homem moderno em presença de uma civilização tão compósita e, por isso mesmo, tão difícil de perceber, que chega às vezes a transtornar os entendimentos menos sólidos. O grande remédio, como se depreende, é a instrução.
A desordem das inteligências não é agravada por um suposto aumento de conhecimentos desprovidos de critério moral, pois são os próprios conhecimentos que fornecem este critério. Certamente não se refere a conhecimentos de outra ordem, como quem alegasse que com conhecimentos de física e química e análogos não se pode formar a educação moral. Ninguém procura formá-la assim.
A causa dos males sociais do nosso tempo não está no empobrecimento do velho mundo, que nunca foi tão rico, nem mais ainda na viciosa distribuição da sua riqueza, que nunca o foi tão pouco. Não quer sem dúvida que se infira das suas palavras que o nosso século, maravilhoso pelo desenvolvimento industrial, vale industrialmente menos do que os séculos passados, produzindo menos e repartindo menos equitativamente os seus produtos.
Sem conchego do estômago não pode haver paz do espírito. Tem razão. Mas a necessidade tem sido a mãe de um sem-número de descobrimentos, e nunca no mundo será possível a toda a gente meditar em plena paz no remanso dos seus gabinetes. De resto, essa não é propriamente a idade da instrução; importa dar instrução, sobretudo, nos anos em que os cuidados da sustentação mal pesam sobre o indivíduo. Este é o tempo de semear.»

“Carta a Oliveira Martins”, in Affirmações Publicas: 1882-1886, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1888, pp. 383-393; tb. in O Ensino, Coimbra, Typographia França Amado, 1898, pp. 85-95.

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«Todos falam de ensino, vários o professam, mas poucos sabem o que ele é. Nem admira, porque, entre nós, ensinam-se já muitas coisas, mas ainda mal se ensina a ensinar.
Que é o ensino? Vê-se no mais simples exemplo. Vamos de excursão, e pedimos a uma criança que nos ensine o caminho. Nesse momento, a criança, para nos assistir guia-nos, dirige-nos com a sua explicação e conselho. O ensino é uma direcção, um governo.
Não há essencialmente diferença entre ensino e governo. Um e outro pode ser artístico, industrial ou científico; e, em qualquer dos casos, deve ser moral, convertendo--se em religioso, económico ou político.»

«Mas não será dispensável o ensino? Não há tantos homens que se formam só por si, pela experiência da vida? Não! São muitas as formas de ensino, oral, escrito, real, prático, e não é preciso ir à aula para o receber. Não se confunda aula com ensino.
O homem não entra de repente na plena posse das suas forças, e mal pode passar sem alguém que, durante a sua adolescência, o dirija na iniciação da vida. As nossas faculdades estão em sucessiva diferenciação e desabrochamento, principalmente até à idade madura; estão-nos continuamente a nascer novas aptidões, como que novas faculdades, novos sentidos, novos olhos. Há uma gestação espiritual, como há a orgânica. Daí a missão protectora do educador.»

«Sem ensino, e sem a sua difusão por todas as classes, a civilização redunda contraproducente, porque deixa de estar ao alcance do homem. O homem fica escravo dela.
Veja-se o que sucedeu com a aplicação do vapor à indústria. As máquinas distanciaram profundamente o operário – seu serventuário – do engenheiro, seu dirigente; e, por falta de ensino oficinal que suprisse essa distância, trouxeram, a par com incontestáveis benefícios, muita injustiça e miséria, muita perturbação, que só pela escola industrial modernamente se tem podido combater.»

«A importância do ensino é hoje reconhecida em toda a parte. Honram-no os principais estadistas, dotam-no ricos e pobres. E do próprio seio das Universidades partiu uma generosa campanha para se levar o ensino às classes mais infelizes, aos bairros operários, aos campos e às minas. Tanto se reconhece o seu carácter de dívida e obrigação moral!
O nosso século é o século da socialização e do ensino.
Se todo ensino é necessário e importante, não pode deixar de o ser também o do próprio ensino.
As nações estrangeiras há muito que lhe prestam os máximos cuidados.
Na Alemanha, já no século passado Kant, na sua cadeira de filosofia professava a pedagogia, e, logo nos primeiros anos deste século, Herbart estreava-se, como Privatdocent, tratando da pedagogia. Desde o século passado também que naquela nação se foram multiplicando os seminários, que como lá se chamam as escolas ou aulas normais. E hoje há nas suas Universidados cursos de pedagogia regidos por homens tão distintos como Henrique Schiller e Theobaldo Ziegler.
Em França, já os grandes revolucionários se ocupam de pedagogia, sendo o professor Lakanal o relator do projecto de criação da primeira escola normal, a famosa Escola Normal Superior de Paris para o ensino secundário. A Terceira República, além de acrescentar a essa uma outra para o sexo feminino – a Escola Normal Superior para o Ensino Secundário da Mulher, estabelecida em Sévres – organizou, poderosamente a pedagogia para o ensino do povo, chamando os seus primeiros homens à regência das aulas nas Escolas Normais Superiores do Ensino Primário em Fontenay-aux-Roses e em Saint-Cloud, escolas que têm tido, à sua frente, homens eminentes entre os quais lembro com saudade Pécaut, o venerando educador. Lá preside, ao movimento pedagógico, o Vice-Reitor da Academia de Paris, o académico Gréard, autor de magistrais memórias sobre o ensino, ultimamente auxiliado pela poderosa propaganda doutro académico, o professor Lavisse; lá se criou nos últimos tempos a cadeira de pedagogia em Paris, na Sorbonne, que foi confiada a Marion e depois a Buisson, e tem-se instituído cursos pedagógicos nas Universidades de província sob a direcção de ilustres professores como Compayré, Espinas e Thamin.
Na Inglaterra, a pátria de [Alexander] Bain e de [Herbert] Spencer, e a antiga pátria de Locke, que tanto influiu em Rousseau, que por sua vez tanto influiu em Kant, há subsidiadas, pelo Estado, muitas escolas pedagógicas, lá chamadas traning colleges; e já, em 1891 James Sully propôs à Universidade de Londres a colação de graus pedagógicos.
Nos Estados Unidos, além de todas as escolas normais, há nas Universidades cursos e até verdadeiras Faculdades de pedagogia, com bacharéis e doutores. Numa, na de Stanford, há mesmo anexo um laboratório experimental com crianças de 2 a 12 anos, o qual tem com o ensino pedagógico, diz o Sr. Barnes na Educational Review (citada pelo Sr. Compayré) as mesmas relações que o hospital com o ensino médico.
Junto a nós, aqui mesmo em Espanha, os principais professores, à frente dos quais o meu querido amigo D. Francisco Giner [de los Rios], em quem me inspiro também, procuram dirigir o ensino nacional.
Em Portugal, a pedagogia apenas se esboça nas escolas normais primárias. A lei já exige provas pedagógicas dos candidatos ao magistério secundário, mas ainda não há onde eles se preparem para as dar. Em todo o ensino sente-se a deficiência de habilitação profissional.»

“Conferências de Pedagogia. Notas. Lição Inaugural”, In Universidade de Coimbra: curso de pedagogia: notas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1900; tb “Conferencias de Pedagogia: notas”, in A Universidade de Coimbra, 2.ª ed., Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.


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ENSINO E PROGRESSO NOS PAÍSES CIVILIZADOS

«A grandeza material e moral dos Estados Unidos e da Suíça assenta, firmemente, na larga base duma sólida educação nacional. O exemplo da Alemanha, tantas vezes citado, é na verdade empolgante. Depois do desastre de Iena e da paz de Tilsit [1807], a Prússia, esquartejada, parecia não ter vida para muito tempo. Mas ouve-se a voz do filósofo Fichte nos seus Discursos à nação alemã, chamando-a ao cumprimento dos seus deveres educativos; a sua palavra ressoa em todos os corações, e, do alto do trono, a rainha Luísa, tão desditosa como simpática, presta todo o seu concurso a esta campanha patriótica. Cria-se a Universidade de Berlim, como um centro potente de ideias e de civismo, e como consequência, de vitória em vitória, a Prússia conquista a hegemonia da Alemanha, e torna-se, finalmente, na grande potência continental e colonial que a todos hoje causa admiração.
Não são menos eloquentes também os exemplos das duas outras grandes nações europeias, a França e a Inglaterra. Como é que a República francesa se levanta de grande desastre de Sédan? Sangrando ainda, faz todos os sacrifícios para o fortalecimento do ensino. Legisla um ensino primário leigo, gratuito e obrigatório; cria os liceus femininos; dá maior autonomia às suas Universidades; e das bancadas escolares saem as novas gerações, que vão tornando, cada vez mais forte e respeitada, a França, aliada hoje dum grande império, requestada por todas as outras nações, novamente grande potência colonial com largo domínio na África e na Ásia. E é tal a importância que ali se liga ao ensino, que agora mesmo é neste terreno que a França republicana tenta descarregar os últimos golpes na mais antiga e na mais perigosa de todas as reacções, a reacção clerical.»

“Governo e Ensino”, in Da Monarchia para a Republica: 1883-1905, Coimbra, Typographia F. França Amado, 1905; tb. in Conferencias Politicas, Coimbra, Typographia Democrática, 1904.

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«Não basta fazer obras públicas, abrir estradas, lançar pontes, melhorar os portos, quebrar, em suma, todos os obstáculos físicos que entravam a circulação dos produtos e a aproximação dos povos; tão pouco basta abolir todos os privilégios e monopólios que embaraçam e oprimem a liberdade humana e associar os cidadãos na mais perfeita solidariedade por meio de leis sábias e justas. Essas facilidades da vida, sem dúvida preciosas, não passam ainda assim de condições externas da prosperidade. É excelente que nem a natureza nem a sociedade oponham resistência à legítima expansão das forças individuais; mas o principal é a acção dessas mesmas forças, é a capacidade de cada um para o trabalho. Ora, o trabalho científico, artístico ou industrial, reveste nas sociedades modernas formas tão compósitas, que exige, de quem pretende exercê-lo, um aprendizado, dia a dia mais longo, sob pena de condenar o espírito a um estéril automatismo.
É esse aprendizado o que, fundamentalmente, nos falta. Nós, se não extraímos nem valorizamos as abundantes riquezas que se encerram neste abençoado solo, é que estamos tão incultos como ele; se não possuímos uma arte nacional, é que mal sabemos discernir as belezas da nossa terra e da nossa história, e raros são os que entre nós prezam as letras vernáculas e contemplam com emoção as cenas do nosso viver; se não contribuímos com a mínima quota parte para o progresso científico, é que conhecemos tão pouco as nossas coisas, que das verdades que o vento benéfico da civilização arrasta até nós, nenhuma implantação fecunda podemos fazer. Não temos nem ciência, nem arte, nem indústria, porque não temos instrução!
A nossa ignorância apouca-nos e deprime a nossa originalidade e autonomia. Importamos quase tudo de fora: géneros e utensílios, gosto, ideias! E o resultado é não só alienarmos a nossa fazenda, empobrecermos, mas, pior do que isso, desnacionalizarmo-nos, porque nós, que nos devíamos orientar pelas gloriosas tradições do nome português, estamos hoje sem pátria espiritual, ou, se a temos, será em Paris, em Londres, em Berlim, não é entre nós. Assim se vão corrompendo as próprias fontes da nossa independência. Oxalá nunca desponte o dia em que até a vontade de lutar por ela nos chegue a faltar!
Não há muralhas que abriguem do domínio estrangeiro, quando esse domínio tem por si a força, as seduções da civilização. Fala-se agora muito em proteccionismo; e ainda bem! Mas, se o nosso trabalho não funde o bastante para as trocas internacionais, que fazer? Fazer como os povos nómadas, emigrar para países mais abundantes e fáceis? Fraco e sempre lacrimoso recurso esse! Desgraçadamente, não temos tido outro. Proviesse a nossa inferioridade das árduas condições do meio que habitamos, e a poder de estudo e de aplicação vingaríamos dobrar a adversa fortuna; mas todos sabem que não, que não há sítio do mundo onde seja mais grato viver. Pois, para a rudeza das nossas faculdades, o remédio é obvio! Debalde fecharemos as portas aos produtos de fora. De lá virão ter connosco os produtores em pessoa, e a luta pela existência travar-se-á não menos áspera sobre o nosso próprio torrão, a não pautarmos também pelo nosso atraso a admissão dos estrangeiros, o que seria insensato. O remédio único é, evidentemente, a educação. Ou desconfia alguém da nossa capacidade? Eu, quando reflicto nos inigualáveis dons nativos que a nossa gente adiu em herança dos seus heroicos antepassados, como ela é boa de dirigir, tão inteligente e afectiva, sofredora até ao sacrifício, não sei realmente como hei-de qualificar a impiedade com que imprevidentemente a vão deixando decair ao desamparo os mesmos que tem a seu cargo as mais altas magistraturas sociais!
Dir-se-á, talvez, que é lenta a acção educativa, e que as dificuldades em que nos debatemos, não permitem delongas. Mas onde há-de ir desencantar-se a vara mágica que transmude de súbito a nossa situação? Depois, o ensino não é só de crianças e de adolescentes, é também de adultos; e nada se aperfeiçoa mais rapidamente do que o espírito humano. Nós em poucos anos da Escola de Sagres nos habilitámos para os nossos épicos descobrimentos!»

«A instrução é a verdadeira salvaguarda nacional, e a mais económica. Vejam a Suíça, como assegura a defesa dos seus lares, sem se esgotar, como nós, pela sustentação dum exército permanente. Guarnece o seu território à força de instrução!»

“Necessidade de Desenvolvimento da Instrução”, in Affirmações Publicas: 1888-1893, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1896; tb. in O Ensino, Coimbra, Typographia França Amado, 1898, pp. 95-105.