Expresso
A diplomacia económica tem sido uma bandeira deste Governo. Mas foi Bernardino Machado, ministro dos Negócios Estrangeiros da I República, quem pôs em forma de lei este conceito. Saiba o que Machado pensava das “funcções” dos embaixadores e, já agora, conheça o português que se escrevia em 1910
Diplomacia económica é um daqueles conceitos que emergiu nos últimos quatro anos, e fez correr muita tinta nos discursos dos governantes e nas referências feitas pela comunicação social. Se estamos todos de acordo quanto à sua importância para promover exportações, parece que alguns se esqueceram de que importar e exportar são atividades estratégicas dos portugueses, desde o tempo em que nos lançámos na aventura dos Descobrimentos.
Há 105 anos, a diplomacia económica era um pilar integrante da grande reforma que Bernardino Machado, o primeiro homem a ser ministro dos Negócios Estrangeiros no novo regime, quis fazer. O objetivo deste português nascido no Rio de Janeiro em 1851 foi dar um cunho mais moderno e contemporâneo a esta importante atividade em qualquer Estado.
Com a implantação da República, no dia 5 de Outubro de 1910, foi imediatamente constituído um Governo provisório chefiado por Teófilo Braga e, Bernardino Machado, o político escolhido para conquistar o reconhecimento das nações para o novo regime.
Nos onzes meses em que Machado tutelou a pasta dos Negócios Estrangeiros, o homem que mais tarde viria a ser por duas Presidente da República, fez aprovar uma lei que passou a regular o funcionamento do ministério, as condições de admissão e progressão dos funcionários, redefenindo as prioridades da diplomacia portuguesa exigidas pela mudança de regime.
Machado tentou acabar com os embaixadores “exclusivamente occupados a transmittir, por meio de antigas formulas, cumprimentos de Governo a Governo, a assinar raras convençoes sem consequencias, ou a eventualmente legalizar passaportes e cartas de saude”. Se a atividade diplomática continuasse a passar [apenas] por estas funções, os funcionários “deveriam considerar-se muito pouco mais que inuteis”. O relatório preambular à nova lei, publicada em Diário do Governo a 7 de junho de 1911, é - ao mesmo tempo - um diagnóstico do que estava mal até então, e uma definição da estratégia de modernização que iria ser adotada.
Bernardino abandonaria a chefia do MNE três meses depois, a 3 de setembro desse mesmo ano, na véspera da tomada de posse de um novo Governo chefiado por João Chagas.
Para o historiador Nuno Severiano Teixeira, “o reconhecimento oficial da República foi um processo difícil e complexo que ocorreu em três vagas distintas e se arrastou por dez longos meses, com consequências graves sobre a situação do país a nível internacional e sobre a política interna em Portugal”. No livro “A Crise do Liberalismo”, Teixeira recorda que “a primeira vaga de reconhecimento oficial da República é quase imediata e vem das repúblicas sul-americanas, com o Brasil e a Argentina em primeiro lugar”.
Os EUA e a República Francesa foram os países que reconheceram a jovem República portuguesa na “segunda vaga” a que Teixeira se refere; no entanto, esse reconhecimento só aconteceu nove meses depois da queda da monarquia, entre junho e agosto de 1911. Para o fim, ficou a nossa velha aliada Inglaterra, e as outras monarquias europeias.
Apesar de ter falhado alguns dos seus objetivos programáticos, a República colocou em forma de lei o conceito de diplomacia económica que, cem anos depois, viria a ser tão utilizado pelos governantes do XIX Governo de Portugal.
Machado considerava que todos os países tinham algo para ensinar e que todos poderiam ser encarados como potenciais “mercados”. Por isso, não deveriam “supprimir-se os Representantes de Portugal em nenhum pais, devendo aliás sem duvida cessar, em todos, a immobilidade ornamental da sua mera presença diplomatica”.
MNE era o ministério com menos dinheiro
O dinheiro não abundava e o orçamento do ministério dos Negócios Estrangeiros era, “entre os de todos os Ministerios, o de menor despesa. Os orçamentos que precederam o que resulta da actual Reforma deixaram sempre de certo modo o publico sem o conhecimento claro do que realmente se tem passado”.
O novo ministro, que durante a monarquia tinha sido deputado pelo Partido Regenerador e ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria, queria que a despesa do MNE passasse a ser “util” e produtiva para o país. No entanto, na nova lei , não se esqueceu de lamentar que os seus funcionários não tenham sido aumentados, “como se fez num outro Ministerio: Não são neste, certamente, nem menos difficeis as funcções nem menos zelosos os funccionàrios”.
Para se “consolidarem e durarem”, as relações políticas têm de ter “uma base firme na mutualidade dos interesses. Por isso, na intenção da presente reforma, os diplomatas de Portugal deverão penetrar-se do estudo dos problemas economicos, ver-lhes de perto as soluções na pratica effetiva, estudando e tratando as questões politicas sem nunca perderem de vista as questões organicas do trabalho, adquirindo um completo conhecimento das matérias que, em toda a parte, especialmente interessam os serviços consulares. Consequentemente, o pessoal do Ministerio do Negocios Estrangeiros constitue, segundo a presente reforma, um só corpo de funccionarios que, no exercício de funcções, de complexidade e responsabilidade crescentes, passam através a lição e a pratica de todos os serviços, ou como que de todos os differentes capitulos coordenados, do que é, na verdade, uma só obra”.
Progressão na carreira
A admissão e progressão na carreira que saiu da pena de Bernardino Machado estipula que todos os funcionários do MNE entrem para a “Secretaria, depois de concurso, na qualidade de terceiros officiaes, e tanto quanto possivel trabalharão, em seguida, como consules de terceira classe, ou terceiros secretários nas legações”.
O trabalho será retribuído mas, em troca, exige-se que os funcionários sejam “responsaveis”. E só depois de darem provas poderão continuar “num mesmo tirocinio e estudo profissional, a subir os degraus de uma só hierarchia consular e diplomatica, até attingirem os altos logares de chefes de repartição, directores geraes e chefes de missão”.
A promoção deverá depender do “merito, que deverá ser sempre provado”; para evitar fraturas internas, a lei acautela as promoções por antiguidade no serviço, “sem que ninguem possa vir de fóra, salvo em casos excepcionaes e no extremo superior da promoção, privá-los da legitima recompensa de trabalhos”.
No papel, a República tentou criar “verdadeiros especialistas”, que seriam o garante de “uma carreira respeitavel e respeitada”, com consules capazes de assegurarem com profissionalismo todos os procedimentos administrativos e de se empenharem no “estudo dos assuntos economicos” dos países onde estivessem colocados.
A cargo dos consules ficava também a “propaganda internacional dos produtos commerciaes portugueses”, o que os transformaria em agentes privilegiados da diplomacia económica da jovem República.
“Os consules gerais virão periodicamente expor nos centros agricolas e industriaes de Portugal o estado dos differentes ramos de cultura e das differentes industrias dos paises onde estiverem acreditados, segundo as culturas e as industrias similares já existentes, ou a introduzir, em Portugal” [o termo cultura remete neste contexto para cultura agrícola].
UMA REDE EM FRANCO CRESCIMENTO
Bernardino Machado, queria que as nações estrangeiras conhecessem as cores da nova bandeira portuguesa. Por isso aumentou o “numero de agentes capazes de realizar as utilissimas funcções que ficam indicadas”. A jovem República, estava empenhada em fomentar uma diplomacia mais moderna, mais contemporânea e mais produtiva: “Vinte novos representantes consulares portugueses e de carreira são por ella criados”.
Conhecedor da importância hierárquica dos cargos a nível internacional, Machado defende o papel dos embaixadores, e explica porque é importante manter a terminologia, apesar de consules e embaixadores deverem trabalhar no mesmo sentido: “Denominando já hoje os seus representantes diplomaticos, nas mais importantes nações, consules - encarregados-de-nego-cios, em vez de ministros plenipotenciarios, Portugal iria até certo ponto desautoriza-los, collocando-os no degrau mais inferior de uma hierarchia que não lhe é dado supprimir. São estas as ideias que inspiram hoje os proprios paises que algum tempo pensaram reduzir a uma mais modesta forma a sua representação diplomatica. Suppõe-se, ao mesmo tempo, que ao titulo de consul corresponderá uma menor representação e, por isso, uma menor despesa nacional. Mas é este um outro engano. Nenhuma alteração no titulo poderá implicar diminuição nos parcos vencimentos sob diversas designações orçamentaes hoje recebidos pelos representantes diplomaticos e consulares de Portugal”.
Ciente da importância dos contactos sociais na vida de um diplomata, Machado lembra que “de pouco servirão consules ou ministros que se vejam forçados a recusar relações sociaes e a viver ignorados e quasi escondidos. É por meio das suas relações pessoaes e do seu convivio com os homens importantes dos paises onde estão acreditados, que diplomatas e consules obteem as mais completas informações, fazem a mais efficaz propaganda e podem exercer influencia fa-voravel á economia e á política dos paises que representam”.
A República também teve embaixadores de nomeação política, nomeadamente nas duas mais importantes embaixadas da época: Londres e Rio de Janeiro. O próprio Machado, depois de abandonar o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros, foi nomeado ministro de Portugal no Rio de Janeiro em 1912, apresentando credenciais como 1º Embaixador de Portugal” na capital brasileira em 1913, como se pode conferir na informação disponibilizada pelo Museu Bernardino Machado .
Em 100 anos Portugal tem cerca de 100 novas embaixadas
Nessa época, Portugal tinha 18 legações no estrangeiro, sendo sete delas dirigidas por ministros plenipotenciários de 1ª classe [numa explicação simples o termo ministro plenipotenciário pode ser utilizado para designar a função de embaixador]. No ranking dos postos mais importantes constavam as seguintes cidades: Madrid, Paris, Londres, Roma - Quirinal [Estado italiano], Roma - Vaticano, Berlim e Rio de Janeiro.
Em dez outras cidades as missões eram chefiadas por ministros plenipotenciários de 2ª classe e, a legação na capital do México, era dirigida pelo encarregado-de-negócios. A estas, juntam-se vários consulados.
Seis décadas mais tardes, no fim do Estado Novo, existiam 53 Embaixadas, seis missões multilaterais e 66 consulados ou consulados-Gerais, de acordo com dados do Anuário Diplomático 1972/73, fornecidos pelo gabinete do ministro Rui Machete.
O Governo de Passos Coelho, cujo primeiro ministro dos Negócios Estrangeiros foi Paulo Portas, utilizou o conceito da diplomacia como uma bandeira. Em julho deste ano, o atual titular da pasta dos Negócios Estrangeiros fez este balanço ao Expresso: “O MNE desenvolve duas vertentes da Diplomacia Económica: a primeira corresponde ao trabalho de negociação dos acordos e das convenções nas áreas económica e fiscal, que asseguram a infraestrutura jurídica indispensável para a realização e competitividade das exportações nacionais e a capacidade de atração de investimento estrangeiro para o País; a segunda, não menos importante e que foi essencial no período da intervenção externa ultrapassado por nós com sucesso, é o papel desempenhado pelas Embaixadas portuguesas na promoção da imagem de Portugal”.
Para Rui Machete, a “diplomacia económica é hoje uma vertente incontornável da atividade diplomática, potenciada por uma maior integração com a rede externa da AICEP. Para lhe dar um exemplo, desde o início deste ano a rede diplomática do MNE e a AICEP estão a reforçar as equipas em 26 países e a alargar a presença a 12 novos mercados, passando a AICEP a estar representada em 65 países”.
No seu blogue, o embaixador Francisco Seixas da Costa, escreveu em 2011: “Como um dia já disse, com choque em alguns ouvidos mais sensíveis, entendo que o MNE precisa de “menos Kosovo e mais batatas”, querendo com isto dizer que a diplomacia portuguesa tem de continuar o esforço já iniciado no sentido de infletir a sua focagem de prioridades, passando a perceber que a “política pura”, embora podendo dar-nos uma base interessante para um bilateralismo com vantagens, deve sempre apontar para uma visão objetiva dos interesses económicos que importa privilegiar, muito em especial numa situação de crise como a que vivemos”.
Não se pode falar de diplomacia económica sem recordar o embaixador Calvet Magalhães, autor de vários manuais sobre diplomacia, e que se empenhou em promover a diplomacia económica na segunda metade do século XX.
A história tem as suas ironias e não deixa de ser curioso que os governantes do XIX Governo, que tão bem parecem ter lido a lei de Bernardino Machado, sejam os mesmos dirigentes que acabaram com o feriado do 5 de Outubro, dia em que se comemora a implantação da República.
Cumprindo o sonho de Machado, a rede diplomática, em julho último, Portugal tinha “127 postos abertos; 70 Embaixadas (incluindo a secção consular da Embaixada em Islamabad), 9 Missões Permanentes, um Escritório de Representação, 37 Consulados-Gerais, dois Consulados e oito Vice-Consulados. Quando ficarem concluídas as aberturas/reativações que estão previstas passarão a existir 74 Embaixadas - 75 se a situação em Trípoli evoluir satisfatoriamente - , num total de 131 Postos, ou 132, tendo em atenção, uma vez mais, Trípoli”, de acordo com informações do gabinete do ministro.
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