Do blogue
PORTUGAL NA GRANDE GUERRA DE 1914-1918
Fernando Correia de Oliveira
2 — O “falcão” Chagas e a “pomba” Aquilino
Um tinha 29 anos e muito sangue na guelra, o ânimo de remover montanhas, mas era pacifista. O outro, com 51 anos, já dava mostras de algum cansaço revolucionário, mas queria levar, a todo o custo, Portugal a entrar na guerra. Aquilino e Chagas cruzaram-se em Paris, em 1914, onde um estudava e o outro era embaixador. Ambos escreveram para os seus diários as impressões do momento. De fazer saltar faíscas.
“A Alemanha que procede de Versalhes é dos tais vencidos a que deixaram os olhos para poder chorar. Retalharam-na, empobreceram-na, humilharam-na, quando a boa política seria apenas arrancar-lhe unhas e dentes, que tão assanhadamente arranharam e morderam, para que cedo, um meio século, não ousasse recomeçar. E, desde o ‘Diktat’ da paz até à sua entrada para a Sociedade das Nações, sofreu uma espécie de ‘passage à tabac’, aplicado vezes a eito e com frio método.” A “compreensão” de Aquilino para com a agressividade germânica está contida no prefácio, de Maio de 1934, ao diário que 20 anos antes escrevera em Paris, entre 1 de Agosto e 26 de Setembro, e que só então era publicado, sob o título “É a Guerra”. E a agressividade do Reich estava de novo a pressentir-se.
Nascido em 1885, em Carregal da Tabosa, Sernancelhe, Aquilino faz estudos de Filosofia em Viseu, na intenção de seguir curso teológico em Beja, como é desejo de sua mãe. Desistindo por falta de vocação, é atraído a Lisboa, vivendo desde logo intensamente o ambiente revolucionário. Em 1907, um acidente mudará a sua vida: guardou no seu quarto, a pedido de amigos republicanos, um caixote de explosivos que rebenta acidentalmente, matando um dos conspiradores. O jovem Aquilino é preso pela polícia monárquica, mas consegue evadir-se, refugiando-se em Paris. Está matriculado há quatro anos na Sorbonne quando a guerra o surpreende. Regressa em Setembro a Lisboa. Morre na capital, em 1963.
“Vou à Legação de Portugal, Avenida Kléber. Faz quatro anos que ali se conserva inalterável, sem mudança de vírgula, semelhante a estampa encaixilhada, o panorama em que João Chagas assentou a sua ministerial magnificência: o Tomás herdado do conde de Sousa Rosa, que acolhe toda a gente com um bom e curial sorriso; a antecâmara alfaiada com dois tarecos desirmanados, deserta quase sempre ou onde passa de raro em raro ‘un marchand de vin’ ou de batata da Normandia, quando não é laparoto nacional, desgarrado na Babilónia; e atrás das paredes a eterna metralhada, tep-tep-tep, das máquinas de escrever. Porque se afanam assim os prestimosos aparelhos só Chagas poderia explicar.
É persuasão minha que o seu constante e exemplaríssimo labor não corresponde a necessidade real no despacho da chancelaria; que representa, sim, uma doce invenção do antigo panfletário, maneira de se capacitar a si e, porventura, aos outros da operosidade diplomática que ali lavra sob a alçada do seu omnipotente e manhoso tacto. Os adidos e secretários, excelentes pessoas e caseiríssimos pais de família, tamborilam no alfabeto mecânico a romper a polpa dos dedos, amenizando a cáustica estopada com a chalaça brejeira e o cigarrinho chupado até ao sabugo, de olhos no relógio de pulso à espreita que escorram as lesmas ronceiras das horas.”
A pasmaceira saloia e teatral da embaixada portuguesa, aos olhos de Aquilino, tem como protagonista um velho e arguto revolucionário republicano, já algo gasto e desiludido em apenas quatro anos de regime.
A sinecura dourada
Escritor, político e jornalista, João Pinheiro Chagas nascera em 1863, no Rio de Janeiro, de uma família de portugueses emigrados dos tempos das lutas liberais. Panfletário, iniciou a sua carreira no “Primeiro de Janeiro”, no Porto. Processado frequentemente pela sua truculência, foi condenado em 1891 a quatro anos de prisão e a seis de degredo, por envolvimento na revolta do 31 de Janeiro. Consegue fugir para Paris, regressa na clandestinidade, volta a ser preso, a sua popularidade entre as gentes republicanas cresce. Implantada a República, foi nomeado embaixador em Paris, mas regressa e preside, em 1911, ao primeiro Governo constitucional. Volta a Paris depois da queda do seu executivo, demite-se de embaixador quando do golpe de Estado do general Pimenta de Castro. Regressa ao posto de embaixador em 1915, após um atentado que lhe rouba um olho e nova chefia do governo. Morre no Estoril, em 1925.
A saída de Lisboa, em 1911, fizera-se sem grandes penas. “A república dá-me a impressão de uma desordem que cada vez mais se agrava, em que há facadas, em que já corre o sangue, e a que eu assisto de longe, com o coração aos pulos, mas de braços cruzados”, confessa em 1914. O diário, editado postumamente pela viúva de Chagas, em 1929, “provoca a comoção nos meios republicanos — perseguidos e desmoralizados pela ditadura saída do 28 de Maio”, refere João B. Seabra no prefácio à edição de 1986. “Muitos dos mais dedicados amigos de Chagas não esconderam indignação. As fidelidades que resistiram à prova contam-se pelos dedos de uma mão.” “Eu penso com inquietação no papel que Portugal vai desempenhar nesta guerra, se ela se desencadear e a Inglaterra entrar em cena”, dizia João Chagas no seu diário, a 29 de Julho de 1914. Mas, embora apreensivo, não hesita sobre qual a política que Lisboa deve ter face ao conflito.
A 2 de Agosto, reagindo ao despacho diplomático recebido nesse dia, dando conta da posição dúbia portuguesa, de neutralidade não declarada, segundo os desejos de Londres, Chagas regista no seu diário: “Fiquei desolado! Pois quê? Portugal não compreende que é este o momento, ou nunca, de resgatar o seu passado de tutelado da Inglaterra e ser enfim o seu aliado, de ser alguém?” Em carta, de 4 de Agosto, ao embaixador português em Madrid, Augusto de Vasconcelos, volta à carga: “Portugal deve assumir sem tergiversações o papel de aliado da Inglaterra e dar-lhe o pouco que pode dar-lhe e não esperar que ela lho exija ou o tome por suas mãos.”
Um diálogo bélico-pacifista
Aquilino reconstitui, à sua maneira, o encontro que teve com Chagas na embaixada, poucos dias depois da guerra ter começado:
“Mergulhou os olhos um segundo, não mais que um segundo, no papel almaço em que reluzia a sua caligrafia de largos riscos, com espaços bastante amplos para se escreverem sonetos e, em timbre sarcástico, levemente roufenho, proferiu:
— Deixou-se germanizar?
— Imagino que não. Pelos meus artigos na ‘Capital’, artigos que vossa excelência me deu a honra de aplaudir, sabe que sou contra o chauvinismo, todos os chauvinismos, contra a guerra, todas as guerra, mais nada!
Contava, da malcriadez que lhe é própria, ter de me retirar com mais ou menos brusquidão, pelo que já me dispunha a sair, quando tornou:
— Portugal ainda não declarou a beligerância, não senhor, e todavia é urgente que a declare. É uma questão de decoro e de independência. Se quer viver, se quer ser alguém no concerto da Europa futura, apresse-se a entrar em guerra com o pouco que tem, com o pouco que pode dar, contra os impérios centrais. O contrário é o suicídio... Só têm direito de viver as nações nobres, leais, senhoras dos seus destinos. As nações acalcanhadas pelos tiranos de dentro ou de fora morrem irremediavelmente. Veja o senhor de que modo, com um fácil gesto, o nome de Portugal se pode encher de glória nesta hora triunfal!
— Triunfal?
— Sim, a Alemanha perde, tão certo como as águas do Sena correrem para o mar. O buldogue inglês nunca mais larga a presa em que ferrou os dentes. A questão é pegar. E, de resto, se a Inglaterra fosse ao fundo, íamos em boa companhia.
Causa-me calafrios um conceito tão extremo e com pavor fico a imaginar que se possam tomar irreflectidamente, como pretende este homem, decisões de alcance extraordinário que envolvem o bem-estar e a vida de milhares de pessoas. Mas ele não faz reparo ao meu silêncio e diz-me ainda:
— De hoje em diante, tomo a peito levar o meu país à guerra; vou pregar a cruzada; serei Pedro Eremita. Esta noite escrevi para Lisboa, endereçadas a amigos e pessoas influentes, uma dúzia de cartas. Bem sei que jogo o meu posto, mas tal contingência não me detém um minuto. Todas as razões e mais uma nos aconselham a entrar em guerra. O próprio interesse da humanidade!... (...) Esta guerra será a última. Por isso, não há o direito de lhe fugir.”
E Aquilino interroga-se: “É possível que a sorte de uma comunidade de seis milhões de almas, denso, vibrátil e complexo coraleiro, esteja em dado momento à mercê de caprichosa e anárquica vontade? Decerto que sim e é o caso de João Chagas. Para que semelhante homem represente em Paris, centro nervoso do mundo, a nação portuguesa, é preciso que esta ande bem escassa de valores ou que sofram de miopia grave os nossos governos. Não que Chagas não reúna altas e invejáveis qualidades, como dispor de pena brilhante e acerada, de razoável cultura para quem viveu sempre em bolandas e na rosa divina, o espírito dele marcar por audacioso e vivaz e na conversa ser o encantador Merlin.
Tem a república também que estar reconhecida ao seu passado de democrata e há que admirar a abnegação e constância com que levou a vida inteira no incerto combate. Quanto à pessoa social, em terra tão abastardada como a nossa, Chagas é o homem distinto. Em Paris não vai além de rasta, mas rasta que tresanda [João Chagas era mulato]. Ainda aqui, a falha de chá e de boa educação ele a supre pela insolência sem limites e à-vontade que lhe são peculiares; e, como o francês acaba por transigir com tudo o que não seja tacanho, João Chagas tem passe sob este ponto de vista.”
Chagas era a pessoa menos indicada, segundo Aquilino, para ocupar a legação de Paris. Para o escritor, “as democracias fizeram destes cargos sinecuras para os homens de escol necessitados, quando antigamente, e ainda agora sucede com as monarquias aristocráticas, eram lugares de relevo e de prosápia, apenas acessíveis aos mimosos da fortuna, com estadão a luzir. Chagas veio para Paris sem ter onde cair morto, o que se lhe não pode levar a mal.”
O posto de embaixador era para Chagas o coroar de uma carreira política intensa. Nas suas próprias palavras, estava em França “cheio de entusiasmo patriótico, feliz pela obra realizada no [seu] país, julgando encetar uma carreira brilhante que era o prémio da [sua] vida”.
Mas a “reforma dourada” do revolucionário é impiedosamente tratada por Aquilino:
“Do Majestic, na Étoile, em que primeiro assentou e tomou contacto com o mundo transatlântico, endinheirado, ‘parvenu’, de que aquela casa é o predilecto caravançarai, transitou para o primeiro piso da Avenida Kléber, mesmo por cima da chancelaria, que trastejou o melhor que soube e pôde com alfaias de bazar e faianças de imitação, um pouco rococó, outro pouco bota-de-elástico, estilo fim do século XIX. (...) Seria injusto tratar de crime esta pobreza franciscana, apenas ridícula e afrontosa no que representa de presumida e olvidada do que é.”
Um embaixador ignorado
No seu diário, Aquilino continua as diatribes contra Chagas: “Este senhor (...) sopra com todos os foles à intervenção de Portugal na guerra.” “Temos pois que Chagas tomou a sério o anunciado papel de fornecedor do talho.”
Que situação é a de Chagas no corpo diplomático? “Mais que apagada, de autêntico joão-ninguém”, afirma o escritor. “Como diplomata, não sabem que ele existe. Veio a mobilização, veio a guerra, negociou-se forte e feio nas chancelarias, e não houve acontecimento que o não pusesse de boca aberta. As notícias, soube-as como eu, lendo-as por um ‘sou’ na ‘Presse’, na ‘Patrie’, no ‘Intransigent’, no ‘Temps’. Ninguém teve para com ele a atenção e natural deferência que são devidas a ‘partner’ de qualidade, consultando-o, trazendo-o ao corrente dos factos, solicitando-lhe o concurso.
Sir Francis Bertir, embaixador de Inglaterra, a cujo carro pretende jungir o pobre e humílimo país, homem que celebram pelo perfeito trato, delicadeza, fidalguia de maneiras e de índole, não se lembrou que devia uma palavra de entendimento ou sinal do jogo que ia fazer ao representante da nação aliada à sua. Nem um bafo filtrou da majestosa Embaixada Britânica para a pindérica Legação de Portugal, quanto mais pedido de concurso ou palavras concertadas sobre este particular! Não, Chagas não existe como ministro de Portugal. Mora em Paris um antigo panfletário, homem que teve o seu talento e a sua voga, admirável cavaqueador, que se dá ao delicioso passatempo de coleccionar espécies bibliográficas, velhos e ignorados alfarrábios que falam da sua terra, e se chama João Chagas. Foi revolucionário estouvado, desenvolto, porventura, mas poucos como ele se sacrificaram ao culto dos princípios. Deu-lhe o vento da fortuna e tornou-se insuportável, cabotino, mais malcriado do que era, megalómano inclusive.” Contra aquele que apelida de “Metternich exótico”, Aquilino contrapõe as suas ideias pacifistas: “Declarar a guerra, atirar com milhares de pobres diabos para o maneta, exaurir o úbere chupado da nação, que é isso se há três — são três — magníficos graais a conquistar: glorificar o nome português, sacudir a suserania do leopardo, pagar o nosso tributo à civilização? E vai a gente buscar a envolvente materialidade de tais objectivos e apenas encontra fumo.”
“Chegaram de Portugal os jornais que mandei vir de 4 de Agosto em diante. Por eles foi-me azado avaliar do eco que encontrou no jardim à beira-mar plantado o conflito europeu”, regista o diário do escritor a 24 desse mês. “A impressão que me deixaram é que os poderes constituídos e as classes influentes têm da guerra uma consciência anacrónica, quixotesca, tais aprendizes de história pelo livro de Pinheiro Chagas [escritor romântico do século XIX, não relacionado com o embaixador João Pinheiro Chagas]. Uma grande rixa à espada e a mosquete, com algum sangue à mistura, que vai acabar na epopeia. O holocausto dos labregos a quem os interesses da França ou da Inglaterra são tão alheios como a mim as unhas da imperatriz da China, os sacrifícios da economia pública anémica e lazarenta, as possíveis serpentes que a reacção venha a colocar no ninho da gralha vaidosa, que é a democracia, não contam. Um alfobre de faquires e engole-sabres, este delicioso Portugal.”
Chagas levará a água ao seu moinho, mas de forma que nem a ele próprio agrada. Afirma em Julho de 1916 no diário: “Entendo que é absolutamente necessário disputar Portugal à Inglaterra, mostrá-lo como um aliado dos Aliados e não só desta. (...) Embora isto pareça paradoxal, o inimigo de Portugal nesta guerra é a Inglaterra. À política inglesa não convém que Portugal tenha individualidade, hoje, como não teve no tempo de Napoleão. É preciso combater este velho propósito, afirmando mau grado a sua individualidade.”
E o que Chagas desde sempre temeu — que Portugal fosse “arrastado” para a guerra, sem vontade própria, foi o que acabou por se verificar, nota João B. Seabra. A apreensão dos navios alemães, ordenada a 23 de Fevereiro de 1916, a pedido da Inglaterra, originou a declaração de guerra alemã, a 9 de Março.
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