domingo, 29 de setembro de 2013












II
A APRENDIZAGEM
ENTRE O HEREDITÁRIO E O ADQUIRIDO

«Uns dizem: por amor dos outros, ninguém se desvie do seu caminho, do caminho do seu interesse. Para quê? O homem é o produto fatal da herança e do meio. Tal pai, tal filho. Chega-te aos bons, serás um deles; chega-te aos maus, serás pior do que eles. Diz-me com quem andas, dir-te-ei as manhãs que tens. E estes apotegmas populares, vários sábios pretendem corroborá-los com as suas observações.»

«Nesta teoria, o carácter de cada um tinge-se indelevelmente com as cores do sangue dos seus progenitores e do céu da sua pátria. Dos que a defendem, uns atribuem tudo à herança, outros dão imensa importância ao meio, e há ainda os que, mais judiciosamente, combinam os dois factores na força inelutável da evolução.
O homem evolve fatalmente. Não pretenda ninguém intervir no seu desenvolvimento, que o não altera, e, quando muito, só vingará perturbá-lo temerariamente. Seria inútil, senão até indiscreto e nocivo. E nem temos motivo para o deplorar, porque sobre os seus mesmos escombros a evolução ergue cada vez mais grandioso o edifício do progresso. O universo melhora por si.
Está claro que este determinismo esquece que, além da herança e do meio, lia o próprio homem, que é também uma força, e esquece o professor, que é ao mesmo tempo um coeficiente poderoso do passado e do presente, um elemento considerável não só do meio, porque a herança é mais do que simplesmente uma herança orgânica. O professor é a força externa organizadora de todas essas influências que pesam sobre a liberdade humana, é ele quem a dirige na sua faina de consolidar as boas, extirpando conjuntamente as que lhe sejam perniciosas.»

«O ensino é uma assistência, uma socialização; e, por isso, também o não querem todos os adversários do socialismo, todos os individualistas.
Assim como os deterministas são os fanáticos da herança e do meio, da evolução, os individualistas são os fanáticos da personalidade humana, da educação pessoal, do auto-didactismo, da self-instruction

«Para os fatalistas, o esforço de cada homem é infinitésimo no turbilhão do universo; para os individualistas, esse esforço, só de per si, é capaz de alevantar cada homem ao nível, à flor da civilização. Uns e outros abandonam-no na luta pela existência. Assistir-lhe afigura-se-lhes quase uma profanação, tanto divinizam as forças do destino ou da vontade.
Proclamando esta doutrina, em Portugal, cita-se logo Alexandre Herculano e mais modernamente Oliveira Martins, que pouco ou nada deveram às aulas. Podiam citar-se ainda outros exemplos, e, entre eles, o da Sr.ª D.ª Maria Amália Vaz de Carvalho. Mas, sem falar das influências pessoais, que de perto contribuíram para a formação destas poderosas individualidades, quem não sabe do amor, da paixão absorvente de todas elas pelos livros, isto é, da sua intimidade com os grandes mestres do espírito humano?
Os Robinsons [Crusoés] não se compreendem sem uma sólida armadura, que a ninguém é lícito alcançar sem o ensino. Alguns individualistas temem tanto o ensino, que desejariam segregar o homem de toda a convivência social. Ensino ou governo, é sempre atrofiante e corrosivo, enfraquece e despedaça as molas da alma humana; e, na sociedade, o homem corre sempre o risco de ser dirigido, o que vale o mesmo que dizer violentado. A grande e salutar educação é unicamente a das reacções naturais. Para estes o homem nasce bom e é boa a natureza, só é má a sociedade. Que acumulação de absurdos! Se todos os homens nascessem bons, como é que o trato de qualquer deles com os outros, igualmente bons, o depravaria? Donde lhe viria o mal, se a natureza que o cerca, fosse inalteravelmente, eternamente boa?
E condena-se a intervenção do ensino para se concluir, por uma forma bárbara de intervenção, o isolamento social. É, em vez da assistência, do amor, a tortura celular. Lastimosamente, temos já, de facto, esse regime entre nós, embora só como regime penal; é a penitenciária, aplicada aos que, decaídos pelos seus crimes, mais do que ninguém necessitariam de todo o magnetismo da fraternidade, da bondade, para de novo se levantarem à dignidade humana.»

«Os fanáticos da personalidade humana ainda fazem pior: lançam o indivíduo nas lutas da existência, lutas naturais e sociais, e deixam-no! Esse abandono é mais que desastroso, é um perigo para a moralidade.»

«As reacções naturais não só não basta para formar o homem, mas não encerram, em si, bálsamo e conforto para todas as feridas que rasgam.
O desastre ensina? Efectivamente quase parece necessário sofrê-lo para lhe perder o medo. Mas já basta o desastre inseparável de todo aprendizado e estudo, de todo ensaio; não o agravemos. A função do mestre não é suprimi-lo, que seria quimérico, mas atenuá-lo, mas torná-lo o mais suportável e o menos danoso possível.»

«Há, sem dúvida, uma moral natural, uma disciplina das leis naturais, da necessidade.
Quem não passou necessidades, não formou o seu carácter. A necessidade é a primeira educadora da vontade. É, como se diz, a mãe de todas as indústrias. […] Ela tonifica a vontade, ela desenvolve pelas suas resistências o calor que também é necessário à vida activa do espírito. É, por isso, que as crianças pobres têm quase sempre mais esperteza e decisão do que as crianças ricas. E não serei eu que maldiga deste aprendizado […].»

«Mas não se fique por aí! Como os nossos antepassados, procuremos uma inspiração superior, um ideal. As necessidades individuais, egoístas, impõem-se primeiro; mas, além da disciplina das leis naturais, há outra mais alta, a das leis morais, a das obrigações altruístas. Esta é que é verdadeiramente a disciplina moral.
Não se perpetue ninguém no regime das necessidades; e, sobretudo, não se exagerem, não se encrueçam! Que são os selvagens, que são muitos degenerados, senão almas penadas, almas amarradas ao poste do obscurantismo pelas necessidades, pelas fatalidades orgânicas? Tentemos tudo por desatá-los quanto possível dessas prisões.»

«A moral das reacções naturais é a sagração do fatalismo, da força e do acaso. Não desaparece o governo, mas o homem decai para [ficar] sob o governo da força bruta e da superstição.»

«Não basta a luta natural pela existência para formar o homem civilizado. As suas consequências podem mesmo ser ruinosas à felicidade e à moral. Todos precisam de que os inicie em meio das reacções naturais, tão aleatórias! A acção esclarecida e amorável do ensino. Ponha, pois, cada qual ao serviço dos outros a sua instrução e autoridade, não só para que eles tropecem e caiam o menos possível e se não molestem, mas ainda para que do choque com as forças físicas não saia também mal ferida a sua emotividade e a sua razão, e, com elas, a sua dignidade.
Não! – contravém o individualismo, sem se dar por vencido – não é isso! Não basta, à educação, a luta natural, porque é necessária ao mesmo tempo a luta social. O regime da necessidade decerto que é insuficiente, porque se faz mister também o da liberdade, a livre disciplina das energias individuais no seu vivo e fecundo recontro. Na luta social a alma humana acabará, por si mesma, de se temperar virilmente. Nada de intervirem na educação! Laisser faire, laiesez passer. Até onde pode chegar o culto fanático da personalidade! É, em todo o desabrimento da sua intratável rispidez, pretender, como de nós dizia Voltaire, curar os danos do terramoto[de Lisboa, 1755] com os suplícios do auto de fé [a que foi sujeito o padre Malagrida]. Imaginarão tão descaroados individualistas que vivemos num mundo celestial, todo perfeições?
Leibniz, ao sustentar que este mundo era o melhor dos mundos possível, não negava a existência do mal; e, desde a sua mocidade, que, para o debelar, ele apelou para o ensino, cuja eficácia pôs em relevo, parodiando Arquimedes na célebre asserção: Dai-me o ensino e eu vos mudarei a face da Europa

«A luta social não é um jogo festivo de livres iniciativas. Através das harmonias da civilização – que é doce escutar como Platão escutava a música das esferas – quem é que não ouve distintamente os soluços e as imprecações das vítimas das contenções humanas? A liberdade é a condição de todo o bem, e só ela o realiza, mas a que custo! Por isso ela aperfeiçoa e acelera incessantemente o seu aprendizado por meio do ensino.»

«Reconhecendo a lastimosa realidade da luta social, afirmamos com isso a sua necessidade, a sua fatalidade? A luta pela vida rege também a nossa espécie? Será verdadeiro o aforismo de Hobbes, adoptado por Malthus: Homo homini lúpus? O homem terá necessidade de lutar com o homem, como tem a [necessidade] de comer e de exercitar os seus músculos? Terá de educar-se na luta para a luta? A la guerre comme à la guerre?
O que é necessário ou obrigatório é a lei física ou moral, e não a desordem. A luta social é comparável à fome, ao calafrio. Como estas perturbações, que revelam a necessidade das leis orgânicas a que todos temos de obedecer para conservar a vida, ela denuncia uma infracção à lei moral. E, assim como a facilidade dos meios de existência, regulados pela higiene, até da negra fome faz um grato apetite, assim também o progresso da humanidade, vai fazendo com que a ferina luta social se transforme numa fraterna emulação, ou, quando muito, numa passageira desinteligência, inofensiva […].»

«O homem tem de educar-se para a sociabilidade, para a cooperação, para a virtude, não para a luta. Mas, se a luta social não é uma necessidade essencial, permanente, da natureza humana, não será, contudo, uma necessidade transitória, uma condição impreterível de aperfeiçoamento? Para nos formarmos, não teremos de passar pela sua escola? Numa palavra, não será educativa? E, portanto, subtrair-lhe alguém pelo regime do ensino não será um mal?
Constituirá a luta social o preparatório indispensável para alcançarmos a virtude?
A este respeito, pronunciam-se, afirmativamente, três opiniões, duas dos que julgam igualmente necessário deixar o homem fazer o mal, e uma dos que julgam necessário deixá-lo, senão fazer o mal, ao menos transigir com ele.
Há quem pense que o homem, para ser bom, necessita de cansar o seu instinto de combatividade, de saciar a sua animalidade, ou, pelo menos, de lhe dar uma satisfação.

Felizmente que a torpe doutrina não se aplica à mulher!
Os que a seguem, procedem como os donos das confeitarias, que deixam os pequenos [empregados], à entrada para o seu serviço, comer tanto doce, que o fiquem enjoando para sempre. Esperam que o vício caia de maduro e se desfaça de podre.
Mas será pela saciedade que o homem perca o gosto ao vício? Não. O efeito da saciedade não é a temperança, é o tédio, a irritabilidade, a doença física e moral; [não] será o cansaço do vício, mas é com certeza a extinção da alma e da vida.»

«As curiosidades mórbidas não são curiosidades, instigações intelectuais, mas apetites, a que a sã razão não deve ceder. Nessa ginástica lhe cumpre logo enrijar-se e aguerrir-se contra o mal. Ademais o vício está tão perto da virtude, que, aos nossos mínimos desmandos, temos de sobejo infelizmente ocasiões de o irmos conhecendo e imaginando por nós mesmos, sem precisarmos de o cometer propositalmente e de nos afundar nele para não virmos alguma vez a cair nele por ignorância.»

«O vício não se corrige por si mesmo. É preciso preveni-lo, reprimi-lo, sobretudo, preveni-lo. Os grandes meios são os morais.»

«Há também quem entenda necessário entregar o homem à luta social para que o seu vício encontre os vícios dos mais e se modere.
Deixem os rapazes quebrar a cabeça. Deixá-los fazer a experiência do mal. Ao tempo, é que o fruto se sazona: deixá-los curar-se das suas verduras. São depois os melhores.
Inspiram-se no mesmo princípio os que dizem que todos precisam de ter sido republicanos em rapazes para darem depois bons monárquicos. A verdura, aqui, é o republicanismo.
Para estes a luta social é uma espécie de purgatório, de cadinho ardente, por cujo fogo tem de passar as paixões para que a virtude se acendre. O vício, fazendo erupção, até limpa.
Contam com as violências da sociedade para a educação pessoal. O homem há-de refrear os seus arrebatamentos, porque lhe pagam o mal com o mal. Do choque dos vícios é que ressalta para as almas a centelha da virtude.
Nesta teoria não se faz o mal, unicamente porque os outros o não deixam fazer. E, quando deixarem? Quando quem se desmande, for o mais forte, o mais inteligente? É a exploração de todos os fracos, da mulher, da criança, do povo, de todos os que não possam ou não saibam rebater o mal.
É por isso que tantos homens de talento ou de elevada hierarquia julgam que tudo lhes é permitido.
Há ainda a opinião dos que declaram necessário que o homem se lance na luta social para alcançar a virtude, não propriamente fazendo o aprendizado do mal, mas aprendendo a tratar, a comprazer com ele.
Para poder exercitar o bem, não há remédio senão fazer a boca doce aos maus, captar o seu concurso, domesticá-los. É, associando-nos primeiro com eles, servindo-os, que depois os podemos ter do nosso lado.»

«Se o choque das energias pessoais, a luta social, não gera sempre virtude, clamam os individualistas, é lastimoso, mas que remédio, pois doutro modo não há progresso possível! Sacrifiquem-se vidas e almas, que é para o bem geral.»
«O ensino, pretendendo alhear o indivíduo à luta de homem para homem, o que faz, é desarmá-lo e estorvar a marcha ascentente da humanidade. A luta é a lei da perfectibilidade. Toda a assistência social não só se frustra de encontro a esta lei, mas é mesmo atentatória dela.
A ensinar-se, ensine-se a luta social.»

«Será assim? Afirmá-lo-á a história? […] não. […] As ciências físico-químicas demonstram a conversão de todas as forças e, portanto, a sua unidade e solidariedade […]. A biologia demonstra a transformação das espécies, isto é, também a sua unidade e solidariedade […], é o próprio autor da teoria da unidade das espécies, que vem declarar-nos que animais e plantas só se transformam e aperfeiçoam no rude combate pela existência.
A psicologia demonstra a unidade e solidariedade de todas as faculdades e de todas as suas criações […]; A sociologia demonstra a solidariedade moral do homem, os seus deveres de cooperação e assistência, o nosso século é o século em que mais intimamente se comunicam indivíduos, classes, povos e nações.»

«Os grandes conflitos travam-se principalmente na natureza inorgânica; e, contudo, aí mesmo à revolucionária teoria das catástrofes se opõe hoje a teoria da evolução, que explica a história da terra pela acção lentamente acumulada das causas actuais e, aí mesmo, a mais pura expressão da solidariedade mineral, o cristal, se mostra incompatível com uma incessante agitação.»

«Na sociedade a luta tende a extinguir-se. […] E a escola, o ensino, vai por toda a parte enlaçando as almas.»
«A conclusão a tirar da magnitude das influências da herança e do meio, do poderio da evo1ução, é, reconhecendo-as, que o ensino se torna, por isso mesmo, mais necessário e instante, porque tem de travar a luta com várias delas; é, reconhecendo as dificuldades da luta, que, sem embargo, a vitória do ensino, do mestre, é certa, pois que dessas influências as mais fortes, as eternas, que são as boas, estão do seu lado, e as que ele tem de combater, são as que pela sua própria natureza hóstil, aberrante, anormal, estão destinadas a extinguir-se.
O mundo vai pertencendo cada vez mais ao bem. Mas não imaginemos nunca os nossos discípulos, os nossos filhos, educados, só porque calçam luvas e botas de verniz.»

“Conferências de Pedagogia. Notas”, in Universidade de Coimbra: curso de pedagogia: notas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1900; tb. “Conferencias de Pedagogia: notas”, in A Universidade de Coimbra, 2.ª ed., Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.












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