terça-feira, 14 de junho de 2016






Maia Magalhães: um militar «democrático» na Grande Guerra e na resistência ao Sidonismo

 
Diogo Campos Rodrigues
 

 

 

 

 

 

 

Resumos

 

Apresenta-se um estudo biográfico sobre Maia Magalhães, analisando a sua participação na Campanha do Sul de Angola e na organização do CEP durante a Grande Guerra, assim como o seu subsequente envolvimento no movimento militar que derrubou a República Nova e sepulta a Monarquia do Norte. Por ser membro destacado da elite militar afeta ao Partido Democrático (PRP), Maia Magalhães afigura-se como objeto de estudo que permite compreender as redes de influência e rutura entre o aparelho militar e os poderes políticos vigentes de 1916 a 19
 
 

Texto integral

 
                
Introdução
 
1 - Este exercício biográfico centra-se no estudo e análise da vida de Manuel Firmino de Almeida Maia Magalhães, oficial do Exército com relevância militar e política assinalável por ter assumido, após a implantação da República, um significativo protagonismo na construção e defesa permanente do novo regime político.
2 - Descrito a 14 de outubro de 1910, com a expressão legitimadora «antigo republicano» na primeira página do jornal O Mundo (1), Maia Magalhães será um dos oficiais do Exército no qual a nova ordem política poderá confiar de imediato. Este jovem oficial responderá à expectativa nele depositada com uma longa e distinta folha de serviços. No seu percurso destacam-se diversas comissões de serviço militares de confiança direta dos Ministérios, a passagem pelo cargo de governador-geral, em Cabo Verde e em Macau, e por ter servido com distinção em posições estratégicas do aparelho militar na Grande Guerra, tanto África como na Europa. Mesmo após o 28 de maio de 1926, a República pôde contar com o coronel Maia Magalhães na oposição aos governos ditatoriais, como ilustra a sua prisão e processo político subsequente por ocasião da Revolta da Madeira, em 1931.
3 - Através do estudo de personagens intermédias na escala social, política, militar, como a que nos propomos examinar, que, «mandados pelos de cima», executam operacionalmente e em contato com a realidade as diretrizes políticas a que, por opção ou dever, obedecem, interpretamos a visão e os contributos destes co-protagonistas, permitindo compreender os fenómenos e fatores que presidiram e convergiram para a ocorrência dos acontecimentos, das ações e experiências em que tomaram lugar.
4 - É nesse sentido que definimos o objetivo de enquadrar e trazer à luz o papel ativo assumido por Maia Magalhães na Grande Guerra. Importa compreender a sua participação e ação no teatro de operações africano, nomeadamente na campanha do Sul de Angola de 1914-1915 e, sobretudo, o seu posterior envolvimento na construção e organização do Corpo Expedicionário Português. Para tal, acompanhamos detalhadamente o desempenho deste oficial nas duas comissões de que foi encarregue durante os 17 meses em que prestou serviço ativo na Flandres, assim como a sua visão crítica das mudanças de ordem política e militar que, de Portugal contribuíam para afetar direta ou indiretamente o funcionamento e ação do próprio CEP. O objetivo subsequente é explicitar a experiência de Maia Magalhães, primeiro como vítima da República Nova, depois como um dos seus mais declarados opositores no seio militar.
5 - Iniciamos com a realização de uma síntese biográfica da vasta carreira pública e militar deste oficial, traçando o seu um perfil global e enquadrando-o na realidade do seu tempo. As atitudes, reflexões e posições de Maia Magalhães estavam, naturalmente, intimamente correlacionadas com as convicções ideológicas que assumia e até mesmo dependentes do elevado grau de comprometimento que mantinha com a política partidária, tanto a nível individual como pela natureza particular que caracterizava todo o seu enredo familiar. A militância ativa que manterá nas fileiras do Partido Democrático influencia decisivamente a sua experiência ao serviço do CEP e alimenta a crítica, desconfiança e oposição que desenvolverá face à República Nova de Sidónio Pais. Justifica-se, portanto, que dediquemos um breve segmento deste estudo à análise específica da dimensão de Maia Magalhães enquanto elemento militar de plena confiança política dos «democráticos», onde procuraremos identificar as redes de solidariedade nas quais este oficial se inseria.
6 - Entre as fontes consultadas para a elaboração deste estudo demos primazia à documentação contida no «Espólio Maia Magalhães»; existente na Biblioteca Nacional de Portugal, ao «Fundo Particular Maia Magalhães», do Arquivo Histórico Militar, e à informação contida no seu «Processo Individual militar e Boletim Individual do CEP».
7 - Sobretudo relevante para a análise do período em que Maia Magalhães serviu no CEP e a sua oposição ao sidonismo é o vasto conjunto de correspondência particular dirigido à sua esposa, Helena Bravo Torres, publicado sob organização de Vitorino Magalhães Godinho. Da autoria do mesmo historiador, a obra Vitorino Henriques Godinho: Pátria e República ajudará a contextualizar todo um âmbito familiar de ligações ao republicanismo.

Um percurso ao serviço da República

8 - Manuel Firmino de Almeida Maia Magalhães nasce em Aveiro, a 7 de fevereiro de 1881. Descende de uma família representativa da média-alta burguesia do concelho e distrito de Aveiro, sendo filho de Maria José Vilhena de Almeida Maia e Magalhães e José Maria Barbosa de Magalhães. O seu irmão mais velho é o político republicano e jurisconsulto José Maria Barbosa de Magalhães, e o mais novo Fernando Barbosa de Magalhães, que o acompanhará na opção por uma carreira militar. Como futuro cunhado, o seu amigo íntimo e camarada Vitorino Henriques Godinho, com quem partilhará parte significativa do seu percurso como oficial do Exército.
9 - Desde cedo é atraído para a vida militar, ingressando como voluntário no regimento de infantaria 2, em 1897. Frequenta e conclui o curso da arma na Escola Prática de Cavalaria de Torres Novas, onde é louvado pela sua «dedicação e aproveitamento», sendo promovido a Alferes em 1902 e colocado no Regimento de Cavalaria 4. Após servir em vários regimentos da arma, é promovido a tenente em 1906, ficando habilitado com o curso do Estado Maior no ano seguinte (
10 - Desde fevereiro de 1910, encontra-se em Lisboa, como adjunto à Direção-geral do Estado Maior. Aquando da Revolução de 5 de outubro, Maia Magalhães, juntamente com os Tenentes Vitorino Godinho, Sant’Anna Cabrita e Lobato Guerreiro (entre outros elementos comprometidos com os revolucionários), infiltra-se no Quartel General da 1.ª Divisão Militar e contribui modestamente para o processo de implantação da República, ao cometer deliberadamente erros e delongas na transmissão de ordens com a finalidade de empastelar e descoordenar as comunicações e respostas realistas. Colabora assim para alimentar o clima de confusão e apatia que rodeava as ações do Quartel General monárquico. Coadjuvou para que os republicanos tomassem o Quartel General pacificamente por dentro, ao persistir e apoiar o desafio lançado ao aparentemente hesitante general António de Carvalhal para que assumisse a chefia da Divisão (3).
11 - Carvalhal, que segundo as memórias de Raul Brandão, tinha sido indicado diretamente por Cândido dos Reis como oficial de ideias republicanas, aceita a nomeação e a complexa responsabilidade do governo militar da cidade nos meses seguintes à iniciativa revolucionária. Apenas formalmente nomeado a 13 de outubro como adjunto à 1.ª Divisão Militar, mas nessas funções desde o dia 5, Maia Magalhães auxiliará Carvalhal na tentativa morosa de trazer a tropa de novo aos quartéis e acautelar quaisquer sinais de um contragolpe monárquico, assim como atenuar possíveis excessos de qualquer tipo que pudessem ser despoletados por grupos radicais de revolucionários paisanos. Em suma, este oficial empenhar-se-á no Estado Maior da 1.ª Divisão com o intuito de restabelecer a ordem militar, como condição tácita para a instauração efetiva do novo regime.
12 - A 21 de dezembro de 1910 é nomeado delegado do Governo Provisório da República Portuguesa, por Bernardino Machado e Correia Barreto, para o desempenho de uma missão secreta (4). Esta comissão, de importância política e militar inquestionável, remete-o para o Norte do país com a missão de orientar a republicanização das Forças Armadas, preparando-as para a resistência a possíveis iniciativas ou ataques monárquicos.
13 - Os anos de 1911 e 1912 marcam positivamente o percurso e carreira de Maia Magalhães, com a promoção a capitão, a 25 de novembro de 1911, mas principalmente pela nomeação, a 12 de junho de 1911, para chefe do Estado Maior das forças militares que, em Trás-os-Montes, combaterão as incursões monárquicas da Galiza, lideradas por Paiva Couceiro. Maia Magalhães descreve esta campanha contra os «conspiradores» como a «jornada gloriosa que consolidou definitivamente a República em Portugal» (5).
14 - Durante a primeira incursão, Maia Magalhães fez parte da coluna de 51 soldados de cavalaria que retomou Vinhais, a 7 de outubro, abandonada por Couceiro que retirava, invocando falta de armas e munições, para a raia espanhola. Perseguindo Couceiro até Casares, a coluna fiel ao governo trava breve escaramuça com os conspiradores, que estes últimos vencem, permitindo ganhar o tempo necessário para atravessar, sem serem perseguidos, a fronteira espanhola.
15 - Nos meses seguintes, Maia Magalhães, orienta parte dos trabalhos preparatórios da resistência no sector de Chaves, mantendo as suas forças em vigilância permanente às fronteiras do Minho e Trás-os-Montes.
16 - No ano de 1912, durante a segunda e última incursão de Couceiro, Maia Magalhães foi instrumental para a vitória final em Chaves. Ferido no «combate de Vila Verde da Raia», em 7 de julho, encontrava-se de cama recolhido ao aquartelamento quando Couceiro investiu, com forças superiores em número, contra a vila de Chaves. Maia Magalhães, «arrimado a um pau», levantou-se e «dirigiu com admirável coragem um ataque de flanco que muito contribuiu para o abandono da artilharia e derrota dos rebeldes» (6); o «combate de Chaves», que terminou a última incursão da Galiza.
17 - O feito de Maia Magalhães em Chaves, à época considerado de extraordinário valor militar, levou a que fosse louvado e condecorado pelo governo de Duarte Leite, assim como aclamado e louvado pelas câmaras municipais de norte a sul do país. Vasco Pulido Valente reconhece que Maia Magalhães foi durante as incursões da Galiza «o estratega republicano de turno»7, acusando-o sistematicamente de falhar em constatar «as evidências» das movimentações e tácticas de Couceiro. Contudo, as incursões monárquicas de 1911-1912 concederam a Maia Magalhães uma nova dimensão pública própria, mesmo que empolada pela propaganda e retórica republicana, transformando-o num herói da defesa de Chaves, o que lhe proporcionou reputação e glória, ordinariamente convenientes para conquistar prestígio dentro do aparelho militar.
18 - Regressado de Chaves, é enviado à Grã-Bretanha em setembro de 1912, integrando a missão de observação do Exército Português junto das manobras do Exército Britânico.
19 - No ano seguinte, desposa Helena Bravo Torres, natural de Chaves e filha de um oficial-médico, que será diretor do Hospital Militar do Porto durante a Grande Guerra.
20 - Depois da histórica sessão parlamentar de 7 de agosto de 1914, em que se definem as bases da condução da política externa face à eminente situação europeia, Portugal inicia os preparativos para a defesa dos territórios ultramarinos. O capitão Maia Magalhães é nomeado, a 22 de agosto, chefe do Estado Maior da Expedição Roçadas à Província de Angola; a 1 de outubro desembarca em Moçâmedes e apresenta-se novamente ao serviço na Metrópole a 17 de fevereiro de 1915.
21 - A partir de 9 de setembro de 1915, assume as funções de adjunto do ministro da Guerra, Norton de Matos, coadjuvando-o nos preparativos da política de guerra, de onde transita diretamente para o grupo de oficiais de Estado Maior, orientados pelo major Roberto Baptista, que opera as manobras, exercícios e organização, em Tancos, da Divisão de Instrução, futuro CEP. A 28 de março de 1917 embarca para França, integrando a missão de Ligação ao 1.º Exército Britânico, que apenas abandona para assumir a nomeação temporária como chefe do Estado Maior do Quartel General da Base de Retaguarda do CEP. A 15 de outubro de 1917 é promovido ao posto de Major e a 6 de agosto deu ingresso efetivo no quadro de oficiais do Estado Maior. Em outubro de 1918, no gozo da sua licença de campanha em Portugal, é preso pelas autoridades sidonistas, juntamente com outros oficiais politicamente próximos dos «democráticos», que inspiravam pouca ou nenhuma confiança ao novo regime.
22 - Nos finais de janeiro de 1919, ao mesmo tempo em que assumia um papel significativo para a queda do último governo sidonista, será nomeado chefe de Estado Maior do corpo de Exército comandado pelo coronel Pereira Bastos, com a finalidade de retomar o Porto e a região Norte sob influência monárquica (Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes) e deitar por terra a «Traulitânia» de Paiva Couceiro. Pela sua ação, primeiro em Monsanto, depois na campanha contra a Monarquia do Norte, recebe a Cruz de Guerra de 1.ª classe, sendo promovido a tenente-coronel a 10 de maio.
23 - De 18 de julho de 1919 a 11 de maio de 1921, servirá a República como governador da Província de Cabo Verde, onde se destaca no combate inglório contra a fome no arquipélago que, segundo descreve, levava o Governo a ter de sustentar mais de 25 mil pessoas. No cargo revela-se como um defensor das populações, procurando conter práticas e abusos das oligarquias locais. Mas a imagem que nos transmite da situação e vida na Província é desoladora, narrando durante uma viagem à metrópole em 1921, que «aquilo é a coisa mais pavorosa que se pode imaginar…», confidenciando inclusive que apenas lá regressaria «por honra da firma, porque a vontade não é nenhuma» (8).
24 - A 22 de setembro de 1921 ocupa o cargo de chefe do Estado Maior da 1.ª Divisão Militar, função que quer pela sua história desde o 5 de outubro, quer pelas competências que atribuía dentro do aparelho militar, se caracterizava como um lugar de confiança política. Só a 25 de setembro de 1924, será formalmente exonerado dessa comissão, tendo ainda servido, de 12 de fevereiro a 30 de abril de 1922, como chefe do Estado Maior da Guarda Nacional Republicana, indicado pelo governo de António Maria da Silva, que havia tomado posse no dia 7 de fevereiro. Vitorino Magalhães Godinho refere que, «pelo seu prestígio e ação enérgica evitou que esta força se sublevasse».
25 - No ano seguinte, Maia Magalhães aceita o convite de António Maria da Silva para ser chefe da repartição de gabinete, no Ministério da Guerra, situação que mantém de 27 de julho a 11 de novembro. Em abril de 1924, o tenente-coronel Maia Magalhães é nomeado chefe da Missão Militar Portuguesa a Madrid e acompanha a equipa de futebol da Guarnição Militar de Lisboa que, na capital espanhola iria disputar um desafio com a equipa da Guarnição Militar de Madrid. Esta missão, segundo Vitorino M. Godinho, «recebida a alto nível, assumiu contornos diplomáticos, por vezes delicados…» dado a Espanha, sob a ditadura de Primo de Rivera, manifestar posições a favor da união peninsular (9).
26 - A 18 de outubro de 1925, Maia Magalhães é requisitado como adi-
do pelo Ministério das Colónias, sendo empossado numa segunda comis-
são de serviço como governador colonial, desta feita para a Província de Macau.
27 - A maioria da documentação (diários, notas, relatórios, opúsculos diversos) que integra o seu «Espólio» na BNP, ainda não inventariado, é relativa ao período da sua administração de Macau. Durante o mandato, que se desenrola em vésperas do início da guerra Civil chinesa, Maia Magalhães enfrenta as ameaças que, tanto a dominação comunista sobre o Sul da China, como o regime de Tchang-Kai-Tchek, lançavam sobre o território português. Em matéria de governação, dinamizou as obras públicas e a economia da Província, impulsionando as obras do porto, preparando a 1.ª Exposição Industrial de Macau (7 de novembro a 13 de dezembro de 1926) e apoiando fortemente a organização hospitalar e a implantação comercial local.
28 - É exonerado do cargo, por decreto de 19 de junho de 1926, já em plena Ditadura Militar. De 1 de agosto de 1926, data em que regressou a Portugal, a 14 de dezembro, provavelmente por não ser conivente com a situação política, não realiza qualquer função ou comissão de serviço militar ou civil. A partir da última data, é colocado na 3.ª repartição da 3.ª Direção Geral do Ministério da Guerra, de onde transita para outras obscuras secções e repartições menores. A 12 de fevereiro de 1927 é promovido a coronel supranumerário da sua arma, sendo em abril e maio do mesmo ano indicado para vogal da Comissão de Recepção da Missão do Exército Espanhol, que nesta ocasião vem a Lisboa disputar uma partida de futebol, análoga à de 1924.
29 - A Ditadura mantém o Coronel Maia Magalhães em serviço activo, nomeando-o, nos finais de 1927, para uma última comissão relevante, embora envolta numa aura de prateleira dourada, como diretor dos Serviços Cartográficos do Exército.
30 - Maia Magalhães, pelo seu passado, pelas convicções ideológicas a que se mantinha fiel e pela rede familiar profundamente ligada aos meios oposicionistas, não aderiria politicamente ao novo regime. Por ocasião da «Revolta da Madeira», em abril e maio de 1931, o coronel Maia Magalhães é preso preventivamente no Forte de São Julião da Barra, sendo instaurado um processo político, por se temer a sua adesão a quaisquer repercussões no Continente (10). Em 1932, aos 51 anos de idade, desaparece prematuramente Maia Magalhães, vítima de paragem cardíaca durante uma intervenção médica no Hospital Militar de Lisboa.

Perfil político do militar «democrático»

31 - Identificámos três distintas redes de solidariedade e influência que influíram na vida política de Maia Magalhães, todas elas complexamente interligadas: uma rede familiar, extremamente politizada e que demonstra uma atuação coordenada entre os elementos familiares; uma rede militar, próxima do Partido Democrático, com génese em sectores específicos do oficialato do Exército, nomeadamente no quadro de Estado Maior e no grupo dos «jovens turcos»; e uma última rede de contornos mais vulgares, tradicionalmente partidários, de ligações estabelecidas pela militância política declarada que este oficial manteve após 1910.
32 - Maia Magalhães pertencia à família dos Barbosa e Maia de Magalhães, de Aveiro. Seu avô materno, Manuel Firmino de Oliveira Maia, apenas com a instrução primária, tinha realizado uma notável ascensão social, graças ao seu espírito empreendedor ligado à economia local e a uma amizade próxima com José Luciano de Castro. Foi presidente da câmara de Aveiro, governador civil, deputado e par do Reino. O pai de Maia Magalhães, José Barbosa de Magalhães, jurista, construiu uma carreira pública alicerçada em grande parte na influência do sogro, tendo sido eleito parlamentar progressista na Câmara dos Deputados e ocupado um conjunto de cargos políticos e administrativos de relevo no concelho e distrito de Aveiro.
33 - Maia Magalhães provinha de uma família com relevância política conquistada nas últimas décadas da Monarquia, que seria reforçada com a adesão entusiástica dos Barbosa de Magalhães ao regime republicano. José Barbosa de Magalhães, eminente jurisconsulto e seu irmão mais velho, é um dos homens que preconiza a dissidência progressista em 1905. A partir daí, aproxima-se dos meios políticos republicanos, tornando-se personagem da elite republicana e posteriormente, «democrática», servindo como parlamentar desde as Constituintes de 1911, tendo sido ministro tanto no antes como no pós-guerra, de três pastas diferentes (Justiça, Instrução Pública e Negócios Estrangeiros), em quatro governos «democráticos» da I República. Este seu irmão, a quem Maia Magalhães tratava com «afetuosa ironia» por «papá» (11), atua como chefe político da família Barbosa de Magalhães durante a República.
34 - Vitorino Magalhães Godinho refere que António Macieira, Egas Moniz, Afonso Costa, entre outras personalidades, frequentavam a residência de Lisboa dos Barbosa de Magalhães, local de tertúlias e debates políticos, onde Maia Magalhães temperava as suas convicções políticas, secundando a veia política do irmão. A este ambiente familiar, juntou-se por casamento com uma irmã, em 1902, Vitorino Henriques Godinho, mais tarde deputado e ministro «democrático», amigo íntimo de Maia Magalhães com quem partilhou inúmeros traços comuns na carreira militar.
35 - Ao contrário do irmão e do cunhado, Maia Magalhães não viria a sentir-se tentado por lugares parlamentares ou no governo. Nunca assumiu lugares cimeiros na vida pública na metrópole, mas esteve sempre comprometido com as lógicas políticas do Partido Democrático, articulando o seu papel no xadrez político e militar com o irmão e o cunhado (12), como prova a correspondência a que temos hoje acesso, em solidariedade com uma lógica familiar tipicamente burguesa, comum a outras famílias do espectro político dos inícios do século XX.
36 - A segunda rede onde este oficial está profundamente inserido é um grupo restrito, ainda pouco estudado, de jovens oficiais das Forças Armadas que, ao mesmo tempo em que propagavam bem alto os valores pátrios, representados pela lealdade, dever e comprometimento para com a defesa da República face aos seus inimigos externos e internos, assumiam simultaneamente opções políticas, ideologicamente comprometidas com lógicas de facção ou política partidária junto aos «democráticos»: os «jovens turcos». Magalhães Godinho diz-nos que este grupo se forma através dos «novos cursos de Estado Maior e do desenvolvimento da arma de Artilharia», em relação direta com os avanços científicos e tecnológicos da época, mas também em virtude do confronto com uma visão cosmopolita do mundo. O resultado foi um conjunto de jovens oficiais idealistas, defensores de uma concepção civilista das Forças Armadas, alicerçadas no serviço militar obrigatório e submetidas ao poder civil. Na outra face da mesma moeda, estava o entendimento de que os militares deviam ser considerados cidadãos de pleno direito político. Os «jovens turcos» acreditavam que era indispensável a sua participação na prática política, não só em assuntos militares, mas em tudo quanto dissesse respeito aos objetivos de republicanização e reforma política do país (13). A inserção neste grupo é mais um elemento que concorre para a aparição de Maia Magalhães como um dos oficiais que dentro do Exército, executavam e operacionalizavam as políticas do Partido Democrático.
37 - A última rede de solidariedade que identificámos é construída através da militância política assumida por Maia Magalhães. No seu «Espólio» da BNP, encontrámos o bilhete de identidade de Maia Magalhães como membro fundador, sócio n.º 141, do Centro Republicano Democrático de Lisboa. Este centro, inaugurado em 1911, era uma célula de base dos democráticos, usada para «a criação da rede sócio-política» (14) do novo Partido.
38 - Durante os primeiros anos da República, a atuação de Maia Magalhães centrar-se-á mais ao abrigo das duas primeiras redes, isto é, atuação política através do seu papel no Exército e em ampla solidariedade com a posição familiar, mas no período do pós-guerra aceita responsabilidades apenas compreensíveis pela sua cor política. Como exemplo, indicamos a sua nomeação pelo governo Sá Cardoso para governador de Cabo Verde, em 1921, e posteriormente um segundo alto cargo colonial, na Província de Macau, pelo último ministério de Domingos Pereira, em 1925. De facto, o nome de Maia Magalhães aparece na lista de ministeriáveis dos «democráticos»; António Maria da Silva, com quem mantinha relação política, insiste com Maia Magalhães para que este assuma o cargo de ministro da Guerra em novembro de 1922 (15). Recusando o convite do seu «prezado amigo» por motivos pessoais, aceita, no entanto, ser chefe de gabinete de António Maria da Silva, que acumula a Presidência do Conselho com a pasta da Guerra.
39 - É  no somatório destas três redes, em permanente conexão e interdependência, que esboçamos o perfil político de Maia Magalhães. A percepção da sua lealdade política aos «democráticos» ajudará a compreender a sua escolha para integrar a força expedicionária ao Sul de Angola e a forte ligação e orgulho que tinha na criação do CEP e na presença portuguesa na frente europeia, assim como a sua reação ao regime sidonista.

Expedição ao Sul de Angola (16)

40 - No governo «democrático» de Bernardino Machado, Maia Magalhães é escolhido pelo Ministério da Guerra para chefe do Estado Maior do corpo expedicionário que irá desembarcar em Moçâmedes, a 1 de outubro de 1914, com a missão de cooperar com as forças militares da província na proteção da fronteira sul de Angola com a colónia do Sudoeste africano alemão (Deutsch-Südwestafrika), separada em parte pelo rio Cunene dos à época recentemente e fragilmente pacificados territórios povoados pelos subgrupos da etnia Ovambo, Cuamatos e Cuanhamas. Chegada à colónia, esta 1.ª Expedição, composta aproximadamente por 1525 efetivos iniciais (contemplando 1 batalhão completo de infantaria 14, 1 bateria do 1.º Grupo de Metralhadoras, 1 bateria do Regimento de Artilharia de Montanha e 1 esquadrão de cavalaria 9), iria conhecer as dificuldades de «operar no interior de Angola, a 600 km do litoral, com uma linha de étapes de 400 kms», o que numa região sem ocupação colonial efectiva obrigava à profunda compartimentação e dispersão do efetivo militar ao longo da linha de étapes materializada em postos, fortes e destacamentos.
41 - Como Chefe de Estado Maior, a função de Maia Magalhães era superintender os serviços de administração militar e logística e auxiliar o comando, a cargo do tenente-coronel Alves Roçadas, oficial de mentalidade estratégica temperada pelas «campanhas de pacificação» coloniais. Parte da imprensa referia que a nomeação de Roçadas «não foi ministerial – porque foi nacional» (17), arrolando para essa interpretação o crédito dos seus sucessos em campanhas coloniais contra indígenas da década anterior. Maia Magalhães diz-nos que não foi dada oportunidade ao comandante para selecionar os oficiais do seu Estado Maior, sendo estes escolhidos com maior confiança política pelo ministro Pereira d’Eça.
42 - Defender a soberania, «fazer face a todas as eventualidades e não deixar indefesas as fronteiras do nosso império colonial mais expostas a um ataque alemão» (18), era entendido como dever nacional pela oficialidade pró-intervencionista de que Maia Magalhães é exemplo. Devido à ambígua posição política e diplomática portuguesa, provocando justamente dissensões internas no governo, as ordens expedidas diretamente da metrópole para Luanda, e daí para o comando expedicionário, excluíam quaisquer ações ofensivas e não eram claras em relação a operações defensivas na iminência de movimentações ou invasões alemãs.
43 - Este ponto fulcral para a atuação dos militares no terreno, abrirá um choque de perspectiva entre o comandante e o seu chefe do Estado Maior. Nas palavras de Maia Magalhães, Roçadas «(talvez nos fins de novembro) quando eu não estava junto dele, e com o que não concordei, foi transmitir um telegrama de Lisboa, com instruções para se não ultrapassar a fronteira, nem provocar os alemães caso viessem, antes pelo contrário os tratarmos com atenção e deferências, para evitar conflitos, dizendo até que deveríamos procurar estabelecer comunicação com eles para a Damara para lhes assegurar que não lhes éramos hostis.»
44 - A transmissão desta ordem por Roçadas, que Maia Magalhães impediu que fosse publicada oficialmente, mas que reconhece que não pôde obstar que passasse ao conhecimento geral dos oficiais expedicionários alicerça as diferentes visões entre os dois indivíduos que mais obrigação tinham em cooperar. Maia Magalhães é defensor da necessidade de uma defesa punitiva de qualquer iniciativa alemã dentro de fronteiras portuguesas, enquanto Roçadas, preso à cadeia de comando centralizada a partir de Lisboa, adota uma atitude no mínimo hesitante face ao emprego ativo de forças. Mesmo após a chegada de uma coluna militar alemã ao Calueque, a 12 de dezembro de 1914 (onde estava baseado um destacamento militar expedicionário), «o Roçadas não deu ordens para se não atacar, também as não deu para atacar, apesar de eu lhas ter solicitado». Nos dias 15, 16 e 17, as forças portuguesas do destacamento do Calueque continuam em inércia, perdendo «momento ótimo para os atacar, talvez momento único». Segundo Maia Magalhães, «não podendo já reprimir-me, em 17, disse ao Roçadas que era preciso sair daquela situação vergonhosa». Roçadas concordaria desta vez e Maia Magalhães estabeleceu um «plano de ataque», elaborou «o dispositivo das forças» e redigiu «as ordens e instruções para as unidades». Todas estas ações resultaram em vão, pois nesse mesmo dia foram informados da marcha dos alemães para leste na direção de Naulila. O resultado da dicotomia entre ofensiva e defensiva, condenou as forças portuguesas a sujeitarem-se ao avanço alemão, do qual resultou a resistência dada ao ataque de 18 de dezembro, no Combate de Naulila.
45 - Não cabendo aqui analisar o combate, importa relevar a ação individual de Maia Magalhães durante o mesmo. Em momento próximo do final do embate com os alemães, quando as forças portuguesas já se encontram parcialmente batidas e dispersas, Maia Magalhães ainda procura executar um contra-ataque ao flanco esquerdo adversário com apenas um pelotão de infantaria 14 e algum apoio da artilharia, «força que se reconheceu, sem demora, ser diminuta em excesso para tal ataque ter êxito» (19). Mais tarde, nos finais de 1918, Maia Magalhães recordará a «dura campanha de Naulila», afirmando que teve «a honra de ser o último a sair da posição de combate», não sendo feito prisioneiro pelos alemães (20).
46 - Maia Magalhães confessa a Augusto Casimiro que «antes do combate nunca me passou pela cabeça que poderíamos ser vencidos» e afirma ainda acreditar que Naulila poderia ter sido uma vitória portuguesa, «se outro tivesse sido o emprego das nossas forças no combate, se não fossem algumas iniciativas fora de propósito, que motivaram a desligação de todas as unidades na ação, e se não fosse a prematura ordem de retirada para a margem direita do Cunene». Como chefe do Estado Maior, conhecia as várias insuficiências e deficiências logísticas da força em operações ao sul de Angola. A Augusto Casimiro revela sem hesitação «a má organização defensiva de Naulila e a má preparação do soldado português», mas advoga que o resultado da ação de Naulila terá sido mormente derivado de fatores endógenos ao combate.

Maia Magalhães no CEP

47 - Regressado de Naulila e após breve passagem pelo gabinete de Norton de Matos, que o considerava seu «direto colaborador» (21), Maia Magalhães é nomeado, em 1916, chefe da 1.ª repartição do Quartel General da Divisão de Instrução. Nas suas memórias, recordando o período, Norton de Matos refere Maia Magalhães como um «dos oficiais que patrioticamente e devotadamente organizaram e dirigiram a Obra Militar que se realizou em Tancos» (22), isto é, a efetiva organização, preparação e instrução do corpo de tropas que virá a constituir a maioria dos efetivos do Corpo Expedicionário Português.
48 -Maia Magalhães embarca para França a 28 de março de 1917, persistindo em serviço durante 17 meses, por não lhe atribuírem licença de campanha. A sua nomeação original foi para membro da Missão de Ligação junto do Exército Britânico, mas acabou por destacar-se como chefe do E. M. do Q. G. da Base de Retaguarda do CEP, função para a qual seria indicado temporariamente e que ocupou de 24 de dezembro de 1917 a 11 de maio de 1918, regressando nesta data à comissão de origem. A 24 de agosto de 1918, regressará a Portugal no gozo de licença de campanha.
49 - Vejamos o papel de Maia Magalhães nas duas comissões militares em que esteve investido e as considerações que nos legou sobre o dezembrismo e a política de guerra sidonista. A interpretação que fazemos depende, no entanto, da fonte principal, neste caso a correspondência de Maia Magalhães, nem sempre regular, por alguma ter sido extraviada e outra apreendida pela censura.

Oficial de ligação com o exército britânico

50 - A 11 de abril apresenta-se no Quartel General do 1.º Exército Britânico, do qual o CEP dependia na hierarquia de comando, como adjunto do tenente-coronel Ivens Ferraz, chefe da Missão de Ligação com o Exército Britânico. Estes eram os dois únicos oficiais que constituíam a Missão, funcionando principalmente a nível de coordenação de serviços e apoio às necessidades do comando. As informações que Maia Magalhães regista da sua primeira passagem por esta função são escassas. Sabemos que em abril de 1917, visitou alguns Quartéis Generais de unidades dependentes do 1.º Exército Britânico, para conhecer o funcionamento de vários serviços militares ingleses, assim como os acampamentos dos prisioneiros alemães, que considerava «esplendidamente instalados» (23).
51 - Maia Magalhães entende que o papel da Missão seria «estabelecer a ligação entre o comando das nossas tropas e o exército inglês […], portanto tudo quanto o nosso Comando tinha de tratar aqui no exército inglês deve passar por nós». Tal não se verificou. Na correspondência do segundo período nesta comissão, relativa a junho e julho de 1918, Maia Magalhães reconhece a ausência de utilidade da Missão, «porque a situação actual não se presta» e porque «nem os nossos nos têm utilizado como deve ser». Atesta haver diariamente «pouco que fazer» e que, quando realmente se dava algum assunto importante a tratar entre os dois exércitos, o comando português tinha «receio de desagradar aos ingleses» (24).
52 - Maia Magalhães, indignado pela falta de aproveitamento que o CEP retirava da Missão de Ligação, responsabiliza diretamente o Comandante do CEP, Tamagnini de Abreu, de nunca ter percebido «qual o papel desta Missão» (25).

Chefe de Estado Maior da Base de retaguarda

53 - A 24 de dezembro de 1917, com o chefe do Estado Maior do Quartel General da Base de licença em Portugal, Maia Magalhães é nomeado provisoriamente para suprir o seu impedimento. No entanto, passa a efetividade de funções até ser substituído a 11 de maio de 1918 pelo seu amigo e camarada do E. M. Matias de Castro, porque o oficial que substituía ficaria em Portugal em nova comissão de serviço.
54 - Base de retaguarda era o nome dado a uma vasta área constituída pelo porto de desembarque, situado em Brest, e um amplo complexo de serviços de administração militar e material, hospitais e depósitos de tropas, entre outros, estabelecidos em Ambleteuse e outras localidades (26). Como chefe do Estado Maior, a sua missão era coadjuvar o comandante e superintender a administração destas estruturas. Nestas funções, Maia Magalhães encontra condições para «dar impulso e organização a todos os serviços da Base». Segundo regista, o comandante do Quartel General da Base «era só para o nome, nem figura decorativa era mas tinha ao menos a boa qualidade de tomar a responsabilidade de tudo o que eu fazia» (27).
55 - O desafio mais relevante que empreendeu em toda a sua passagem pelo CEP foi a montagem dos hospitais da Base (HB 1 e HB 2), onde assegura, em abril de 1918, que «faltam nada menos que 30 e tantos médicos», uns por terem ido de licença de campanha e nunca terem regressado, outros, apaniguados por elementos dezembristas, porque nunca tinham sequer chegado a embarcar para a Flandres. Maia Magalhães atribui culpa ao governo sidonista, tanto pela falta de médicos, como de cuidados diversos de saúde com doentes e feridos, sugerindo que Sidónio, querendo ganhar as eleições legislativas de 28 de abril de 1918, não se atrevia a enviar «os meios de ação necessários para todas as nossas necessidades» (28). Testemunhando a dedicação de Maia Magalhães na melhoria dos serviços de saúde e nos esforços para conseguir obter licenças de convalescença em Portugal para feridos graves, especialmente no ultrapassar das «ratoeiras burocráticas» da Base, está Jaime Cortesão, à época oficial médico miliciano (29).
56 - A acção pioneira de Maia Magalhães na Base prossegue, na fixação de procedimentos obrigatórios de higiene, na criação de um serviço de limpeza de arruamentos e acampamentos, recolhas diárias de lixo, na disponibilização de fardamento nacional aos soldados, oficiais e praças portugueses que ao serem tratados nos hospitais ingleses, apresentavam-se seguidamente ao serviço trajados com uniformes britânicos (30). O estabelecimento de hortas militares, para contrariar a carestia de acesso a produtos agrícolas, foi outra ideia concebida e mandada operacionalizar em terrenos
57 - Pela sua ação como chefe do Estado Maior deste Quartel General é louvado a 14 de Maio de 1918, sendo reconhecido pelo comandante da Base que era devido «às suas qualidades de trabalhador infatigável, inteligência e bom critério, a introdução de melhoramentos importantes nos diversos serviços e a execução de outras medidas de grande importância para o bom funcionamento da

Crítica ao dezembrismo e à política de guerra sidonista

 
58 - Maia Magalhães define-se desde o primeiro momento como opositor acérrimo ao golpe sidonista, acusando-o de prejudicar a imagem externa de Portugal nos meios políticos e militares Aliados. Caracteriza-o no extremo oposto à «revolução» de 14 de maio de 1915, empreendida para fazer retornar o país à vida constitucional. Nas suas palavras, o 5 de dezembro, «a pretexto de querer estabelecer a legalidade, começa por saltar fora da lei», dissolvendo os poderes do Estado constituídos com «toda a legalidade» (32).
59 - Acusa o movimento sidonista de nutrir apoios do universo germanófilo nacional, assim como congregar «perfeitas e completas nulidades» como Machado Santos, Moura Pinto ou Feliciano Costa, e promover a aproximação às hostes monárquicas, nomeando «talassas» assumidos para funções relevantes no aparelho político, civil e militar (33). Crítica duramente os governos sidonistas por ordenarem o regresso a Portugal de oficiais com comandos operacionais e funções valiosas no CEP., por simples conveniência política, nomeando-os para «boas e sossegadas comissões» (34). Alves de Fraga corrobora a nocividade absoluta desta prática para o esvaziamento de oficiais, apelidando-a de «sangria autorizada pelo sidonismo» (35). No reverso da medalha, Maia Magalhães denuncia a arbitrariedade e o embuste praticados com os oficiais «democráticos», considerados ameaçadores para o regime, que no cumprimento do direito de licença se dirigem a Portugal e recebem ordens, falsas, para o regresso imediato à Flandres, por suposta solicitação urgente do comando do CEP (36).
60 - Maia Magalhães, referindo-se ao desastre de La Lys, considera que as unidades portuguesas «fizeram tudo quanto puderam para resistir e se não se aguentaram mais na sua posição é porque os batalhões estavam já muito reduzidos de efetivos, e as tropas cansadas de tanto tempo nas trincheiras» (37). Desde dezembro, não vinham quaisquer reforços que possibilitassem as normas impraticáveis do roulement, entre o front e a Base (38). E como poderiam vir reforços? Numa consideração interessante, corroborada em várias cartas, este oficial afirma que o preço de algumas unidades para aderirem ao movimento de 5 de dezembro, teria sido justamente o compromisso de Sidónio de que não embarcariam para a Flandres (39). Para Maia Magalhães, oficial comprometido com o nascimento do CEP, a situação militar a que a unidade portuguesa tinha chegado já em finais de março, inícios de abril de 1918, era desoladora. Despromovido de Corpo de Exército para a categoria de Divisão e totalmente dependente dos britânicos, dificilmente se poderia considerar «representante de uma Nação livre» (4
61 - A par do sidonismo, Maia Magalhães considerava Tamagnini de Abreu corresponsável pelo estado calamitoso do contingente militar. Encarava-o como «todo deles», isto é, colaborante com o governo, afirmando que «o estado a que isto tudo chegou atribuo-o principalmente a ele que nunca soube impor-se aos ingleses nem a este governo, nunca compreendeu o seu papel aqui e nunca quis ouvir os seus oficiais de E. M. que lealmente o informavam e lhe indicavam o caminho a seguir» (41).

Prisão e resistência ao sidonismo

62 - Em Portugal desde 24 de agosto de 1918, no gozo da licença a que tinha direito, Maia Magalhães recebe a 20 de setembro um telegrama para se apresentar imediatamente no Quartel General Territorial em Lisboa, a fim de seguir para França por «solicitações instantes do Sr. Comandante do CEP». Sabendo de antemão do logro, por ser prática recorrente das autoridades dezembristas face a militares desalinhados com o regime, Maia Magalhães repele a ordem recebida da Secretaria da Guerra, que «representava uma arbitrariedade e violência», atribuindo-a a uma «injustificada perseguição política» (42).
63 - Apenas no término da licença, a 9 e a 14 de outubro, Maia Magalhães, irá apresentar-se no Quartel General Territorial para aí, legitimamente, receber guia de marcha de regresso ao front. Recebeu resposta de que a fronteira espanhola estaria encerrada, inviabilizando o trânsito de oficiais, pelo que regressa a sua casa na Senhora do Monte. No dia seguinte, 15 de outubro, Maia Magalhães é preso na sua residência, assaltada por polícias armados, sem qualquer consideração pelo procedimento inerente à prisão de um oficial do Exército, usando inclusivamente de práticas violentas, intimidatórias e vexatórias junto deste oficial e da sua família.
64 - Após permanecer dois ou três dias nos calabouços do Governo Civil, Maia Magalhães é enviado para o castelo de S. Jorge e, a 31 de outubro, era encarcerado no Forte da Graça, em Elvas, juntamente com o seu irmão, tenente Fernando Barbosa de Magalhães, e um grupo de cerca de 30 oficiais do Exército, entre eles Correia Barreto, Sá Cardoso, Pereira Bastos, André Brun, Álvaro Poppe, enfim, a elite dos militares «democráticos» presentes em Portugal. Um total de 81 civis partilhou o cárcere com estes militares. Muitos dos oficiais detidos em Elvas estavam no exercício de comissões fundamentais no CEP, caso de Maia Magalhães. As suas prisões, privando-os da comparência no front, representaram mais um duro golpe para o regular funcionamento da presença militar portuguesa na Flandres
65 - Maia Magalhães protestou recorrentemente contra a ilegalidade e iniquidade das prisões em curso, que considerava terem «sido feitas a torto e a direito», visando prender «republicanos, amigos de republicanos, inquilinos de republicanos, e até os guarda-portões dos republicanos» (43). A 15 de dezembro de 1918, data em que perfazia 2 meses de cárcere, Maia Magalhães assegurava que ainda não tinha sido ouvido pelas autoridades, nem estas o tinham sequer informado sobre o alegado motivo da sua prisão.
66 - Só em janeiro de 1919 os oficiais cativos em Elvas serão libertados, pela «fraqueza e ambiguidade do Governo Tamagnini», marcado pela desorientação causada pela morte de Sidónio Pais. Devolvidos à liberdade de ação, mas retidos nas tentativas que fazem para regressar ao CEP, a agora inevitável desagregação da heterogénea elite sidonista e a proclamação da Monarquia do Norte, abrem a oportunidade para os militares «democráticos» se organizarem numa dupla frente, primeiro vencendo o oficialato monárquico acantonado em Monsanto, o que influiu naturalmente para a queda do último ministério sidonista, depois seguindo para o Norte, a fim de sepultar o «Reino da Traulitânia» (44).
67 - Em ambos os processos, Maia Magalhães assume um papel de elevado destaque. A 23 de janeiro estabelece-se o Quartel General republicano em Campolide, comandado por Pereira Bastos, tendo como Chefe do Estado Maior o Major Maia Magalhães. A partir de Campolide, é um dos oficiais que organizam e comandam o contra-ataque republicano em 23 e 24 de janeiro, primeiro passo para a clarificação da futura situação polí
68 - A prioridade reside então no avanço de forças militares que retomem o Norte. Maia Magalhães, novamente como chefe de Estado Maior e principal auxiliar do comando, continua a acompanhar Pereira Bastos, nomeado comandante da coluna que entra em Aveiro, batendo-se militarmente com os revoltosos monárquicos em Águeda, Estarreja e Lamego, onde são destroçados. Depois da contraofensiva de Sarmento Pimentel que, com sectores da Guarda Republicana do Porto, consegue prender os cabecilhas monárquicos da cidade desmantelando as suas fileiras armadas, o governo republicano de Lisboa, para assegurar a fidelidade da guarnição militar do Porto, em que tem escassa confiança, nomeia Pereira Bastos para comandante da 3.ª Divisão Militar e Maia Magalhães como chefe de Estado Maior da mesma unidade (45). Assegurado o domínio político-militar do Norte, a República voltará à ordem constitucional. Maia Magalhães continuará a servi-la, como sempre o fez desde o 5 de outubro de 1910, como «oficial democrático».

Conclusão

69 - Procurámos traçar o percurso e perfil de Maia Magalhães, esboçando uma caracterização introdutória deste indivíduo, que permitisse resgatar os pontos mais significativos da sua relação com a I República. Membro de uma família da elite do Partido Democrático e inserido, por mérito próprio, na elite militar fortemente politizada e tecnicamente capaz, fenómeno que nos parece correlacionado com o corpo de Estado Maior, Maia Magalhães não se absteve da participação, particularmente armada, na vida pública nacional, tanto quando a República enquanto regime constitucional, como quando a «sua» República, entendida através das suas convicções partidárias, porventura facciosas, estiveram em jogo.
70 - Salientámos algumas das suas impressões memorialistas sobre a Expedição ao Sul de Angola, em 1914-1915, que relevam a inércia do comando e a ausência de postura ofensiva no geral, como fatores que permitiram o ataque alemão a Naulila, sujeitando as forças portuguesas, superiores em número às alemãs, a um papel de resistência e posterior derrota. Analisámos a sua participação na frente Europeia da Grande Guerra. Como um dos executores do planeamento, organização e constituição original do CEP, Maia Magalhães responsabilizou diretamente o sidonismo pelo abandono total das tropas portuguesas na Flandres. Chega mesmo a intitular a política dezembrista como «traição à Pátria».
71 - Demonstrámos a importância da ação de Maia Magalhães dentro do aparelho militar republicano, como defensor permanente da República. Assim procedeu em 1919, contra os insurgentes monárquicos e contra um governo «sidonista sem Sidónio», que ao mesmo tempo em que reassumia a Constituição de 1911, cedia à pressão das juntas monárquicas, caindo quase por si, dada a vitória republicana em Monsanto.
72 - Os «democráticos», tanto no antes como no pós-guerra, para além de possuírem uma sólida base sociopolítica organizada, nunca puderam prescindir do apoio de uma rede militar composta por personagens como Maia Magalhães, com o risco de perderem irremediavelmente o poder e a República.

Notas

1 O Mundo, 14 outubro de 1910, p. 1.
2 AHM/DIV/3/7/2204 – Nota dos assentos no registo de matrícula como oficial do Exército.
3 Godinho, Vitorino Magalhães (2005), Vitorino Henriques Godinho: pátria e república, Lisboa, Assembleia da República//Dom Quixote, pp. 52-53.
4 Esp. N72, cx. 3 – Biblioteca Nacional de Portugal – «Serviço da República».
5 AHM/FP21/6/301/2, rascunho de artigo de Maia Magalhães para o jornal República, e que não foi publicado em 1932.
6 Diário da República, 235/12 Série I, 7 de outubro de 1912.
7 Valente, Vasco Pulido (2006), Um Herói Português – Henrique Paiva Couceiro, Lisboa, Alêtheia Editores, p. 112.
8 Godinho, Vitorino Magalhães (2010), Correspondência da Grande Guerra. Coronel Manuel Maia Magalhães, Lisboa, INCM, p. 163.
9 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra…, pp. 32-33.
10 AHM/FO/033/1/459/2019 – Processo Político do Coronel de Cavalaria Manuel Firmino de Almeida Maia Magalhães.
11 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra…, p. 148.
12 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra…, pp. 165-166.
13 Godinho (2005), Vitorino Henriques Godinho…, p. 65.
14 Leal, Ernesto Castro (2008), Partidos e programas: o campo partidário republicano português, 1910-1926, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 29-30.
15 Esp. N72, caixa 2 – Biblioteca Nacional de Portugal – Carta; resposta de Maia Magalhães a António Maria da Silva.
16 Encontramo-nos actualmente a empreender uma investigação mais vasta sobre Maia Magalhães e a Campanha do Sul de Angola para fins académicos. No âmbito deste artigo abordaremos aspectos preliminares. Todas as citações não identificadas especificamente em nota de rodapé proveem de uma extensa carta de Maia Magalhães, de cunho memorialista, integrada no seu «Espólio» da BNP, escrita em resposta a Augusto Casimiro que lhe pede todos os esclarecimentos que julgue úteis para a elaboração da obra Naulila. Ver: Espólio N72, cx. 2 – Biblioteca Nacional de Portugal – Carta de Maia Magalhães a Augusto Casimiro, Sabrosa, Paredes, 28-12-1921.
17 Ilustração Portuguesa, 7 de setembro de 1914.
18 Casimiro, Augusto (1922), Naulila, Lisboa, Edição Seara Nova, p. 21.
19 Teixeira, Alberto de Almeida (1935), Naulila, Lisboa, Agência Geral das Colónias, p. 29.
20 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 142.
21 Matos, Norton de (2005), Memórias e Trabalhos da Minha Vida, 4.ª ed., Vol. III, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 254.
22 Matos (2005), Memórias…, p. 466.
23 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 46.
24 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 117.
25 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 119.
26 Martins, Ferreira (1934), «A zona de retaguarda» in general Ferreira Martins (dir.), Portugal na Grande Guerra, Vol. 1, Lisboa, Ática, pp. 287-288.
27 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 117.
28 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., pp. 85-86.
29 Cortesão, Jaime (1969), Memórias da Grande Guerra, 2.ª ed., Lisboa, Portugália Editora, p. 234.
30 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., pp. 96-97.
31 AHM/DIV/1/35A/1/01/0046 – Boletim Individual do C.E.P. do Capitão Manuel Maia Magalhães.
32 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 59.
33 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., pp. 60-65.
34 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 67.
35 Fraga, Luís Alves (2010), Do intervencionismo ao sidonismo: os dois segmentos da política de guerra na 1.ª República, 1916-1918, Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 502-503.
36 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 71.
37 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 88.
38 Fraga (2010), Do intervencionismo ao sidonismo…, pp. 330-331 e 505.
39 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., pp. 90-91 e 102.
40 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 100.
41 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 121.
42 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., pp. 151-152.
43 Godinho (2010), Correspondência da Grande Guerra..., p. 145.
44 Godinho (2005), Vitorino Henriques Godinho…, pp. 248 a 250.
45 Godinho (2005), Vitorino Henriques Godinho..., pp. 250-251.
 
 
 
 
Artigo retirado, com a devida vénia, da revista Ler  História
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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