Heloisa Paulo
Introdução: O Estado Novo e o documentarismo de propaganda
Grande Missão tem sobre si o Secretariado, ainda que só lhe toque o que é nacional, porque tudo o que é nacional lhe há-de interessar. Elevar o espírito da gente portuguesa no conhecimento do que realmente é e vale, como grupo étnico, como meio cultural, como força de produção […] é necessidade inadiável […]. (Salazar, 1933)
1Como veículo do discurso oficial, o cinema é uma das grandes ‘armas’ da propaganda dos regimes autoritários e fascistas. O Estado Novo logo depressa reconhece o seu potencial. A partir de 1932, desencadeia diversas iniciativas no sentido de fomentar o desenvolvimento cinematográfico, como a criação, logo nesse ano, da Comissão do Cinema Educativo, pelo Decreto-lei n.º 20 859. No entanto, é a instituição, em 1933, do Secretariado da Propaganda Nacional, o SPN, que vai representar o marco mais importante em termos propagandísticos e não só. Esse organismo é entregue a um entusiasta da chamada ‘sétima arte’: António Ferro, jornalista, cujo fascínio pelo cinema o levara a escrever Hollywood, Capital das imagens (Paulo, 1996: 355-356). O cinema passa a ser considerado oficialmente um dos “meios indispensáveis à sua ação”, segundo a alínea h), artigo 4.º, do Decreto-lei n.º 23 054, de 25 de Setembro de 1933, onde são atribuídas as funções do SPN.
2No entanto, não serão muitas as películas patrocinadas pelo regime. Duas delas merecem-nos um relevo especial: o Feitiço do Império (1940), de António Lopes Ribeiro, patrocinada pela Agência Geral das Colónias (Seabra, 2014) e A Revolução de Maio (1937), também de Lopes Ribeiro, sendo Ferro um dos autores do argumento (Torgal, 2011). Uma particularidade caracteriza os dois filmes: a presença de imagens de documentários inseridas no relato ficcional. No primeiro caso, são as imagens do território colonial que ilustram a narrativa; no segundo, a história de um revolucionário antissalazarista é ponteada por imagens da propaganda oficial do regime, em especial, as filmagens realizadas em Braga, nas comemorações dos dez anos da revolução de 28 de maio de 1926. Extraídas de documentários que cobriram o evento, as imagens são cruzadas com a narrativa ficcional de modo a fornecer-lhe veracidade. Como destaque, temos a cena da chegada de Carmona e Salazar para as solenidades, mescladas com desfiles das tropas e manifestações da multidão, em especial, de ‘populares’ que, com os seus trajes típicos saúdam os Presidentes, da República e do Conselho. Mas o ponto alto destas imagens é o discurso de Salazar, onde são feitas as famosas afirmações da “não discussão”, “de Deus, da Pátria, da Autoridade, da Família e do Trabalho”. É de notar que estas imagens ocupam cerca de dez minutos da película, acentuando a ideia de que o documentarismo, considerado como reprodução fiel da realidade, reforça a ação e a legitimidade do regime.
3De facto, os documentários oficiais são a grande aposta do Estado em termos da cinematografia como propaganda. Entre 1933 e 1936, o SPN produz mais de duas dezenas de documentários que registam as comemorações oficiais, os lançamentos de navios, o ‘Douro’ e o ‘Dão’, os acontecimentos quotidianos – como a cheia do Tejo em Constância –, e as manifestações do regime – como os comícios anticomunistas realizados em 1936. Cineastas como Salazar Diniz, Aníbal Contreiras e Artur Costa Macedo assinam estas primeiras realizações, iniciando uma lista de renovados realizadores de cinema que vão compor o quadro do SPN e, posteriormente, continuam o seu trabalho no Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, o SNI, criado em 1944, para suceder ao SPN.
4Complementando o trabalho de divulgação propagandista através do cinema, em 1935, é criado o Cinema Ambulante, destinado a difundir a cinematografia produzida pelo regime. Esta forma de ‘propaganda pela imagem’, comum na Europa nos anos trinta, sobretudo na vizinha Espanha, tem a sua primeira sessão no Sindicato dos Caixeiros do Distrito de Lisboa, a 20 de fevereiro daquele ano. Na ocasião contou com a presença do diretor da secção cinematográfica do SPN, Félix Ribeiro e de Guilherme de Vasconcelos, um advogado responsável pela palestra de abertura sobre as realizações do regime. O seu objetivo é divulgar a mensagem política do Estado Novo, através dos chamados ‘filmes de propaganda nacionalista’, levando o cinema até aos núcleos de trabalhadores, numa tradução da ideia corporativista. O sistema acaba por favorecer a exibição de documentários fora das salas comerciais e o crescimento da produção ‘patrocinada’ pelo Estado.
5Os dois órgãos de propaganda do regime, o SPN e depois o SNI, vão produzir diversos documentários individualizados, tendo como base eventos promovidos pelo Estado, assim como duas séries que passaram a estar presente em todas as salas e locais de exibição de cinema em Portugal: o Jornal Português e Imagens de Portugal. Grande parte dos documentários realizados para estas duas séries é da responsabilidade de um dos mais renomados cineastas do regime, António Lopes Ribeiro, o nome que mais criticara a produção anterior de documentários, tornando-se um dos realizadores mais ativos do regime. Os temas abordados nessas duas séries são os mais diversos, mas sempre relacionados com acontecimentos, comemorações e a imagem idealizada do país que o regime busca divulgar em Portugal e no estrangeiro (Paulo, 2011).
6O Jornal Português aparece pela primeira vez em fevereiro de 1938, três anos após as primeiras das exibições do Cinema Ambulante. Durante mais de dez anos, o Jornal Português leva ao público a imagem oficial dos factos, quer seja a dos "falangistas espanhóis em Lisboa” (Jornal Português, n.º 1, fevereiro de 1938) ou a de “uma festa infantil em Almada” (Jornal Português, n.º 4, agosto de 1938). As autoridades em inaugurações ou viagens, as manifestações públicas organizadas para a aclamação do regime e as instituições são presença constante nos números do Jornal Português que reúnem películas diversas de curta duração. No decorrer da sua existência, porém, o Jornal Português não consegue uma periodicidade constante e a sua composição passa por diversas modificações. Títulos fixos, como Figuras do mês, onde vemos imagens de nomes nacionais ou personagens do cenário político internacional, desaparecem após pouco mais de um ano de exibição. Os acontecimentos oficiais ganham um espaço cada vez maior, ao lado de cenas bucólicas de festas folclóricas ou religiosas, com uma permanente menção aos campeonatos de futebol.
7Desta forma, os documentários procuram acompanhar os acontecimentos nacionais e internacionais, fornecendo a perspetiva do regime acerca dos mesmos. Por ocasião da Guerra Civil de Espanha, assim como em todo o decorrer da Segunda Grande Guerra, quando o clima de tensão se alastra na Europa, temos toda uma série de imagens dedicada às Forças Armadas e à ‘segurança’ militar do Estado Novo português. Em 1940, afirmando a ‘neutralidade’ do regime e a tranquilidade do país, as cenas das comemorações do duplo centenário traduzem a ideia de um “mundo à parte” numa Europa em guerra.
8Em 1940, o ano das comemorações do duplo centenário, o Jornal Portuguêsnão poderia deixar de divulgar as imagens dos principais eventos. São produzidos diversos números nos quais as comemorações são mencionadas, além de uma Série Especial das Comemorações Centenárias, que se vai estender até 1941. O importante é mostrar, sobretudo nas aldeias, através do Cinema Ambulante, a grandiosidade do evento, transformando as comemorações e, nomeadamente, a Exposição do Mundo Português, num registo único para a própria história do regime. O Estado Novo mostra à nação os seus momentos de glória no passado, recortados em datas e personagens de acordo com a versão oficial da História; e apresenta-se como forjador de um novo tempo; restaurador, enfim, do mesmo período áureo que toma como referência para as suas celebrações. O público dos lugares mais remotos pode ter acesso ao que acontece em Lisboa.
9A Exposição do Mundo Português é o símbolo máximo das comemorações. Ganha destaque em diversos documentários, desde o da sua inauguração, apresentado em julho do mesmo ano, até um documentário especial, lançado já em 1941, destinado a eternizar a memória do evento para o público. Com locução de António Lopes Ribeiro, ele próprio realizador do documentário, as imagens representam uma "síntese de Portugal no passado e no presente". As tomadas iniciais focam a inauguração da exposição por Carmona, o “português mais digno de tal ato”, acompanhado do “arquiteto do Portugal de Hoje”, Salazar. As principais passagens da História lusa são assinaladas na narrativa dos diversos pavilhões, enaltecendo a obra do regime ou a “vocação colonizadora” do português. O ponto fulcral da exposição são os centros dedicados às regiões de Portugal: centros regionais e colónias. Reproduzindo ambientes locais das diversas províncias portuguesas ou das colónias, estes centros apresentam o ‘povo’ nas suas atividades cotidianas, desempenhando as suas tarefas diárias. Para tal, são trazidos do território colonial – entre outros, africanos e timorenses – para participarem como ‘figurantes’ da exposição: fazem artesanato, dançam e são ‘evangelizados’ por freiras, também convidadas para participar nesta figuração pretensamente fiel à realidade. Vindos das diversas regiões portuguesas, pescadores da Nazaré, rendeiras de Vila do Conde ou, ainda, artistas do barro do Alentejo também são chamados a participar. Segundo o narrador, “as artes e dons do nosso povo” encontram-se representados nos centros e retratados nas imagens apresentadas. Complementando o cenário montado, não poderiam faltar exibições folclóricas dos diversos grupos regionais – outra atração da exposição –, que “enchiam de vida aquelas ruas e casas”, “réplicas fiéis” das aldeias portuguesas. Segundo o narrador, “as artes e dons do nosso povo” encontram-se ali representadas. De acordo com a locução, o Estado Novo, em plena Segunda Guerra, “oferecia a todo o mundo o exemplo da nossa disciplina e da paz que soubemos merecer”. O ‘povo’ e a ‘cultura popular’ apresentados refletem a visão oficial do regime, de gente trabalhadora, ordeira e feliz (Paulo, Torgal, 2015; Melo, 2010).
10Na segunda metade da década de quarenta, porém, este tipo de documentarismo já não corresponde às expectativas, nem do público, nem da crítica. A falta de contemporaneidade dos temas tratados e a repetição de imagens e de temas, voltados para a atuação do regime, são alvo de crítica dos especialistas. O Jornal Português vai resistir até ao número 95. Em 1953, uma nova série é apresentada ao público: Imagens de Portugal. Exibida nas salas comerciais pela primeira vez a 11 de março do mesmo ano, não consegue a inovação reclamada pelos especialistas. A persistência das imagens de cunho folclórico ou turístico, numa secção designada por ‘cultural’, não foge à regra dos documentários anteriores; e a presença de um noticiário também não chega a inovar em termos da dinâmica das imagens e locução. No entanto, a sua periodicidade é constante e bem maior do que a da série precedente, apresentando em média dois números por mês (Paulo, 2014; Piçarra, 2006).
1. A construção do discurso fílmico: O ‘povo’ e a ‘cultura popular’ no Estado Novo
Quer se trate de propaganda política, turística, comercial, religiosa, ou de qualquer outra, é sempre ela que tem de sujeitar-se às exigências do cinema, tão imperiosas que chega a causar espanto como uma arte pode ser, ao mesmo tempo, flexível e inflexível assim. Doutra maneira, o menos que acontece é a propaganda não resultar, por insuficiência ou ridículo (Ribeiro, 1933).
11Com a Exposição do Mundo Português, um ‘museu’ vivo é formado pelos centros regionais. Pretende-se apresentar aos visitantes o retrato da vida nas aldeias de Portugal, espelhando uma conceção de ‘povo’ que não foge aos moldes traçados pelos regimes fascistas na Europa. De facto, através do seu discurso, o Estado Novo cria um estereótipo oficial do ‘português’, que alia os padrões de cidadania traçados pelo regime e pelo conteúdo doutrinário do salazarismo e a imagem ‘etnograficamente’ reconstruída, a partir do papel vivenciado pela maioria da população. Para tal, o regime realiza uma leitura própria dos estudos etnográficos já realizados, adaptando-os à ideia de um ‘povo’ conivente com o imaginário salazarista de uma cidadania ‘passiva’, que não questiona os pressupostos de ordem do regime. Para a elaboração de tal imagem, aquele vai utilizar a propaganda oficial, recorrendo aos estudos de etnografia e folclore, privilegiando as manifestações populares, ‘inventando’ ou ‘reinventando’ expressões da cultura popular e dando-lhes um acabamento mais ‘modelar’ do que a própria realidade. O ‘português’, transfigurado em determinados estereótipos regionais, é identificado com uma visão idílica do universo rural. A apreensão deste tipo de discurso é facilitada pela menção a elementos conhecidos pelo auditório visado, como as referências às tradições rurais, estabelecendo-se, desta forma, um ‘diálogo’ entre o emissor e o recetor (Paulo e Torgal, 2015).
12Neste tipo de documentarismo, a predominância de temas folclóricos, de imagens do campo ou de locais históricos é uma constante. As críticas, com referência à qualidade destas produções, acompanham o nascimento do género e fornecem à produção do SPN/SNI meios para evitar os defeitos constantemente apontados para este tipo de curtas-metragens. As cenas de ‘bailaricos’ – ‘metidos a martelo’, na crítica de António Ferro ao documentarismo de baixa qualidade (Ferro, 1950) – não são comuns nas curtas-metragens do género, onde podemos destacar diversos números das séries estatais, dedicados ao tema. A mensagem do regime é sublinhada por afirmações que, acompanhando as imagens, asseguram: "Portugal é uma cantiga sem fim onde palpita a alma de suas regiões" (Guimarães, As festas gualterianas, in Jornal Português, n.º 63, novembro de 1946); e estereotipificam ainda outras características: "No Minho tudo é alegria" (Trajos regionais de Viana de Castelo, Exposição nos estúdios do SPN, in Jornal Português, n.º 51, maio de 1941).
13O quotidiano das aldeias é ‘folclorizado’ e, na grande maioria das vezes, as personagens locais são filmadas em trajes típicos, mesmo quando realizam tarefas agrícolas mais comuns e pesadas. Tal como ocorre na montagem orquestrada para os centros regionais da Exposição do Mundo Português, as cenas apresentadas nos documentários oficiais são as de aldeias limpas e calmas, e camponeses festivos, com trajes típicos, executando danças próprias da tradição de suas regiões. A população do campo aparece sempre vestida de forma tradicional, sorridente e com um ar despreocupado, mesmo ao executar as pesadas tarefas diárias, como a vindima ou a ceifa do trigo. O esforço físico não é visível, nem vestígios de sujidade, comuns neste tipo de trabalho. Os rostos focados são sempre saudáveis, na sua maioria, de jovens, uma expressão da energia e da atualidade do regime.
Fig. 1 - Imagem idealizada da camponesa, detalhe do documentário A Aldeia mais Portuguesa de Portugal.
14Tal imagem idealizada (Fig. 1) é uma constante durante um longo período de produção, abrangendo mesmo os primeiros anos do SNI. Um documentário de 1949, intitulado Une revolution dans la paix. Quelques images de l’histoire de Portugal et de sa vie contemporaine, é um exemplo deste tipo de discurso recorrente. Com fotografia de Costa Macedo, Salazar Diniz e Bobone, a película, montada por António Lopes Ribeiro, é destinada ao público francês, sendo produzida pelo SNI. O documentário busca oferecer uma visão oficial da história portuguesa, enfatizando alguns dos seus marcos, como o período da formação do Estado português, as navegações, a decadência com a união ibérica, as campanhas napoleónicas e a ascensão do Estado Novo e de Salazar e as realizações do regime. O ‘povo’ é evocado de forma quase atemporal, onde o passado aparece ao lado de uma modernidade em construção. Os planos destinados a evocar a sua imagem são oriundos de trabalhos anteriores, produzidos com o fito de valorizar a etnografia e o folclore como marcas da identidade nacional. A grande característica de todos esses planos é a imutabilidade das imagens, verdadeiras referências a um tempo passado, imobilizado nas tomadas e nos estereótipos do regime. Mais uma vez, as cenas de trabalho são misturadas com planos de festas ou solenidades folclóricas. As lidas rurais são mostradas com limpeza, sem marcas de sujidade ou de esforço relevante, prevalecendo, na realização das tarefas, o uso de instrumentos rudimentares e tradicionais. Nas cenas festivas são focados rostos de todas as idades, com grandes planos dos traços mais marcantes das jovens, sempre risonhas, das idosas, sérias e circunspectas, e das crianças, que ‘imitam’ as atitudes das mais velhas. Todas guardam em comum a semelhança do traje e a realização das mesmas tarefas. Em todas as cenas, as pessoas estão trajadas de forma tradicional, mesmo quando realizam tarefas diárias. Nas festas, os planos acentuam as manifestações musicais, onde se destacam os instrumentos típicos, como os adufes ou as sanfonas. As danças são filmadas de forma a mostrar a noção de conjunto, reforçando a ideia de ‘união’ e de ‘grupo’ que as imagens procuram veicular. Desta forma, acentua-se a noção de ‘povo’ como uma só unidade, congregado no trabalho e na perpetuação dos costumes, e do tradicionalismo que caracteriza este povo no discurso oficial. Todas estas manifestações são claramente encenadas para as câmaras, sendo selecionadas a partir de documentários anteriores, voltados para a ‘construção’ de um retrato do ‘povo’ português. Em especial, as imagens que registam cenas de manifestações folclóricas em festas e solenidades oficiais (Paulo e Ramires, 2001).
2. Como montar a imagem de uma aldeia: A construção do documentário da aldeia mais portuguesa de Portugal
Filmes de propaganda política – digamos: de propaganda nacional -, não se fazem com caravelas de cartão boiando em alguidares, com símbolos safados, com retratos de ministros ‘em sobreposição’ sobre poentes de bilhete-postal. Fazem-se com ‘realidades cinematográficas’; com estilo e com inteligência. Doutra maneira, vira-se o feitiço contra o feiticeiro. E as coisas caem pelo ridículo antes de caírem por si (Ribeiro, 1933).
15A construção de uma imagem idealizada do povo idealizado constitui um dos pontos centrais da propaganda no Estado Novo (Paulo e Torgal, 2015). As imagens dos diversos documentários citados espelham a dimensão de um projeto, concretizado em 1938, com a realização do concurso da ‘aldeia mais portuguesa de Portugal’ (Fig.2). Destinado a escolher a aldeia que mais simbolizasse o ideal de ‘povo’ propagandeado pelo regime, o concurso vai abranger todo o país, premiando a aldeia de Monsanto com o ‘Galo de Prata’, ele próprio também um símbolo do portuguesismo do regime.
16O concurso ficará registado na película documental A nossa terra, A aldeia mais portuguesa de Portugal, realizada por António Menezes e António Lopes Ribeiro, com Octávio Bobone e Salazar Dinis como operadores, e montagem de Vieira de Souza. O documentário tem a duração de 33 min 23 s e as cenas principais foram rodadas nas nove das aldeias finalistas, entre elas, Bucos, Boassas, São Julião de Cambra, N.ª Sr.ª da Orada, Peroguarda, Alte, Azinhaga e, finalmente, Monsanto. Apesar de a música e orquestração serem da responsabilidade de Armando Leça e Jaime Silva Filho, a banda sonora é composta por melodias regionais pertencentes ‘aos cancioneiros das próprias aldeias’, conforme as informações constantes nos genéricos da abertura. A locução enaltece repetidamente as cenas que evocam as tradições das aldeias, apontando-as como uma “barreira” contra a “invasão dissolvente de ideias estranhas”. As imagens das casas e animais são alternadas com as do trabalho dos aldeões, sempre trajados de forma típica, e culminam com uma demonstração do folclore de cada aldeia. Fechando o documentário, temos Monsanto, a aldeia vencedora, e a apresentação do grupo local, com o locutor em voz off afirmando que “houve no tempo de Salazar em nossa terra, quem se interessasse pelo povo das aldeias para exaltar a sua beleza patriarcal”. Desta forma, completa-se o quadro da ideia de um país rural, onde o culto dos valores tradicionais é estimulado pelo Estado que, desta forma, consegue manter a harmonia e o clima de satisfação, estampados nos rostos dos participantes e presente em todas as tomadas do documentário.
17Para essa construção idealizada do ‘povo’ das aldeias concorrentes é curioso notar que, no processo de montagem do documentário, foi descartada uma série de imagens que traduzem o interdito do discurso oficial acerca das aldeias e dos seus habitantes. A disponibilização, pela Cinemateca Portuguesa, dos restos, duplos e planos não aproveitados do documentário permite perceber os parâmetros dos cortes realizados na filmagem para que esta pudesse oferecer ao público uma imagem idealizada da realidade, de acordo com os padrões do regime. A desconstrução do discurso oficial, utilizando-se os fotogramas da montagem final é uma mais-valia para a compreensão da mensagem proposta pelo documentário. Entre os fotogramas totalmente desprezados no documentário final temos, por exemplo, o registo de mulheres que trabalham descalças em tarefas árduas, rostos endurecidos pelo esforço, puxando os bois com o arado ou aparelhados a uma carroça de bois a transportarem feno. A imagem rude da mulher do campo, ainda que um retrato fiel da realidade rural portuguesa desse período, nada se coaduna com a imagem idealizada das moças sorridentes dos bailaricos, das rendeiras ou das colheitas realizadas por elementos femininos, sempre acompanhadas de cantigas folclóricas (Cova e Pinto, 1997; Tavares, 2010).
18Para além das imagens femininas a exercerem um labor identificado aos homens, as demais cenas não aproveitadas estão relacionadas com outros dois assuntos interditos pelo discurso salazarista: a marcante diferença entre as classes sociais e as referências à religião popular, ou melhor, às crendices e ao papel das benzedeiras no mundo rural. No primeiro caso, a cena descartada mostra um grupo de meninas, muito bem vestidas, uma delas com uma tigela com caldo na mão; mulheres com bebés ao colo, visivelmente pobres, ajoelham-se diante da menina e ‘ganham’ uma colher do caldo. Fruto de uma tradição popular ou de uma promessa esta imagem é de uma força incrível, se considerarmos o gesto de submissão da mulher diante das meninas e a acentuada diferença social que traduz. No segundo caso, uma benzedeira reza para tirar o quebranto ou a insolação, segundo a tradição popular: a cena mostra uma mulher a colocar um copo, quase cheio de água, invertido sobre uma toalha branca, em cima da cabeça de uma menina. Se o racionalismo republicano havia condenado as práticas religiosas como processos de cura, o salazarismo vai cuidar que estas tenham a mesma condenação que a Igreja Católica lhes conferia.
19Os cortes de imagens não enquadradas no discurso oficial do regime acerca do papel das mulheres, do papel da Igreja Católica e de todas aquelas que não traduzissem a imagem de povo e da cultura popular oficial revelam o lado ficcional do documentarismo do Estado Novo. O ‘povo’ da propaganda salazarista haveria de ser mais tradicional, católico sem crendices, e as suas mulheres frágeis e sorridentes camponesas. A propaganda, assim como a censura, escamoteia a realidade de uma sociedade naturalmente marcada pela miséria e pela desigualdade (Paulo, 1994).
Conclusão: A imagem e discurso fílmico
Eu encaro o cinema como um púlpito e o uso como um propagandista. […] Arte é uma coisa; e quem está interessado nisto, eu sugiro, deve procurá-la onde haja espaço para a sua criação; diversão é uma outra coisa; educação, no que concerne ao professor, outra; propaganda, outra; e o cinema deve ser concebido como um meio, como a escrita, capaz de muitas formas e muitas funções. Um propagandista profissional bem pode interessar-se especialmente por ele (Grierson, 1933-1934)
20Olhar uma imagem é reler um discurso construído a partir de referenciais próprios de uma época e de um emissor determinado. Assim, qualquer mensagem ‘imagética’ ganha um novo significado a cada olhar, sem, contudo, perder o seu sentido e o seu enquadramento original. A figura cristalizada na película traduz valores de um dado momento, informações preciosas que podem auxiliar na sua interpretação, não só pelos dados que possui, mas pelas recordações que encadeia através de outras leituras ou olhares. A imagem revela a dinâmica de uma sociedade, quer pelo conjunto de informações que transmite, quer pelo imaginário que desperta nos olhares, quer pela sua estética de apresentação. A noção de temporalidade, contida em posturas e hábitos congelados em imagens, perpassa o discurso da imagem, revelando a sua intencionalidade. A noção de tempo único pode ser traduzida em imagens inertes ou na não-variação do seu conteúdo em épocas distintas. Neste sentido, a imagem é um documento único que pode unir tempos diversos através de um discurso cuja característica é a imobilidade (Coltelloni, 2016).
21Apesar disto, a sensação de realidade transmitida pelo documentarismo é apenas aparente. Uma convenção estabelecida que o apresenta como um retrato fiel da realidade (Gauthier, 2008). O encadeamento das imagens, juntamente com a sua apresentação, oral ou não, forma um discurso cuja mensagem possui um destinatário e um fim. Por isso, é preciso descodificá-lo e, se possível, analisar como foi construído. Desta forma, para além de termos a proposta apresentada pela montagem da película, podemos, como os investigadores das obras literárias, analisar os cortes, o processo de elaboração do discurso fílmico e descobrir outras imagens. No caso dos documentários do Estado Novo, a descoberta das imagens relegadas dos documentários oficiais talvez sejam os mais significativos depoimentos acerca da realidade do período.
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