XIV
A REVOLTA ACADÉMICA DE 1907
«Os reaccionários acusam-me de ser o
promotor de todas as revoltas da mocidade. Serei. Mas, professor, falo aos
estudantes como falo aos meus filhos. Na Universidade eu digo-lhes sempre: ela
deve ser para nós como uma segunda pátria; combatamo-nos dentro dela, mas sem
jamais a ferirmos, e que as nossas lutas internas sejam exclusivamente de
ideias, porque só essas são dignas de nós. Disse-o publicamente a primeira vez
que me coube proferir a oração chamada de sapiência, após um ano lectivo de
dissensões, em Outubro de 1885, já lá vão quase 22 anos. E tenho-o repetido
constantemente, ainda nos mais recentes dias. Porque serei então revolucionário
com os rapazes? Ah! É porque, ao mesmo tempo, voltando-me para os professores,
eu tenho também proclamado sempre: o estudante é um homem e um cidadão livre.
E, se quero que ele cumpra todos os seus deveres, quero, igualmente, que lhe
reconheçam todos os seus direitos.»
«Há quantos anos a mocidade académica faz a campanha
das suas liberdades? Não houve momento solene em que as não reclamasse,
frementemente. E, há quantos anos, de dentro do próprio magistério saem vozes,
pedindo-as, solicitando-as, instando por elas? Porque a verdade é esta:
libertar o aluno é libertar e dignificar também o professor; quanto mais livre
o ensino, mais o professor é um eleito do aluno que o segue. A desconfiança do
despotismo do professor, por parte do aluno, e a desconfiança da rebelião do
aluno, por parte do professor, este antagonismo que os põe em conflito, fazendo
com que o aluno vá até à insurreição violenta e o professor apele para as
repressões excessivas, provém do distanciamento em que vivem um do outro, não
se conhecendo bem, não podendo portanto deixar de frequentemente se ferir com
injustiças mútuas. E porquê? Porque não querem viver intimamente entre si? Não!
Porque não podem, porque o regime das aulas não lhes deixa essa liberdade. E a
prova está em que estes conflitos se dão principalmente na Faculdade de
Direito, onde ao estudo falta a observação e a prática, porque a Faculdade não
tem sequer, como devia ter, uma banca de consulta para pobres, e onde o número
de alunos por professor é tão exagerado que se torna quase impossível a livre
troca de ideias entre uns e outros, de modo que o ensino por causa do regime
tem de ser forçosamente automático, de catequese. Por isso é nela maior que em
nenhuma das outras Faculdades o distanciamento entre mestres e discípulos.»
“A
Disciplina”, in Pela Republica: 1906-1908,
Lisboa, Editor-Proprietario Bernardino Machado, 1908.
·
«Referindo-se à questão da Universidade de Coimbra,
conta que o Ministro das Obras Públicas [Malheiro Reimão], na resposta dada na
Câmara dos Deputados aos estudantes, lhes disse que voltassem à normalidade,
porque o Governo tomaria desde então em conta as suas reclamações. É o mesmo
que diz ao povo, e decreta leis como a da imprensa. Pois a ordem tem que
inverter-se! Satisfaçam as nossas reivindicações e depois entraremos na
normalidade.
Se em Coimbra houve excessos, actos condenáveis, esses
atentados devem ser cometidos ao tribunal comum e não a um tribunal
privilegiado.
O movimento académico foi semelhante ao da sociedade
portuguesa: é o mesmo incêndio das almas pela liberdade. Todos têm que lhe dar
o seu apoio. Ele próprio, como republicano e como professor, diz aos estudantes
que sejam dignos de si, e no dia em que a algum deles for imposta qualquer
condenação, mantenham a sua solidariedade. Se for expulso algum académico,
declara-o ali, enquanto as portas da Universidade se não abrirem em seu
desagravo, essas portas estarão igualmente fechadas para ele.
Devemos estar com os moços, sobretudo quando eles se
afirmam no sacrifício pela liberdade.»
“Inauguração
do Centro Eleitoral de Belém. A Questão Académica”, in Pela Republica: 1906-1908 – I, Lisboa,
Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.
·
«É preciso lembrar o princípio desta questão, diz-nos
o Dr. Bernardino Machado. Sete estudantes foram vítimas duma sentença injusta
ditada pelo mais descaroável despotismo. No seu julgamento preteriram-se todos
os direitos de defesa, não se lhes articulando sequer expressamente, para eles
poderem justificar-se, os factos da acusação. Isto numa Universidade onde há
uma Faculdade de direito, isto num processo judicial organizado por uma
Faculdade de Direito! E assim se condenaram, como chefes de desacatos contra
alguns lentes, estudantes que tenho a certeza de que só num momento de
exaltação os cometeriam, e que eram inteiramente incapazes de os planear e
dirigir. De um deles sei eu que nem estava na Universidade durante os
distúrbios. Poderá testemunhá-los um dos próprios lentes que se diz haverem
sido desacatados pela academia. Pois o acordam do conselho dos decanos afirma
que ele lá esteve, e expulsa-o por dois anos!
Que devia fazer a Academia perante tamanha injustiça?
Protestar. Foi o que fez quase unanimemente. Que devia fazer o Governo? Promover
a revisão da sentença para a causa ser de novo julgada com todas as garantias
de justiça. Confirmar-se-ia ou não o acordam dos decanos, conforme fosse justo.
E todos ficavam satisfeitos. Em vez de o fazer, o Governo manteve
encarniçadamente a sentença, usando para isso das armas ainda mais defesas, da
intimidação, do suborno, da intriga e da calúnia, armas defesas sobretudo
contra rapazes, contra o seu ânimo generoso, contra a sua cordialidade, que
para todos deve ser sagrada. Nem quando eles façam o mal, os havemos de
humilhar; mas, quando eles cumprem nobremente as suas obrigações de
camaradagem, abatê-los é um crime.
Porque procedeu com tão aleivosa parcialidade o
Governo? Seria ele o incitador da sentença?
O despotismo no governo da escola prepara e assegura o
despotismo no Governo da nação. E ambas estas formas do despotismo tem
perpetrado entre nós a Monarquia nos últimos tempos; de ambas tem tido por
principal executor o actual Presidente do Conselho de Ministros. De 1894 a 1897, o Governo do engrandecimento
do poder real centralizou o ensino primário, monopolizou o ensino secundário, e
desferiu os seus primeiros golpes na independência do ensino superior […]»
«Cumpre-nos neste lance proclamar bem alto que o
decreto com que o Governo mandou encerrar [a] matrícula nos estabelecimentos de
ensino superior, é, como todos os seus decretos ditatoriais, ilegal, e, como
tal irrito e nulo. Não obriga a ninguém, os professores não o devem executar;
nem confere direitos a ninguém, os estudantes devem desprezá-lo. Vai nisso a
hombridade de todos.»
“A Questão
Académica”, in Pela Republica: 1906-1908
– I, Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908; tb.: in A Universidade de Coimbra, 2.ª ed.,
Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908. [Entrevista com Mayer
Garção, Mundo, 6 de Junho de 1907.]
·
«Estou sempre no meu posto, em defesa da Universidade,
e tanto dos seus discípulos como dos seus mestres.»
«Ainda agora, ao rebentar deste conflito, àqueles com
quem pude falar, eu aconselhei a não deixarem nenhum dos seus companheiros
desacatar nem a Universidade nem os seus mestres.»
«Por isso, se, como disse, tenho a obrigação, tenho
também o direito e talvez a autoridade para intervir pelos estudantes junto dos
professores e dos poderes públicos, quando eles são injustamente tratados.
Fi-lo, estando o processo do actual conflito universitário
pendente do conselho de decanos, logo que os ofícios da reitoria a alguns
estudantes me inspiraram receio de desmedidos rigores. Protestei contra a
confusão da solidariedade de todos no movimento de reforma com a cumplicidade
colectiva nos desmandos individuais dum ou de outro, pondo mesmo na balança o
peso, embora diminuto, dos meus serviços. Infelizmente nada consegui: o
conselho de decanos levou ao cabo o seu deplorável propósito, condenando sete
estudantes expulsão como cabeças de motim.
Sem desnaturar a questão, eu tenho, portanto, agora de
reclamar do Governo que a resolva.»
«No caso presente, os desacatos, se os houve, foram
exclusivamente individuais; e não só a Academia não foi solidária neles, mas
repudiou-os formalmente em assembleia- geral, de modo que bem se pode dizer que
os seus autores ficaram logo punidos. Apesar disso, inventaram-se instigadores
desses excessos para se expulsarem da Universidade por um e dois anos. Não pode
ser!
Não quero fazer desta questão uma questão política,
muito menos no sentido irritante da palavra. O Governo, proclamando que não se
derrogará a sentença do conselho de decanos, é que a está fazendo, porque torna
necessária para a solução dela a sua queda.
Não teime! Seja lógico consigo. Há pouco ainda aconselhou
ao poder moderador a comutação da pena de expulsão dum aluno que o conselho de
decanos condenara também por agravos aos seus lentes, em oito dias de reclusão
na cadeia académica. Mais obrigado está moralmente agora a submeter o processo
à revisão do Conselho Superior de Instrução Pública; e, se não houver meio de
anular a sentença, recomende igual comutação de pena.»
«Senão, à violência legal do poder
responda a Academia com a resistência legal. Não vá ninguém às aulas. É o seu
direito. O ensino superior não é, nem pode ser obrigatório.»
«Penso também que, à custa da sua
independência e dignidade, nenhum rapaz deve cursar uma aula. Ou ensino liberal
do nosso tempo, ou antes nenhum.»
“Carta
aos Estudantes”, in A Universidade de
Coimbra, 2.ª ed., Lisboa, Editor-Proprietário, Bernardino Machado, 1908.
·
OFÍCIO DE EXONERAÇÃO
Ilm.º e Exm.º Sr.
Tenho a honra de apresentar a V. Ex.ª a minha
exoneração de lente catedrático da Faculdade de Filosofia da Universidade de
Coimbra.
Deus guarde a V. Ex.ª, Il.mo Ex.mo
Sr. Reitor da Universidade de Coimbra.
Coimbra, 16
Abril de 1907
Bernardino Luís Machado Guimarães
“Oficio
de Exoneração”, in A Universidade de
Coimbra, 2.ª ed., Coimbra, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.
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