34 • Público • Sexta-feira, 3 de Janeiro de 2020
CULTURA
O antropólogo que amava por
inteiro as culturas populares
Benjamim Pereira (1928-2020)
Membro da equipa que criou o Museu
de Etnologia e deu a ver Portugal
com o rigor cientíco que se impunha,
manteve-se sempre exigente e generoso
Gostava do campo, de percorrer o
país nas suas recolhas de alfaias
agrícolas ou de instrumentos de
pesca sem olhar para o calendário
nem para o relógio. Entrava nos
lagares e percorria aldeias com o
mesmo à-vontade com que discutia
a preparação de mais um livro ou
de uma exposição. O que queria,
sempre, era compreender objectos
e práticas, mostrá-los para que
também outros ouvissem falar as
pessoas que com eles lidavam.
“Amava com amor inteiro as
culturas populares portuguesas”,
diz a historiadora de arte Raquel
Henriques da Silva agora que o
antropólogo Benjamim Pereira
morreu. Foi na quarta-feira no
Hospital de Viana do Castelo, ao
qual tinha recorrido após doença
súbita, explicou ao PÚBLICO Clara
Saraiva, presidente da Associação
Portuguesa de Antropologia e sua
amiga. Tinha 91 anos e um percurso
que fez dele uma referência da
disciplina em Portugal.
“Ele era uma alegria.
Conversávamos sobre tudo. Havia
sempre tempo para parar, para
estar, para beber um copo de
vinho”, recorda a antropóloga e
realizadora Catarina Alves Costa,
que com ele começou a trabalhar
nos anos 1990, no Museu Nacional
de Etnologia (MNE), de que
Benjamim Pereira foi um dos
fundadores, com António Jorge
Dias, Ernesto Veiga de Oliveira,
Fernando Galhano e Jorge e Margot
Dias. “Com ele aprendi muito,
sobretudo uma certa naturalidade
no terreno. O Benjamim Pereira
sabia tanto do trabalho da terra, dos
lagares, que os próprios agricultores
cavam espantados. As pessoas
abriam-se, sentiam-se ouvidas.”
Nascido em 1928, em Carreço (é
desta freguesia de Viana do Castelo
que o funeral sairá hoje, às 15h), o
antropólogo fez a maior parte da
sua carreira no MNE, tendo sido o
responsável por todas as exposições
que ali se realizaram desde a sua
criação, na década de 1960, até que
se aposentou, 30 anos depois,
refere Clara Saraiva num texto que
sobre ele em 2009 e em que recorda
que, embora tenha nascido
formalmente em 1965 e esteja
instalado no edifício que hoje ocupa
apenas desde 1976, o MNE teve a
sua génese em 1947. Foi nesse ano
que se fundou, no Porto, o Centro
de Estudos de Etnologia (CEE), para
o qual Benjamim Pereira seria
convidado em 1959. Dez anos mais
tarde, o mesmo grupo de
investigação pioneiro estaria ligado
ao Centro de Estudos de
Antropologia Cultural, ambos
alicerces cientícos e humanos do
actual museu.
“O Benjamim, como os outros
[fundadores], era apaixonado pelo
que fazia. A antropologia, o centro,
o museu não eram um trabalho que
zesse das nove às cinco, eram um
projecto de vida”, diz Paulo Ferreira
da Costa, o actual director do MNE,
recordando o seu “espírito de rigor
apuradíssimo” e a sua
“incomensurável generosidade”,
sobretudo com os colegas mais
novos.
“Nós vivíamos os três — o
Fernando, o Ernesto e eu — na
mesma casa, e ao lado a Margot e o
Jorge Dias. Trabalhávamos juntos,
mas era rara a noite em que não nos
reuníamos. Quando havia um
problema, até que fosse resolvido
não se deitava para trás das costas
(...). Durante anos e anos, eu, que
gostava tanto de cinema, não via um
lme. Não havia tempo! Sábados e
domingos não havia. Era um
trabalho que era uma alegria! Por
exemplo, grande parte daquela
colecção do sargaço foi reunida
num ano em que passávamos férias
na Barca do Lago e aquela jangada
enorme foi transportada no [meu
Citroën] 2 Cavalos. Acampávamos
evolução do mundo rural em
Portugal. “Tem um trabalho
importantíssimo, sistemático, de
estudo de todo o universo rural, em
particular o que diz respeito às
tecnologias agrícolas e têxteis. Mas
também lá estão os rituais festivos,
em particular os das máscaras do
Nordeste transmontano.”
A Benjamim Pereira se deve boa
parte da organização das primeiras
reservas visitáveis de Etnologia, as
Galerias da Vida Rural, relembra o
director, referindo em seguida que a
sua obra publicada não pode ser
dissociada do colectivo que se
reuniu em torno do CEE e que viria
a criar Etnologia. Um grupo em que,
reconheceu Benjamim Pereira, se
integrou de forma natural, apesar
de ser o único que não tinha curso.
Mesmo depois da morte do Jorge
Dias, em 1973, Benjamim Pereira,
Ernesto Veiga de Oliveira e
Fernando Galhano continuaram a
trabalhar e a publicar juntos.
“Estamos a falar de uma equipa
muito particular, que deu a
conhecer o Portugal real, por
oposição ao inventado pela retórica
Obituário
Lucinda Canelas
FOTOS: DR
muitas vezes quando percorríamos
o país. Fazíamos umas sopas Knorr
para comer”, contou o antropólogo
em 2010 a Paulo Ferreira da Costa e
a Cláudia Jorge Freire na revista
Etnográfica.
“É uma referência absoluta da
nossa antropologia e alguém que,
pela exigência permanente, em
primeiro lugar consigo mesmo, é
um exemplo de dedicação”, diz
Paulo Ferreira da Costa, que o
acompanhou na preparação de
uma das exposições históricas do
MNE, O Voo do Arado (1996), sobre a
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do Estado Novo.”
Defendendo sem concessões dois
princípios basilares — o
universalismo e a investigação
cientíca —, o grupo conseguiu
subverter o objectivo que a Junta de
Investigação do Ultramar, que o
tutelava, tinha para o MNE, o da
criação de um museu virado para os
territórios ultramarinos.
Do linho à Luz
O seu percurso não se resume, no
entanto, ao MNE. Benjamim Pereira
foi também autor do projecto
etnográco do Museu da Luz,
criado em 2003 para salvaguardar
histórias e património daquela
região alentejana parcialmente
submersa pela barragem do
Alqueva, em que trabalhou com
Clara Saraiva, Catarina Alves Costa
ou Catarina Mourão; e coordenou a
recolha para o Museu do Abade de
Baçal, em Bragança, que reabriu
renovado em 2006. Esteve ainda
envolvido no Centro Cultural
Raiano, em Idanha-a-Nova, e no
Museu Francisco Tavares Proença
Júnior, em Castelo Branco.
Raquel Henriques da Silva viria a
conhecê-lo apenas em 1997. Era,
então, directora do Instituto
Português de Museus e tratava-se de
salvar o que restava do Museu de
Etnograa do Porto. “Apaixonei-me,
como toda a gente, por aquele velho
senhor que tinha sempre um
menino dentro dele e que amava
com amor inteiro as culturas
populares portuguesas”, diz a
historiadora de arte, que mais tarde
haveria de o convidar a trabalhar
nos projectos dos museus Abade
Baçal e Francisco Tavares Proença
Júnior.
Para o primeiro, recorda, lmou
com Catarina Alves Costa a Festa
dos Rapazes, para o segundo os
processos artesanais de fabrico do
linho e da seda. Para criar o núcleo
do linho em Castelo Branco, o
antropólogo comprou também
objectos, recorda Henriques da
Silva, e “fez, como sempre, uma
instalação maravilhosa que
introduz a vivência enérgica do
trabalho no lugar incerto do museu,
sem sentimentalismo, sem
saudosismo, com uma radical lcanelas@publico.pt
Os caminhos do Benjamim
Presidente da Associação
Portuguesa de Antropologia
Estava sempre a desaar-nos para
irmos para campo. Sentia-se lá
bem e fazia com que também nós
nos sentíssemos no lugar certo
Catarina Alves Costa
Antropóloga e realizadora
As Galerias da
Vida Rural do
Museu de
Etnologia (em
cima) devem
muito a
Benjamim
Pereira, aqui
deitado
durante a
rodagem do
filme sobre o
linho
dignidade, simultaneamente
poética e cientíca. E cheia, a
transbordar, de amor pela terra, as
gentes e os saberes.”
A fotograa e o lme foram uma
constante no trabalho de Benjamim
Pereira, o grande produtor de
imagem do antigo Centro de
Estudos de Etnologia e do MNE —
um acervo com mais de 90 mil
entradas que muito deve, também,
a Margot Dias.
Numa altura em que o lme era
ainda um recurso escassíssimo e
caro, Benjamim Pereira tinha já
plena consciência, defende o
director do MNE, de que a imagem
em movimento era essencial para
dar a perceber a realidade do uso
dos objectos em contexto
expositivo. Mais do que uma fonte
documental, acrescenta a
antropóloga Catarina Alves Costa,
via o lme como uma forma de
expressão.
“Benjamim Pereira queria
sobretudo preservar a forma como
as pessoas contavam a sua própria
história, como falavam do seu
dia-a-dia com aqueles objectos que
haveriam de entrar para o museu”,
continua a realizadora.
Foi assim, também, quando a
Aldeia da Luz se preparava para a
subida das águas. “Durante dois
ou três anos recolhemos as
imagens para o arquivo do museu.
Era uma equipa pequena, mas
muito próxima. O Benjamim
envolvia-se muito.” Ele que, de
início, disse-o em 2010, pensou
em recusar o projecto: “A palavra
amor tem sentido. Foi um trabalho
amoroso. Eu não estava muito
motivado para a participação
naquele trabalho, mas lembro-me
de que a decisão foi imediata, a
partir do primeiro contacto com
os arquitectos.”
O seu entusiasmo, garante Alves
Costa, era contagiante: “Percorri o
país com ele. Um dia ligou-me
porque tinha encontrado um
moinho com mós de cortiça para a
farinha de arroz: ‘É preciso vir
lmar isto depressa antes que
desapareça, Catarina.’ Estava
sempre a desaar-nos para irmos
para campo. Sentia-se lá bem e
fazia com que também nós nos
sentíssemos no lugar certo.” com
Joana Amaral Cardoso
Conheci o Benjamim [Pereira] em
1980, quando era uma jovem
estudante do primeiro ano de
Antropologia e uma das
professoras nos levou ao Museu
Nacional de Etnologia (MNE) para
vermos o lme da Noémia Delgado
sobre as festas dos rapazes em
Trás-os-Montes. O Benjamim tinha
sido o autor do livro Máscaras
Portuguesas, que dialogava em
pleno com o lme da Noémia, e
comentou o lme do início ao m,
esclarecendo pormenores
etnográcos mas fazendo
sobretudo sobressair a sua estética.
Fiquei encantada a ouvi-lo. A partir
daí fui assídua frequentadora da
biblioteca do museu, e passava
horas no gabinete do Benjamim e
do Ernesto [Veiga de Oliveira],
muitas vezes com a Helena Prista
Monteiro, bibliotecária do MNE, a
ouvi-los contar as suas histórias de
décadas de trabalho de campo pelo
país. Quando decidi fazer a tese de
licenciatura sobre a serra algarvia
(enquanto a maioria dos meus
colegas optava pela pesquisa no
norte do país), foi o Benjamim que
me encorajou a levar esse projecto
para a frente. E quando, mais
tarde, defendi a tese na faculdade,
o Benjamim lá estava, a apoiar-me
e a dizer: “Menina, ainda bem que
zeste um trabalho por que te
apaixonaste!”
Fui para os Estados Unidos fazer
o mestrado e anos depois, quando
soube da abertura do lugar de
investigadora no Centro de
Antropologia Cultural e Social, um
dos centros de investigação
fundados pela equipa, concorri,
porque o meu sonho era poder
trabalhar com o Benjamim e o
Ernesto. O sonho tornou-se
realidade, e entrei no centro, que
fazia parte de um departamento do
Instituto de Investigação Cientíca
Tropical a que o MNE pertencia.
Começou assim a minha
aventura de partilha de campo e
de amizade profunda com o
Benjamim. O Ernesto faleceu
passado pouco tempo, e o
Benjamim reformou-se quase de
seguida. Mas acompanhou-me
durante anos de pesquisa em
Portugal e em Cabo Verde; e eu ia
com ele nos inúmeros projectos a
que deu assistência, e fez-me
conhecer o país pelos olhos de
alguém que o conhecia melhor do
que ninguém. Trabalhámos juntos
no projecto da Aldeia da Luz.
Foram anos deliciosos; o
Benjamim era um apaixonado
pelo trabalho, pela etnograa e
pelas pessoas, e foi essa paixão
pela etnograa que nos uniu.
Contava-me sempre a sorte que
tivera de conhecer os seus
companheiros e de com eles
partilhar uma vida fantástica de
aventura e pesquisa, em que o
trabalho era uma experiência de
prazer vivida diariamente.
Trabalhar com ele era realmente
maravilhoso, uma alegria
permanente. Sempre achei que o
Benjamim foi a pessoa mais
positiva e feliz que alguma vez
conheci, e que transmitia esse
fulgor a todos com quem lidava.
Benjamim Enes Pereira fez parte
da equipa fulgurante que fundou a
moderna antropologia portuguesa.
O mais jovem de todos, foi o último
elemento a integrá-la e tornou-se o
grande museólogo, o artista
encenador das deslumbrantes
exposições que o MNE realizou ao
longo de décadas.
Nasceu a 25 de Dezembro de
1928 e desapareceu a 1 de Janeiro
de 2020. Viveu os últimos anos na
paz e na beleza da paisagem de
Montedor, onde nasceu e viveu
uma infância e uma juventude
minhotas, e onde mais tarde fazia
os seus longos passeios ao longo do
mar, que tantas vezes partilhámos.
Era um homem deslumbrado pela
riqueza etnográca do país, pela
vida e pelas pessoas. E eu quero
deixar-lhe aqui a minha gratidão
por ter partilhado comigo essa
paixão.
Opinião
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