Memórias
Primeiras páginas, não continuadas, de memórias da infância de Bernardino Machado, ditadas a uma das suas filhas (Joaquina?), talvez em Paredes de Coura em 1941-42
Nasci no Rio de Janeiro, em 28 de Março de 1851, na rua do Hospício, em frente do estabelecimento comercial de meu Pai e fui baptizado na Igreja da Candelária, sendo padrinhos os meus Avós maternos.
Meu Pai, António Luís Machado Guimarães, nasceu em Joane, concelho de Vila Nova de Famalicão, filho de Domingos José Luís, lavrador, proprietário da quinta da Torre de Cima. Distinguia-se como agricultor. Ele mesmo, já velho me explicava como, antecipando-se aos progressos da zootecnia, alimentava o seu gado, nos magros anos de seca, com uma mistura de palha e gomos de silva pisados fazendo-o medrar no meio da admiração dos conterrâneos. Era engraçado o ar que tomava de quem não ouvia, quando os velhos da freguesia o salvavam, não pelo seu nome, como se ainda o não tivesse, mas pelo dum dos seus antepassados, que haviam conhecido talvez mais, o Senhor Gregório.
Ia regularmente de manhã à missa, mas, se lhe acontecia faltar, defendia-se: “Tenho já uma boa conta delas”. Discutindo economia política, professava com bonomia a doutrina fisiocrática: “Nós é que trabalhamos para todos”. Nunca jogar, mas vindo o Rodrigues de Menezes, irmão mais velho de meu querido condiscípulo Inácio de Menezes, convidar-me, na Póvoa de Varzim, para fazer uma vaca à roleta, pedi-lhe que entrasse, por mim, com duas coroas (mil reis). Abriu logo, complacentemente, a sua bolsa de camurça, entregando-mas: “”Toma lá”, sem a menor esperança, via-se bem. O Rodrigo, como de costume, depois de ter feito prodigiosos lances de azar, acabou por ir a pique. Procurei meu Avô Domingues, e, dramatizando-lhe a batalha – o Rodrigo levando quase à glória a banca – antes de lhe dar a notícia da derrota, ao chegar ao desfecho final, exclamei: “Lá perdi tudo”, o que ele, com risonha resignação, emendou: “Tu não perdeste nada”. O seu torrão, amava-o ciumentamente. Patriota, toda a indignação lhe subia ao rosto ao narrar as carradas de milho que a lavoura, por ordem dos capitães-mores, teve de levar à cidade do Porto, para abastecer o exército francês. A esposa, minha Avó Joaquina, pertencia à família Machado, de Cimo de Pele, que se ramificou também por Joane, Castelões e Ruivães, no concelho de Vila Nova de Famalicão, Ronfe (Casa das Cartas), no concelho de Guimarães, e no de Barcelos por aliança com os Barrosos. A povoação inteira de Joane adorava-a. Tiveram, além de meu Pai, filho mais velho, duas filhas, Joana, herdeira da bondade da mãe, muito esmoler também, e Rosa, com a vivacidade e bom humor do pai, e dois filhos, um, Narciso, e outro que não cheguei a conhecer.
Meu Pai quis dedicar-se à vida comercial e foi praticar para casa de um tio, por parte da mãe, negociante em Guimarães, na Praça do Tourel, cujo último representante conheci em Coimbra, onde se formou em Teologia, o Dr. Machado, modelo de sacerdote cristão. Pouco durou essa aprendizagem, e, receoso de que meu Avô lhe reprimisse a impaciência, surgiu de improviso na Torre de Cima. Como fossem horas de se ir descansar, deu boas noites e escoou-se para o seu quarto, limitando-se também o pai, para não afligir a esposa, deitar-lhe a bênção. No dia seguinte porem. Muito cedo, ouviu-se a sua forte voz para um dos moços da lavoura: “Traz duas enxadas”, Uma, já se calcula para quem era. Meu Pai, que queria continuar no comércio num meio maior do que Guimarães, solicitou nesse mesmo dia a terna intervenção da mãe para ir tirocinar no Porto. E à activa cidade, empório mercantil do norte, partiu, passado algum tempo, ao fazer vinte anos de idade, já bem preparado profissionalmente, com esperançoso assentimento dos pais, cortado embora das saudosas lágrimas materna, num barco de vela de navegação portuguesa para o Rio de Janeiro. As longas viagens de então, meses e meses sobre o mar! E que seria dele depois na labuta pela vida no Brasil? Quanto pode a forte vontade da nossa gente!
Com a imagem sagrada do lar pátrio no coração, foi recordando reconhecidamente as lições que recebera em Guimarães e no Porto e sobretudo as do seu mestre das primeiras letras em Joane, de cuja aposentação ainda dedicadamente logrou tratar, logo que regressou de todo, vinte anos depois, a Portugal. Quantas vezes, passando por diante da casa, que fora da escola, ele me encarecia até as correcções, em que pelas suas travessuras incorrera, e, apontando-me um penedo cortado quase a pique, exclamava com alegria infantil: “As vezes que rasguei os calções, escorregando por ali abaixo!”E, já com outro semblante e outra voz, lastimava: “Os trabalhos que dei à minha pobre mãe!”
Chegado ao Rio de Janeiro, nem um dia esteve de caixeiro, porque, com as suas habilitações, a fortuna deparou-lhe logo uma excelente família brasileira, o Senhor Inácio e a Senhora D. Alexandrina, mulatos, armadores de igreja, moradores na R. do Hospício, que o adoptaram simpatisantemente, como se ele fosse seu filho.
Estabeleceu-se na mesma rua numa das casas do comendador Costa Lima, pessoa muito estimada, conhecida pela antonomasia de menino de oiro, porque os pais, vendo-o quase a morrer em criança, fizeram a promessa, que cumpriram, de dar em oiro ao santo da sua especial devoção um peso igual ao do doentinho, se ele chegasse a restabelecer-se. Nessa casa fez meu Pai toda a sua carreira comercial. Ainda lá se conserva de lembrança o seu pequeno mostrador, primitivo, de fazendas.
Pouco depois de se estabelecer, casou com uma senhora afilhada dos seus protectores, que sucumbiu à tuberculose, deixando-lhe dois filhos, Inácio e António. E, em 1850, unia-se em segundas núpcias com minha Mãe, D. Praxedes, filha de Bernardino de Sousa Ribeiro Guimarães e de D. Maria Manuela de Machado Lima. Deste casamento nascemos eu e os meus dois irmãos mais novos, Praxedes e Narciso, falecidos em muito tenra idade.
Meu Avô Bernardino, viera da sua casa da Maia, ao pé do Porto, para o Brasil, atido ao valimento do irmão mais velho, que, tendo ido no séquito de D. João VI, constava achar-se bem colocado na corte. Não sei que regalias patrimoniais desejava que o primogénito lhe transferisse. Mas nada conseguiu. E, proporcionando-se-lhe ensejo de ganhar a vida na cidade do Rio Grande do Sul, seguiu para lá, onde casou com minha Avó, senhora pertencente a uma família do Paraná, de antigos colonos portugueses, que teve longamente na sua mão o governo de aquele Estado. O último governador foi, ainda nos primeiros anos da República, o nosso parente, Dr. Vicente Machado, cuja viúva conheci no Rio de Janeiro. Dera-se mesmo um caso sentimental interessante. Por vezes, meu filho Bento, que teria seis anos, nos falava carinhosamente duma menina muito meiga, sua companheira de colégio na rua de Buenos Aires, em Lisboa, e viemos depois a saber pela mãe que era uma das filhas do nosso primo Vicente, que ali as deixara para começarem os seus estudos durante o tempo que ia demorar-se em França, a tratar-se da grave enfermidade de que veio a morrer já no Brasil.
Minha Avó tinha do seu primeiro matrimónio dois filhos, um, rapaz, capitão de navio, que pereceu num naufrágio, e minha tia Joaquina, que casou com o Senhor Agostinho Dionísio dos Santos, indo, anos depois, ambos residir em Lisboa, R. Ocidental do Passeio, nº 96, numa casa com fachada também para a praça da alegria. Do casamento dos meus Avós maternos nascera minha Mãe e sucessivamente minhas tias Bernardina, Edwiches e Olímpia.
Meu Avô Bernardino precisou de ocupar-se dumas demandas jurídicas que lhe corriam no Rio de Janeiro, e, como pela sua capacidade, se saísse delas vitoriosamente, varias pessoas do Rio Grande do Sul, que tinham também questões pendentes do Tribunal Fluminense da Relação, confiaram-lhas. Por isso, tornando-se de ofício procurador de causas forenses, para o que deu provas publicas de competência, mudou a moradia para a capital do Império. Meu Pai chamava-me para eu o ver passar montado numa mula, acentuando-me: “Olha que é o único procurador que anda a cavalo.” Tal a reputação que granjeara…Os seus dons intelectuais eram notáveis. Da sua prodigiosa memória contava-se que, em pequeno, chegando dum sermão religioso, o repetia textualmente com grande expressão. Muitas vezes o admirei. Pouco depois de publicado o “D. Jaime”, de Tomaz Ribeiro, tão extraordinariamente exaltado por António Feliciano de Castilho, que ele idolatrava, sabia-o e recitava-o patrioticamente de cor. Teria talvez então já cerca de 70 anos. E a sua veia dialéctica era pronta, incisiva. Dela posso dar também testemunho logo da minha infância. Indignado contra as invasões ao seu quintal, mandou guarnecer de vidros de garrafa a unha do muro de vedação. E, objectando alguém, diante de mim, que isso não serviria de nada, porque o assaltante poderia pôr-lhe por cima o casaco, replicou conceituosamente: “Mas precisará de levar casaco e arrisca-lo, senão a própria pele”.
Fui de dois para três anos, creio, para a companhia de meus Avós maternos na R. do Núncio. Quanto tempo estive com eles? Aos cinco principiei a frequentar o colégio da R de Mata Cavalos. Ai de mim! Agarrava-me ansiadamente às saias da boa Máxima, chorando para voltar para o pé da Avó, e a muito custo a paciente preta pegava em mim e me levava ao colo para a aula. Guardo como relíquia preciosa o saco de damasco verde, fechado por cordões doirados, de borlas, em que ia o meu primeiro alfabeto. Numa das faces da bolsa, minha Avó bordara a retroz amarelo este voto auspicioso. “Esperança feliz”. Desse tempo ficou-me sempre a lembrança indelével da infinita ternura de minha Avó e da disciplina amorável, embora rígida, de meu Avô. Maçon, inimigo declarado da Inquisição, os castigos corporais repugnavam aos seus processos pedagógicos. Mas, quando se tornasse necessário, era da maior energia. Experimentei-o duas vezes, que estive doente. Uma no lindo jardim, tendo ao centro um largo tanque de repuxo, onde brincava. . Tossindo eu com a coqueluche, atirou-me de súbito para dentro da água fria. Imagine-se o que gritei. Mas curou-me. E não foi menos áspero o tratamento a que, contra a investida da febre-amarela, me sujeitou, com um terrível vomitório chamado “Le Roi”, que só de me lembrar me arrepelo de engulhos. Mas também sarei. A sua severidade revia-se em tudo. Senti-a, já estudante de Coimbra, em férias, quando por meu Pai me demorar consigo entre amigos no Porto até um pouco depois das dez horas da noite, que eram as dele se ir deitar, lhe bati ao ferrolho no Bairro de Bonfim. Depois de perguntar da janela quem estava ali, apostrofou-me, aberta a porta, de candeeiro de bicos na mão, no alto do patamar da escada. “Não foi esta a educação que recebeste em minha casa.” Contei o caso no dia seguinte a meu Pai, que sorrindo-se, confessou: “É verdade”. Só uma vez, a sua disciplina se quebrantou comigo. Foi-me buscar, por causa do mau tempo, num coupé fechado, para irmos passar o carnaval em Vila Nova de Famalicão com meus Pais. Eu tinha de fazer uns exercícios extraordinários para a aula de matemática elementar, mas ele, desejando dar a minha Mãe o gosto de me ver, instou, confiado na minha aplicação: “Quando chegares, pede dispensa ao professor, e logo em seguida darás boa conta de tudo, como deves”. O pior foi que, voltando, não tive ânimo para me desculpar e entrei imprudentemente para a lição. Ora, a não ser o meu condiscípulo Malheiros – irmão de outro Malheiros, engenheiro e mais tarde deputado da nação – que era um dos mais velhos, era eu, o mais novo de todos, quem tinha as melhores notas, e por isso o professor, Francisco de Almeida Ribeiro, que completara laureado o seu curso de engenharia na Escola de Pontes e Calçadas de Paris, depois de interrogar em vão os outros sobre um ponto mais difícil, volta-se ou para o Malheiros ou para mim. Naquele aziago dia foi para mim:”O menino?” perguntou-me. Mas o menino, que respondia sempre bem, soluçou, saltando-lhe as lágrimas dos olhos. E o bom do mestre correu do estrado para vir conformar-me. Aquela grata visita a Famalicão já começara, como que agoirenta mente, através de bátegas de água e, da Terra Negra em diante, também sob chuveiros de coriscos.
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