quinta-feira, 25 de outubro de 2018





Fotografia de Carlos Cohen gentilmente
 cedida por  Paulo Ribeiro Baptista,
 do Museu  Nacional do Teatro
e da Dança

A propósito duma carta de Eça de Queiroz para Bernardino Machado, recordamos Carlos Cohen






















Ville-Evrard, hospital psiquiátrico parisiense, onde Carlos Cohen este internado.



Retirado, com a devida vénia, de

O sal da história



O primeiro figurinista português e o incêndio que o arruinou

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Carlos Cohen viveu entre o brilho e a magnificência que a sua arte emprestava às personagens que vestia. O trágico incêndio da rua da Betesga foi o princípio do fim do primeiro figurinista português.

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O último mês de 1886 ficou marcado pelo tenebroso incêndio que destruiu um prédio de quatro pisos na baixa de Lisboa e matou várias pessoas. Quem haveria de imaginar que o sinistro mudaria para sempre também a vida do mais requisitado “alfayate costumier” da cidade, o primeiro figurinista português, responsável por ter revolucionado a forma como os atores se apresentam perante o público?! Depois de uma vida entre brilho e plumas, Carlos Cohen morreria na miséria, cheio de dívidas, numa pobre cama de hospital. Tinha-se quebrado a magnificência aparente que sempre garantira em palco.
A queda do artista não foi imediata. Trinta anos mediaram entre o trágico fogo e a morte, por congestão cerebral - disse a imprensa da época. Mas a sua vida nunca seria a mesma após as chamas terem arruinado a sua casa, o seu atelier e todo o vasto guarda-roupa que ali mantinha, ocupando todo o primeiro piso, com sete janelas para a rua dos Correeiros e quatro para a da Betesga. Ali, as paredes estavam “guarnecidas por cabides” nos quais estavam penduradas vestimentas ligeiras, “objetos de cartonagem e outros artigos de fácil e rápida combustão”, que contribuíram para a veloz propagação do incêndio, tanto mais que esta espécie de armazém onde os variados teatros podiam alugar vestes para as suas encenações – uma novidade na época – estava excecionalmente cheio, com os já prontos “fatos para o drama Luiz XI”, que ia à cena “nos Recreios” e ainda para “peças da Trindade e outras casas de espetáculos”, que Carlos Cohen desenhava e construía com as costureiras que para ele trabalhavam.
Foi o princípio do fim. Pois que, por inércia ou trauma, o conhecido figurinista nunca mais voltou ao fulgor de outros tempos, chegando, no fim da vida, a andar pelas ruas “com o fato cheio de nódoas, desmazeladamente trajando, com um cache-nez em volta do pescoço para não se dar pela ausência do colarinho”, algo impensável anos antes, num homem garboso e “vestindo sempre com máxima distinção”, como os seus amigos preferem dele lembrar-se.
Longe iam os tempos em que dava cartas de elegância e bom gosto.
Essas qualidades foram o seu triunfo. Isso e a forma como “casava os tecidos”, indo ao encontro da veracidade histórica das personagens que vestia, nas formas, nas cores e nos cortes das indumentárias, num rigor em que foi percursor e que fez escola no meio teatral português. Assim foi especialmente quando ficou responsável pelos figurinos do grupo Rosas & Brazão, que explorou o Teatro Nacional D. Maria II durante duas décadas. “O investimento estético nos espetáculos era reconhecido até pelos mais críticos, sendo pautado pelo estudo a que os dramas históricos obrigavam, pelo requinte da decoração de cena e pela riqueza dos materiais”, instituindo-se “a pintura de novos cenários” e “a confeção de um guarda-roupa para cada novo espetáculo (diferente, portanto, do que acontecia antes)”.
O apreço do “patrão” Eduardo Brazão por Carlos Cohen seria tal que este até ficou sepultado no jazigo da sua família.
cohen publicar3.pngE a sua arte foi reconhecida no seu tempo, nomeadamente nos escritos de Rafael Bordalo Pinheiros e de outros virtuosos. É reconhecida ainda hoje, com indumentárias de sua autoria em destaque nos museus do Trajo e do Teatro. No primeiro caso, nomeadamente, um magnífico vestido em veludo vermelho cinzelado para a peça “A Princesa de Bagdad”, de Alexandre Dumas, levada à cena pela Companhia Rosas & Brasão, em 1881, e que é o trajo de cena mais antigo existente naquele acervo. No segundo caso, diversos fatos “executados em materiais e tecidos de grande qualidade, então propositadamente importados das grandes capitais europeias”.
Carlos Cohen criou beleza e encanto para numerosos espetáculos; da ópera, à comédia; do burlesco à revista, das mágicas* ao drama, numa montanha russa de emoções e sumptuosidade que, tal como na vida, se desvanecem quando corre o pano.

À Margem
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O incêndio que deflagrou na manhã de 29 de dezembro de 1886 matou filha, mulher e sobrinha, bem como a criada da casa, do comendador António Maria Freire Pimentel Brandão e ainda uma idosa entrevada que vivia nas águas furtadas do edifício. Foi Carlos Cohen quem deu o alarme, e foi ele também o último sobrevivente a sair do prédio, e à força, porque se recusou a abandonar o guarda-roupa fruto do seu trabalho. Destruídos ficaram também o colégio Victor Hugo, de Cândida de Mello Amaral, que ocupava o 2º piso, e diversas lojas. O sinistro, que reacendeu a polémica sobre a proibição em Lisboa do toque a rebate em caso de incêndio, fez do bombeiro nº 55, António Ignácio da Silva, o herói do momento. Ferido enquanto tentava salvar a família Brandão, foi hospitalizado e o seu estado de saúde seguido pela imprensa durante vários dias. A câmara da Capital chegou a aprovar um louvor ao “soldado da paz” e uma pensão para o caso deste ficar impossibilitado de trabalhar. Não sabemos se chegaria a recuperar completamente, sabemos sim que a sua mulher também tinha sido condecorada, anos antes com uma medalha de prata, precisamente por ter salvo duas crianças das chamas.
Mas isso é outra história…

* Uma mágica é um “gênero dramático-musical largamente praticado no Brasil e em Portugal, do início do século XIX ao início do século XX”. É descrito como “aparatosa”, “deslumbrantes”, “espirituosas”, contendo uma “ofuscante” apoteose. É frequente os seus títulos apresentarem referências a seres e elementos fantásticos.












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