Do blogue de António Roma Torres - TERAPIA
Sunday, 21 July 2019
Ernesto Roma
O meu tio avô, Ernesto Roma, estava em Boston, nos Estados Unidos, nos anos vinte do século passado quando a insulina foi descoberta em Toronto, no Canadá. Assistiu aos primeiros testes clínicos na célebre Clínica de Elliot Joslin. Quando regressou a Lisboa foi ele quem introduziu em Portugal a insulinoterapia no tratamento da Diabetes.
ERNESTO ROMA (1887-1978)
Mas o mais notável foi a sua visão daquilo em que verdadeiramente consiste tratar uma doença.
Influenciado pelo seu mestre Carlos Bello Morais, director da Faculdade de Medicina de Lisboa, ele tinha rumado a Boston para trabalhar com Richard Cabot, que em Harvard tivera uma grande importância no desenvolvimento da saúde pública, e na luta contra doenças infecciosas, que afectavam principalmente os mais pobres. Isso implicava não apenas o desenvolvimento tecnológico, de que a descoberta da insulina era um exemplo, mas a intervenção social de que a medicina não se pode afastar.
Por isso criou a Associação Protectora dos Diabéticos Pobres em 13 de Maio de 1926, ainda hoje designada como Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP) com um trabalho exemplar na educação do diabético. É a decana das associações similares em todo o mundo e o seu trabalho pioneiro ainda é referido nos tratados mais recentes (Richard I. G. Holt et al., Textbook of Diabetes, Wiley, 2017).
Em Novembro de 2017 a Câmara Municipal de Viana do Castelo, cidade onde nasceu, prestou-lhe homenagem com uma exposição, Ernesto Roma Vida e Obra, na Biblioteca Municipal.
Nessa altura, como comissário da exposição, tive oportunidade de dizer estas palavras:
Fiz o curso de medicina no Porto e enquanto ele em Lisboa foi progressivamente abandonando a clínica, e concluí a especialidade de psiquiatria no ano em que ele morreu.
Conheci, pouco antes, a sua tese de licenciatura, que para o homenagear fizeram publicar quando ele fez 90 anos, e soube então da sua primeira inclinação pela psiquiatria e do convívio ainda aluno com Miguel Bombarda e Júlio de Matos.
Coube-me pouco depois cumprir o serviço militar obrigatório no Hospital Militar no Porto onde os endocrinologistas Camilo Morais e Eduardo Souto, de quem fui colega de consultório nos meus primeiros passos de clínica privada, organizaram um congresso sobre diabetes.
Conheci aí o Dr. Manuel Sá Marques e o Prof. Pedro Eurico Lisboa, que iniciavam as suas apresentações com um primeiro slide com a fotografia do, como diziam, Mestre Roma e impressionou-me o espírito de escola, mas também o calor afectivo e o entusiasmo dos seus discípulos, e uma sensibilidade à relação médico-doente diabético e uma perícia de comunicação que aos meus olhos, de já iniciado nessa difícil arte, os qualificava plenamente como psicoterapeutas.
A educação do diabético, a convivialidade da associação, a alegria que cobria o sofrimento de uma doença ameaçadora, mas fácil de submergir ao mecanismo de defesa chamado negação, tudo isso me serviu de modelo e agora no final, por limite de idade, da minha carreira pública, mais fácil de apreciar.
O destino que muitas vezes governa opções de natureza insondável, levou-me pelo campo da psicoterapia, da terapia familiar sistémica e, em progressivas aproximações, das terapias multifamiliares e de rede, que não me permite agora resistir à tentação de fazer uma leitura do pioneirismo do trabalho de Ernesto Roma e da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal, que mais do que prolongar o seu trabalho o ampliou muitíssimo, a partir do rigor científico da medicina-baseada-na-evidência e de práticas psiquiátricas que ainda nos tempos actuais são inovadoras.
Pioneirismo foi introduzir o uso da insulina em Portugal.
Pioneirismo foi perceber que o progresso verdadeiro implica solidariedade e em especial com os pobres.
Pioneirismo foi criar uma associação que é a decana mundial das suas congéneres.
Pioneirismo foi acreditar na educação como factor terapêutico mesmo numa população que não tinha o melhor nível de instrução geral.
Pioneirismo foi perceber que se podia dar uma aula com giz e ponteiro na sala de espera, a quem não tinha tido as oportunidades mais justas de ensino e aprendizagem.
Pioneirismo foi acreditar que se pode ter uma doença crónica e manter o melhor nível de autonomia se se encarar o tratamento e a saúde como uma questão de responsabilidade sobre si próprio.
Pioneirismo foi estudar a alimentação com o olhar da ciência, mas não desprezar o prazer da comida e o seu valor cultural.
Pioneirismo foi perceber que a educação do diabético não consiste em fazê-lo obedecer a regras que lhe são exteriores, mas antes dar-lhe a oportunidade de conhecer o corpo e saber trata-lo com liberdade e responsabilidade.
Pioneirismo foi substituir o autoritarismo e o paternalismo ainda dominantes por um respeito humano democrático na relação do médico com o doente.
Mas pioneirismo foi principalmente descobrir de forma empírica realidades que os vindouros vieram a saber explicar e têm como certas.
Tive o privilégio de conhecer psiquiatras e terapeutas familiares norte-americanos que foram, ou melhor dizendo são ainda, pioneiros em formas de tratamento de doenças crónicas, somáticas e psiquiátricas, que hoje exigem nova atenção quando a evolução tecnológica permitiu uma medicina próxima da omnipotência na ameaça aguda, mas frequentemente frustrante na evolução continuada que se lhe segue.
Eles mostraram que uma abordagem humanista é também uma postura competente e cientificamente fundamentada.
Imagino que o meu tio Ernesto Roma teria uma profunda satisfação se pudesse ouvi-los ou lê-los cinquenta anos depois de ter terminado a sua vida clínica.
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