sábado, 19 de agosto de 2017



Na Revista do semanário "O Expresso" de hoje li a critica do António Valdemar ao folheto de Arnaldo Saraiva - "Vergílio Ferreira, seminarista"





O texto de António Valdemar



O escritor,o poeta, o filósofo e outras figuras intelectuais e artísticas deverão ser estudados, a partir da sua vida real, de actos e factos concretos que surgiram desde o nascimento á morte; ou os estudos e interpretações deverão, apenas, circunscrever-se às circunstâncias que se tornam evidentes através da sua obra?                                                                                                                                                                                                                                                 Arnaldo Saraiva, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tem adotado a primeira destas metodologias numa série de folhetos acerca de figuras públicas. O último intitula-se: Vergilio Ferreira, Seminarista nos seminários do Fundão e da Guarda.
Uma investigação de extrema minúcia permitiu-lhe reconstituir o que se ignorava das origens familiares: o pai, fogueteiro, a mãe, doméstica, emigrantes nos Estados Unidos e que emprestavam dinheiro a juro; a criança a cargo da avó e das tias; Vergilio Ferreira estudante aplicado na escola primária e com aproximação diária à igreja (o tio-avô era o pároco), a ajudar à missa, e em latim, antes dos seis anos; a tocar violino e a participar nas atividades de organizações católicas (Congregação dos Filhos de Maria e Agregação do Santíssimo Sacramento).
Com a classificação de muito-bom, no exame geral da quarta classe do ensino primário, entrou, aos 10 anos, em 1926, no Seminário do Fundão. Arnaldo Saraiva procurou, fundamentalmente,apurar tudo o que vem (e não vem) na obra de mons. Alfeu dos Santos Pires História e Vida dos Seminários da Guarda e do Fundão, noutros estudos monográficos e em depoimentos de contemporâneos.
Evitou Vergílio Ferreira, na Manhã Submersa, na Estrela Polar, no Diário e na Conta Corrente descrever situações degradantes que lhe marcaram a infância e adolescência até aos 16 anos. Tentou resumir esse submundo de reacionarismo e de intolerância numa frase abrangente: «solidão, desconforto, rigidez de internato».
CULTURA DE HIPÓCRISIA
No entanto, a investigação de Arnaldo Saraiva reuniu elementos esclarecedores: «o dia-a-dia do seminário do Fundão favorecia por vezes menos a firmeza ou o fortalecimento da vocação do que a hipocrisia e os sentimentos de medo, culpa, frustração, desamparo e tristeza, que nem podiam ser expressos em cartas, porque estas eram obrigatóriamente entregues abertas; e, é claro, que nenhum seminarista recebia correspondencia que não tivesse sido aberta e lida por um superior» E acrescenta: «os seminaristas não eram tão incentivados a usar ou a desenvolver as suas capacidades criticas como a cumprir e valorizar os deveres de obediencia e de humildade». (pag. 22)
O PECADO DA CARNE
Todavia, ao caracterizar o espaço fechado e asfixiante do seminário do Fundão, Arnaldo Saraiva escreve: «o tempo diario gasto, sobretudo, em rituais religiosos» (...) «missa, terço, rezas, prédicas, exames de consciência e retiros, mais valorizados do que o tempo das aulas ou das salas de estudo». (...) «a regra do silêncio se impunha até nas horas das refeições». (...) E também as punições frequentes: «a imposição de uma disciplina militar ou militarista e castigando severamente mesmo pequenas infrações, que podiam merecer palmatoadas, verdascadas e bofetadas, ou largos minutos de joelhos e de pé virados para as paredes». (pags. 21 ,22)
 Menciona a vigilância nos corredores e nas camaratas para afastar «o fantasma do pecado da carne» (sic): «as calças (obrigatóriamente pretas, como o casaco e a gravata) tinham de ser vestidas e despidas entre os lençois; as mãos não podiam ser aquecidas nos bolsos; o entendimento entre colegas tinha de ser limitado para não conduzir a perigosíssimas amizades particulares». (pag. 23)
Estas medidas repressivas no dominio sexual e afetivo, e a que foram submetidas gerações sucessivasconcluíu Arnaldo Saraiva – não impediram, decorridos 90 anos, que o seminário do Fundão fechasse «as suas portas, em 2015,já depois de um escandalo que envolveu um seu vice-reitor». (pag. 51)
NOTAS CONFIDENCIAIS
Apesar do encerramento, amplamente noticiado na comunicação social, das declarações contraditórias de bispos da diocese, de processos-crime de pedofilia julgados em Tribunal e a aguardar decisões de instâncias judiciais superiores, perdura o arquivo do Seminário do Fundão. Possui fontes documentais, até agora, consultadas por um número muito restrito de eclesiásticos como Alfeu dos Santos Pires e de que só chegaram ao público informações escassas e muito filtradas.
Ao ter acesso aos livros de registos, Arnaldo Saraiva extraíu notas manuscritas e que constam de fichas de comportamento e aproveitamento (19281937). Trata-se de avaliações de reitores e professores, advertências de diretores espirituais e denúncias de confessores que seguiam, de perto, o percurso de cada aluno, em cada ano escolar. Também se destinavam a informar o bispo da diocese da Guarda José Alves Matoso.
Entre as observações mais significativas a propósito de Vergilio Ferreira destacam-se, nomeadamente;inteligência e aplicação «regulares»; caráter «afeminado e voluntarioso; tem muitos nervos, é um histérico»; e, ainda, por exemplo,faz «tratamento anti-siflítico. É hereditária a doença». (pags.24 a 29)
Em Vergilio Ferreira, Seminarista nos seminários do Fundão e da Guarda, Arnaldo Saraiva desfez tabus, esclareceu equívocos, desmontou opiniões falsificadas, corrigiu datas e, em especial, recolheu numerosos documentos inéditos com revelações surpreendentes.Tudo isto porque Arnaldo Saraiva reconhece que, apesar dos livros sobre Vergílio Ferreira da autoria de Maria da Glória Padrão e Helder Godinho, de Serafim Ferreira e Fernanda Irene Fonseca,entre outros estudiosos, Vergilio Ferreira «espera ainda e merece, uma biografia digna», (pag. 7)
MANANCIAL PRODIGIOSO
O universo cadaveroso dos seminários - viveiro dos precursores da delação premiada – proporcionou a largos milhares de antigos alunos, que foram expulsos ou desistiram do sacerdócio, as habilitações indispensáveis para ingressar no funcionalismo público (Câmaras Municipais, correios, tribunais, Policia Judiciária,PIDE etc) ou, então, nos cursos do magistério (primário, secundário e superior). No caso de Vergilio Ferreira serviu - lhe para fazer o liceu, entrar na Universidade de Coimbra, formar-se em Letras e lecionar, em diversos liceus, Português, Latim e Grego. A repetir, durante décadas, sempre o mesmo do mesmo.
O «exercício burocrático do ensino» – assim me declarou várias vezes – assegurava-lhe a subsistência económica e o equilibrio financeiro. Cinco ou seis anos de vexames e de humilhações, nos seminários do Fundão e da Guarda, deram-lhe um prodigioso manancial de conhecimento vivido, para reflexões angustiantes em torno da natureza humana. Abriram caminho para se afirmar como um dos mais notáveis escritores portugueses do século XX e com legítima ambição ao Prémio Nobel da Literatura.
António Valdemar



Um abraço apertado ao caríssimo Amigo pelo envio do Texto












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