segunda-feira, 5 de agosto de 2013



Do blogue do Dr. Amadeu Gonçalves - dopresente - clicar aqui - transcrevemos o texto escrito por José Frederico Laranjo, sobre Bernardino Machado.

Para o meu querido amigo Amadeu um apertado abraço de gratidão!

José Frederico Laranjo

“Ao fim duma tarde calmosa de Junho ou Julho, no ano terrível da França e de Victor Hugo, entrava em Coimbra no meu quarto, de cuja janela amplamente aberta se viam algumas das ínsuas verdejantes da margem direita do Mondego, alguns dos seus regatos límpidos e das suas ilhotas fulvas de areia, um estudante simpático a todos os outros e que todos conheciam por um só nome – O Bernardino. O Anuário da Universidade teria talvez homónimos; mas o pronome assim, só, sem apelidos, não o deixava confundir; era um reconhecimento de talento e um distintivo de afeição. / – Feche lá a janela – disse-me ele. / «Porquê? É tão agradável tê-la aberta!» /  – Porque me parou de repente o suor com uma rajada de vento ali na Rua Larga, e sinto uns arrepios. / – «Ah! Sim? Pois fecha-se a janela. Mas isso passa depressa, acrescentei, com o riso dos que tendo boa saúde não acreditam nos sofrimentos dos outros, senão quando são evidentes. Passa depressa, verá; vamos ler um pedaço.» / E da estante em que se enfileiravam filósofos, desde Platão, Aristóteles e Plotino, passando por Bacon e Descartes, até Kant e Hegel, Comte e Spencer, sonhadores que vão adiante da humanidade como aquele nuvem de fogo ou de fumo que dirigia os hebreus no deserto, tirei um livro, o tomo 2.º das obras de Platão. / «Vamos ler um destes diálogos. Há-de ser o primeiro Hípias ou Do Belo.» / Líamos e trocávamos observações. O encanto daquela prosa, rítmica, melodiosa, apesar da tradução, sóbria de adjectivos e proporcionada em tudo, como a de todos os grandes escritores gregos, fez-lhe depressa olvidar a preocupação, e o facto, que pode parecer singular, não era fortuito, mas característico. / De estatura regular, delgado, seco, nervoso, cabeça poderosa num corpo débil, a imaginação, baseando-se nalguns sofrimentos reais, percorria-lhe nas horas de ócio a órbita das doenças; mas no estudo ou na leitura, o corpo e o espírito estavam a postos e velavam, atentos e vivos, sem fadiga, sem bocejos e sem distrações, o necessário para ser dos primeiros nas aulas e ainda nas palestras e contendas literárias. / Cursando ao mesmo tempo na Universidade a Faculdade de Matemática, onde foi até ao terceiro ano e onde teve partidos, e a de Filosofia, em que teve distinções e accessits, e em que se doutorou, não se deixou enredar nas linhas de geometria e nos hieroglíficos da álgebra, não perdeu de vista, levantado nas espirais do cálculo, a terra e os homens, nem nas experiências da física e da química se lhe embotou o instinto do belo, o sentimento do gosto e a admiração da arte; o seu espírito prendia-se por igual a tudo em que havia uma parcela de verdade ou um fio de glória, e se parecia que aquele corpo franzino podia com pouco, via-se que cabia muitíssimo naquele cérebro vasto. / Filiou-se cedo no partido Regenerador, sendo padrinho do seu doutoramento Fontes Pereira de Melo; esse doutoramento olhava para as cadeiras da Universidade por direito e para as eminências da política por aspiração. / Como lente, regeu distintamente a cadeira de Física, a de Química e a da Agricultura, depois substituída por proposta sua pela de Antropologia. Ramalho Ortigão, que visitou Coimbra por este tempo, dizia dele, para um jornal do Rio de Janeiro, que tinha uma reputação estabelecida de grande talento e de vasta erudição; que era um dos mais célebres representantes do professorado; que era citado como um dos tipos mais perfeitos do erudito moderno, versado em toda a história do experimentalismo das novas escolas, na ciência filosófica e na literatura; e, traduzindo um pouco do seu modo de ser, da correcção das suas maneiras e da suave idealização que dava às coisas, Giner de los Ríos, escrevia dele nas Dominicaes do Livre Pensamento que nos seus lábios Zola parecia um místico e os ímpetos dos oradores revolucionários espanhóis trechos de poesia oriental. / Nada do que fosse humano ele queria com efeito que lhe fosse estranho: de manhã demonstrava, por exemplo, dando á roda da sereia acústica que o som, em chegando a uma certa altura, se torna imperceptível; à tarde discutia o último romance de sensação, recordava os versos de bronze e de aço de Victor Hugo, ou a prosa, doce como o mel de Himeto, do diletantismo musical e vago de Renan. / Muita inteligência, muita bondade, muita vontade eram então e são hoje a síntese da personalidade de Bernardino Machado, e raras vezes uma alma se espelhou tão clara, tão visível e tão evidente numa fisionomia. Na testa ampla adivinha-se-lhe o poder e a largueza do pensamento; nos olhos pretos, rasgados, de olhar direito, vivo e suave. A lealdade do carácter e a agudeza do engenho; a luz desses olhos e o sorriso que se abre facilmente, natural e sincero, quando encontra um amigo e quando fala, iluminam-lhe o rosto pálido e traduzem a bondade do coração; e na oval estreita, quase, quase aguda e proeminente barba, revela-se, sem possibilidade de engano, a força e a firmeza de uma vontade, que lhe impõe uma disciplina severa e uma higiene rigorosa para uma vida de trabalho, que acorda com a manhã, e, ao mesmo tempo, é capaz de todas as resistências aos outros, quando sejam precisas, pelo convencimento da bondade de uma causa ou por um sentimento de dignidade que se respeita e não quebra. Destas qualidades e de poucos acidentes deriva a sua carreira. / Da Universidade veio para a política e para Lisboa, deputado e vogal ordinário do Conselho Superior de Instrução Pública, dando-lhe depois os estabelecimentos científicos a honra, que concebem a poucos, de o elegerem seu representante na Câmara dos Pares. O funcionário e o político continuaram o professor, e ele pode dizer com verdade o que escreveu na advertência do seu livro Afirmações Públicas: «Uma coisa entre todas me preocupou sempre, quando mesmo me não ocupava: a causa do ensino.» / As questões de quem sobe e quem desce, desta ilegalidade e daquele abuso, deste escândalo ou daquela intriga, deste benesse ou daquele mexerico, o aproveitamento para elevação própria de circunstâncias pouco prósperas do país, carregando-se como faltas aos adversários; assuntos os mais clamorosos, os que dão mais nome, os que mais fazem subir, não o atraíram nunca, e nas lutas dos rudes ataques e das defesas apertadas e a todo o transe, o seu papel foi nulo ou esmaecido; nunca foi o Temístocles de nenhuma Salamina em que se jogassem os destinos de um partido; nunca esteve nas Termópilas a defender um ministro, para salvar a existência de um gabinete ou sequer o prestígio do poder; capaz de se bater, sem cálculo, mas por tendência natural, escolheu, reservou para si uma região, em que se podem levantar grandes tempestades, mas que de ordinário se conserva serena – a da instrução pública. /Aí esteve sempre presente, no parlamento e fora dele, fomentando-a, dirigindo-a, incitando-a, animando-a por todos os modos por que podia, pela discussão das propostas governamentais. Pelos projectos de iniciativa própria, pelas conferências nos ateneus, pelos discursos nos centenários, pelos congressos de professores, pela correspondência com pedagogistas estrangeiros, pela visita e direcção de escolas, pela convivência e amizade com mestres e alunos. Nesta época de cepticismo tem uma crença, nesta maré de indiferença uma paixão, a crença no valor do pensamento, a paixão do bem por meio da escola, compreendendo-se nesta palavra a primária, a secundária, a superior e a profissional, a ideia geral que civiliza e a ideia técnica que aviventa os ofícios, o sol que faz crescer a riqueza de um país. / O que predomina no seu corpo é a cabeça, por isso a sua religião é o pensamento. «Quanto pode a inteligência!» – escreveu ele. «Nós só um ideal tivemos; a princípio nem passava de uma quimera, e imortalizou-nos o nome!» Com um tal programa, parece que a pouco se poderia chegar no nosso país; todavia, achou por meio dele, no estrangeiro, relações que lhe dão nome e na pátria uma clientela numerosa e dedicada de professores de diversas classes. / Nalgum fim de tarde, ide ao seu rés-do-chão da Rua da Junqueira, longe do Terreiro do Paço e perto da praia do restelo, onde se estabeleceu para se obrigar a grandes caminhadas, compensadoras da vida de estudo, apedar de estudar de pé e, enquanto a esposa lida nos preparativos do jantar e os filhos acabam as lições de línguas ou os exercícios de um ofício, carpitejando como S. José, podereis a maior parte das vezes entreter-vos no jardim com professores portugueses e com algum estrangeiro instruído, ou que esteja em Lisboa de passagem ou do quadro das escolas industriais. / neste caminho e com esta clientela teria achado o que parecia que procurava – a pasta da instrução pública – se a política do país lhe não lhe tivesse feito bancarrota; não foi, porém, dos credores mais infelizes; se não lhe pagaram na moeda de ouro que ele queria, deram-lhe pelo menos setenta por cento – o Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria. / Agora sinto o rumor das reclamações que suscitaram os seus actos; ouço a graça nacional, em crítica alegre ao ministro, na sonhada perspectiva de uma queda próxima, vestir-se, transmudando-as um pouco, nas estrofes heroicas e nas rimas amorosas de Camões, e pequenos empregados perguntam-me com olhos rasos de água onde está a bondade da sua alma, a bondade que eu afirmo, a origem da via láctea das simpatias que o cercavam. / Esse pacífico, de quem Giner de los Ríos dizia, errando, e de quem muitos pensariam, que não perturbaria nada, correcto no trajo e no procedimento, sem nódoas num e noutro, irrepreensível na alvura do seu colarinho e da sua vida, desarrumará tudo que julgar mal arrumado, se o deixarem, tomando sempre a sério o seu papel. / Diante de um problema qualquer de administração não ficará pasmado, como um idiota, nem com a indolência invencível de um temperamento ou com o egoísmo de um horaciano, que só quer a vida e as honras para as gozar, dirá ao tempo – resolve tu as coisas. No início de uma carreira, num momento atormentado de necessidades que colidem, não é estranho que não encontrasse logo o ponto luminoso e único salutar de reforma em que a simplificação dos serviços e a diminuição importante de despesas se combinam com a equidade devida aos homens, sobretudo aos que não têm por broquel da sua justiça senão a justiça e a piedade dos outros; mas, em vista se lhe afeiçoando à escuridade própria das complexas questões que lhe foram entregues, cremos que a energia e a ousadia da sua vontade obedecerão acordes ao seu pensamento e ao seu coração, e o tempo do seu ministério não será, nem perdido para o seu nome, nem inútil para o país.”
LARANJO, José Frederico - “Bernardino Machado” [material gráfico]. José Frederico Laranjo. In A Semana de Lisboa: suplemento do Jornal do Commercio. Lisboa, n.º 27 (2 Jul. 1893), pp. 1-3.

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