II
A APRENDIZAGEM
ENTRE O HEREDITÁRIO E
O ADQUIRIDO
«Uns
dizem: por amor dos outros, ninguém se desvie do seu caminho, do caminho do seu
interesse. Para quê? O homem é o produto fatal da herança e do meio. Tal pai, tal filho. Chega-te aos bons, serás
um deles; chega-te aos maus, serás pior do que eles. Diz-me com quem andas,
dir-te-ei as manhãs que tens. E estes apotegmas populares, vários sábios
pretendem corroborá-los com as suas observações.»
«Nesta teoria, o carácter de cada um tinge-se
indelevelmente com as cores do sangue dos seus progenitores e do céu da sua
pátria. Dos que a defendem, uns atribuem tudo à herança, outros dão imensa
importância ao meio, e há ainda os que, mais judiciosamente, combinam os dois
factores na força inelutável da evolução.
O homem evolve fatalmente. Não pretenda ninguém
intervir no seu desenvolvimento, que o não altera, e, quando muito, só vingará
perturbá-lo temerariamente. Seria inútil, senão até indiscreto e nocivo. E nem
temos motivo para o deplorar, porque sobre os seus mesmos escombros a evolução
ergue cada vez mais grandioso o edifício do progresso. O universo melhora por
si.
Está claro que este determinismo esquece que, além da
herança e do meio, lia o próprio homem, que é também uma força, e esquece o
professor, que é ao mesmo tempo um coeficiente poderoso do passado e do
presente, um elemento considerável não só do meio, porque a herança é mais do
que simplesmente uma herança orgânica. O professor é a força externa
organizadora de todas essas influências que pesam sobre a liberdade humana, é
ele quem a dirige na sua faina de consolidar as boas, extirpando conjuntamente
as que lhe sejam perniciosas.»
«O ensino é uma assistência, uma socialização; e, por
isso, também o não querem todos os adversários do socialismo, todos os
individualistas.
Assim como os deterministas são os fanáticos da
herança e do meio, da evolução, os individualistas são os fanáticos da
personalidade humana, da educação pessoal, do auto-didactismo, da self-instruction.»
«Para os fatalistas, o esforço de cada homem é
infinitésimo no turbilhão do universo; para os individualistas, esse esforço,
só de per si, é capaz de alevantar
cada homem ao nível, à flor da civilização. Uns e outros abandonam-no na luta
pela existência. Assistir-lhe afigura-se-lhes quase uma profanação, tanto
divinizam as forças do destino ou da vontade.
Proclamando esta doutrina, em Portugal, cita-se logo
Alexandre Herculano e mais modernamente Oliveira Martins, que pouco ou nada
deveram às aulas. Podiam citar-se ainda outros exemplos, e, entre eles, o da
Sr.ª D.ª Maria Amália Vaz de Carvalho. Mas, sem falar das influências pessoais,
que de perto contribuíram para a formação destas poderosas individualidades,
quem não sabe do amor, da paixão absorvente de todas elas pelos livros, isto é,
da sua intimidade com os grandes mestres do espírito humano?
Os Robinsons [Crusoés] não se compreendem sem uma
sólida armadura, que a ninguém é lícito alcançar sem o ensino. Alguns
individualistas temem tanto o ensino, que desejariam segregar o homem de toda a
convivência social. Ensino ou governo, é sempre atrofiante e corrosivo,
enfraquece e despedaça as molas da alma humana; e, na sociedade, o homem corre
sempre o risco de ser dirigido, o que vale o mesmo que dizer violentado. A
grande e salutar educação é unicamente a das reacções naturais. Para estes o
homem nasce bom e é boa a natureza, só é má a sociedade. Que acumulação de
absurdos! Se todos os homens nascessem bons, como é que o trato de qualquer
deles com os outros, igualmente bons, o depravaria? Donde lhe viria o mal, se a
natureza que o cerca, fosse inalteravelmente, eternamente boa?
E condena-se a intervenção do ensino para se concluir,
por uma forma bárbara de intervenção, o isolamento social. É, em vez da
assistência, do amor, a tortura celular. Lastimosamente, temos já, de facto,
esse regime entre nós, embora só como regime penal; é a penitenciária, aplicada
aos que, decaídos pelos seus crimes, mais do que ninguém necessitariam de todo
o magnetismo da fraternidade, da bondade, para de novo se levantarem à
dignidade humana.»
«Os fanáticos da personalidade humana ainda fazem
pior: lançam o indivíduo nas lutas da existência, lutas naturais e sociais, e
deixam-no! Esse abandono é mais que desastroso, é um perigo para a moralidade.»
«As reacções naturais não só não basta para formar o
homem, mas não encerram, em si, bálsamo e conforto para todas as feridas que
rasgam.
O desastre ensina? Efectivamente quase parece
necessário sofrê-lo para lhe perder o medo. Mas já basta o desastre inseparável
de todo aprendizado e estudo, de todo ensaio; não o agravemos. A função do
mestre não é suprimi-lo, que seria quimérico, mas atenuá-lo, mas torná-lo o
mais suportável e o menos danoso possível.»
«Há, sem dúvida, uma moral natural, uma disciplina das
leis naturais, da necessidade.
Quem não
passou necessidades, não formou o seu carácter. A necessidade é a primeira
educadora da vontade. É, como se diz, a mãe de todas as indústrias. […] Ela
tonifica a vontade, ela desenvolve pelas suas resistências o calor que também é
necessário à vida activa do espírito. É, por isso, que as crianças pobres têm
quase sempre mais esperteza e decisão do que as crianças ricas. E não serei eu
que maldiga deste aprendizado […].»
«Mas não se fique por aí! Como os nossos antepassados,
procuremos uma inspiração superior, um ideal. As necessidades individuais,
egoístas, impõem-se primeiro; mas, além da disciplina das leis naturais, há
outra mais alta, a das leis morais, a das obrigações altruístas. Esta é que é
verdadeiramente a disciplina moral.
Não se
perpetue ninguém no regime das necessidades; e, sobretudo, não se exagerem, não
se encrueçam! Que são os selvagens, que são muitos degenerados, senão almas
penadas, almas amarradas ao poste do obscurantismo pelas necessidades, pelas
fatalidades orgânicas? Tentemos tudo por desatá-los quanto possível dessas
prisões.»
«A moral das reacções naturais é a sagração do
fatalismo, da força e do acaso. Não desaparece o governo, mas o homem decai
para [ficar] sob o governo da força bruta e da superstição.»
«Não basta a luta natural pela existência para formar
o homem civilizado. As suas consequências podem mesmo ser ruinosas à felicidade
e à moral. Todos precisam de que os inicie em meio das reacções naturais, tão
aleatórias! A acção esclarecida e amorável do ensino. Ponha, pois, cada qual ao
serviço dos outros a sua instrução e autoridade, não só para que eles tropecem
e caiam o menos possível e se não molestem, mas ainda para que do choque com as
forças físicas não saia também mal ferida a sua emotividade e a sua razão, e,
com elas, a sua dignidade.
Não! – contravém o individualismo, sem se dar por
vencido – não é isso! Não basta, à educação, a luta natural, porque é
necessária ao mesmo tempo a luta social. O regime da necessidade decerto que é
insuficiente, porque se faz mister também o da liberdade, a livre disciplina
das energias individuais no seu vivo e fecundo recontro. Na luta social a alma
humana acabará, por si mesma, de se temperar virilmente. Nada de intervirem na
educação! Laisser faire, laiesez passer.
Até onde pode chegar o culto fanático da personalidade! É, em todo o desabrimento
da sua intratável rispidez, pretender, como de nós dizia Voltaire, curar os
danos do terramoto[de Lisboa, 1755] com os suplícios do auto de fé [a que foi
sujeito o padre Malagrida]. Imaginarão tão descaroados individualistas que
vivemos num mundo celestial, todo perfeições?
Leibniz, ao sustentar que este mundo era o melhor dos
mundos possível, não negava a existência do mal; e, desde a sua mocidade, que,
para o debelar, ele apelou para o ensino, cuja eficácia pôs em relevo,
parodiando Arquimedes na célebre asserção: Dai-me
o ensino e eu vos mudarei a face da Europa.»
«A luta social não é um jogo festivo de livres
iniciativas. Através das harmonias da civilização – que é doce escutar como
Platão escutava a música das esferas – quem é que não ouve distintamente os
soluços e as imprecações das vítimas das contenções humanas? A liberdade é a
condição de todo o bem, e só ela o realiza, mas a que custo! Por isso ela
aperfeiçoa e acelera incessantemente o seu aprendizado por meio do ensino.»
«Reconhecendo a lastimosa realidade da luta social,
afirmamos com isso a sua necessidade, a sua fatalidade? A luta pela vida rege
também a nossa espécie? Será verdadeiro o aforismo de Hobbes, adoptado por
Malthus: Homo homini lúpus? O homem
terá necessidade de lutar com o homem, como tem a [necessidade] de comer e de
exercitar os seus músculos? Terá de educar-se na luta para a luta? A la guerre comme à la guerre?
O que é
necessário ou obrigatório é a lei física ou moral, e não a desordem. A luta
social é comparável à fome, ao calafrio. Como estas perturbações, que revelam a
necessidade das leis orgânicas a que todos temos de obedecer para conservar a
vida, ela denuncia uma infracção à lei moral. E, assim como a facilidade dos
meios de existência, regulados pela higiene, até da negra fome faz um grato
apetite, assim também o progresso da humanidade, vai fazendo com que a ferina
luta social se transforme numa fraterna emulação, ou, quando muito, numa
passageira desinteligência, inofensiva […].»
«O homem tem de educar-se para a sociabilidade, para a
cooperação, para a virtude, não para a luta. Mas, se a luta social não é uma
necessidade essencial, permanente, da natureza humana, não será, contudo, uma
necessidade transitória, uma condição impreterível de aperfeiçoamento? Para nos
formarmos, não teremos de passar pela sua escola? Numa palavra, não será
educativa? E, portanto, subtrair-lhe alguém pelo regime do ensino não será um
mal?
Constituirá a luta social o preparatório indispensável
para alcançarmos a virtude?
A este respeito, pronunciam-se, afirmativamente, três
opiniões, duas dos que julgam igualmente necessário deixar o homem fazer o mal,
e uma dos que julgam necessário deixá-lo, senão fazer o mal, ao menos transigir
com ele.
Há quem pense que o homem, para ser bom, necessita de
cansar o seu instinto de combatividade, de saciar a sua animalidade, ou, pelo
menos, de lhe dar uma satisfação.
Felizmente que a torpe doutrina não se aplica à
mulher!
Os que a seguem, procedem como os donos das
confeitarias, que deixam os pequenos [empregados], à entrada para o seu
serviço, comer tanto doce, que o fiquem enjoando para sempre. Esperam que o
vício caia de maduro e se desfaça de podre.
Mas será pela saciedade que o homem perca o gosto ao
vício? Não. O efeito da saciedade não é a temperança, é o tédio, a
irritabilidade, a doença física e moral; [não] será o cansaço do vício, mas é
com certeza a extinção da alma e da vida.»
«As
curiosidades mórbidas não são curiosidades, instigações intelectuais, mas
apetites, a que a sã razão não deve ceder. Nessa ginástica lhe cumpre logo
enrijar-se e aguerrir-se contra o mal. Ademais o vício está tão perto da
virtude, que, aos nossos mínimos desmandos, temos de sobejo infelizmente
ocasiões de o irmos conhecendo e imaginando por nós mesmos, sem precisarmos de
o cometer propositalmente e de nos afundar nele para não virmos alguma vez a
cair nele por ignorância.»
«O vício
não se corrige por si mesmo. É preciso preveni-lo, reprimi-lo, sobretudo,
preveni-lo. Os grandes meios são os morais.»
«Há também quem entenda necessário entregar o homem à
luta social para que o seu vício encontre os vícios dos mais e se modere.
Deixem os rapazes quebrar
a cabeça. Deixá-los fazer a experiência do mal. Ao tempo, é que o fruto se
sazona: deixá-los curar-se das suas verduras. São depois os melhores.
Inspiram-se no mesmo princípio os que dizem que todos
precisam de ter sido republicanos em rapazes para darem depois bons
monárquicos. A verdura, aqui, é o republicanismo.
Para estes a luta social é uma espécie de purgatório,
de cadinho ardente, por cujo fogo tem de passar as paixões para que a virtude
se acendre. O vício, fazendo erupção, até limpa.
Contam com as violências da sociedade para a educação
pessoal. O homem há-de refrear os seus arrebatamentos, porque lhe pagam o mal
com o mal. Do choque dos vícios é que ressalta para as almas a centelha da
virtude.
Nesta teoria não se faz o mal, unicamente porque os
outros o não deixam fazer. E, quando deixarem? Quando quem se desmande, for o
mais forte, o mais inteligente? É a exploração de todos os fracos, da mulher,
da criança, do povo, de todos os que não possam ou não saibam rebater o mal.
É por isso que tantos homens de talento ou de elevada
hierarquia julgam que tudo lhes é permitido.
Há ainda a opinião dos que declaram necessário que o
homem se lance na luta social para alcançar a virtude, não propriamente fazendo
o aprendizado do mal, mas aprendendo a tratar, a comprazer com ele.
Para poder exercitar o bem, não há remédio senão fazer
a boca doce aos maus, captar o seu concurso, domesticá-los. É, associando-nos
primeiro com eles, servindo-os, que depois os podemos ter do nosso lado.»
«Se o choque das energias pessoais, a luta social, não
gera sempre virtude, clamam os individualistas, é lastimoso, mas que remédio,
pois doutro modo não há progresso possível! Sacrifiquem-se vidas e almas, que é
para o bem geral.»
«O ensino, pretendendo alhear o indivíduo à luta de
homem para homem, o que faz, é desarmá-lo e estorvar a marcha ascentente da
humanidade. A luta é a lei da perfectibilidade. Toda a assistência social não
só se frustra de encontro a esta lei, mas é mesmo atentatória dela.
A ensinar-se, ensine-se a luta social.»
«Será
assim? Afirmá-lo-á a história? […] não. […] As ciências físico-químicas
demonstram a conversão de todas as forças e, portanto, a sua unidade e
solidariedade […]. A biologia demonstra a transformação das espécies, isto é,
também a sua unidade e solidariedade […], é o próprio autor da teoria da unidade das espécies,
que vem declarar-nos que animais e plantas só se transformam e aperfeiçoam no
rude combate pela existência.
A
psicologia demonstra a unidade e solidariedade de todas as faculdades e de
todas as suas criações […]; A sociologia demonstra a solidariedade moral do
homem, os seus deveres de cooperação e assistência, o nosso século é o século
em que mais intimamente se comunicam indivíduos, classes, povos e nações.»
«Os grandes conflitos travam-se principalmente na
natureza inorgânica; e, contudo, aí mesmo à revolucionária teoria das
catástrofes se opõe hoje a teoria da evolução, que explica a história da terra
pela acção lentamente acumulada das causas actuais e, aí mesmo, a mais pura
expressão da solidariedade mineral, o cristal, se mostra incompatível com uma
incessante agitação.»
«Na
sociedade a luta tende a extinguir-se. […] E a escola, o ensino, vai por toda a
parte enlaçando as almas.»
«A conclusão a tirar da magnitude das influências da
herança e do meio, do poderio da evo1ução, é, reconhecendo-as, que o ensino se
torna, por isso mesmo, mais necessário e instante, porque tem de travar a luta
com várias delas; é, reconhecendo as dificuldades da luta, que, sem embargo, a
vitória do ensino, do mestre, é certa, pois que dessas influências as mais
fortes, as eternas, que são as boas, estão do seu lado, e as que ele tem de
combater, são as que pela sua própria natureza hóstil, aberrante, anormal,
estão destinadas a extinguir-se.
O mundo vai pertencendo cada vez mais ao bem. Mas não
imaginemos nunca os nossos discípulos, os nossos filhos, educados, só porque
calçam luvas e botas de verniz.»
“Conferências
de Pedagogia. Notas”, in Universidade de
Coimbra: curso de pedagogia: notas, Coimbra, Imprensa da Universidade,
1900; tb. “Conferencias de
Pedagogia: notas”, in A Universidade de Coimbra, 2.ª ed., Lisboa,
Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.
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