Na Revista do semanário "O Expresso" de hoje li a critica do António Valdemar ao folheto de Arnaldo Saraiva - "Vergílio Ferreira, seminarista"
O texto de António Valdemar
O
escritor,o poeta, o filósofo e outras figuras intelectuais e artísticas deverão
ser estudados, a partir da sua vida real, de actos e factos concretos que
surgiram desde o nascimento á morte; ou os estudos e interpretações deverão,
apenas, circunscrever-se às circunstâncias que se tornam evidentes através da
sua obra?
Arnaldo
Saraiva, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
tem adotado a primeira destas metodologias numa série de folhetos acerca de figuras públicas. O último intitula-se: Vergilio Ferreira, Seminarista nos
seminários do Fundão e da Guarda.
Uma
investigação de extrema minúcia permitiu-lhe reconstituir o que se ignorava das
origens familiares: o pai, fogueteiro, a mãe, doméstica, emigrantes nos Estados
Unidos e que emprestavam dinheiro a juro; a criança a cargo da avó e das tias; Vergilio
Ferreira estudante aplicado na escola primária e com aproximação diária à
igreja (o tio-avô era o pároco), a ajudar à missa, e em latim, antes dos seis
anos; a tocar violino e a participar nas atividades de organizações católicas
(Congregação dos Filhos de Maria e Agregação do Santíssimo Sacramento).
Com a
classificação de muito-bom, no exame geral da quarta classe do ensino primário,
entrou, aos 10 anos, em 1926, no Seminário do Fundão. Arnaldo Saraiva procurou,
fundamentalmente,apurar tudo o que vem (e não vem) na obra de mons. Alfeu dos
Santos Pires História e Vida dos Seminários
da Guarda e do Fundão, noutros estudos monográficos e em depoimentos de
contemporâneos.
Evitou Vergílio
Ferreira, na Manhã Submersa, na Estrela Polar, no Diário e na Conta Corrente
descrever situações degradantes que lhe marcaram a infância e adolescência até
aos 16 anos. Tentou resumir esse submundo de reacionarismo e de intolerância
numa frase abrangente: «solidão,
desconforto, rigidez de internato».
CULTURA DE
HIPÓCRISIA
No entanto,
a investigação de Arnaldo Saraiva reuniu elementos esclarecedores: «o dia-a-dia
do seminário do Fundão favorecia por vezes menos a firmeza ou o fortalecimento da
vocação do que a hipocrisia e os sentimentos de medo, culpa, frustração,
desamparo e tristeza, que nem podiam ser expressos em cartas, porque estas eram
obrigatóriamente entregues abertas; e, é claro, que nenhum seminarista recebia
correspondencia que não tivesse sido aberta e lida por um superior» E
acrescenta: «os seminaristas não eram tão incentivados a usar ou a desenvolver
as suas capacidades criticas como a cumprir e valorizar os deveres de obediencia
e de humildade». (pag. 22)
O PECADO DA
CARNE
Todavia, ao
caracterizar o espaço fechado e asfixiante do seminário do Fundão, Arnaldo
Saraiva escreve: «o tempo diario gasto, sobretudo, em rituais religiosos» (...)
«missa, terço, rezas, prédicas, exames de consciência e retiros, mais
valorizados do que o tempo das aulas ou das salas de estudo». (...) «a regra do
silêncio se impunha até nas horas das refeições». (...) E também as punições
frequentes: «a imposição de uma disciplina militar ou militarista e castigando
severamente mesmo pequenas infrações, que podiam merecer palmatoadas, verdascadas
e bofetadas, ou largos minutos de joelhos e de pé virados para as paredes». (pags.
21 ,22)
Menciona a vigilância nos corredores e nas
camaratas para afastar «o fantasma do
pecado da carne» (sic): «as calças (obrigatóriamente pretas, como o casaco
e a gravata) tinham de ser vestidas e despidas entre os lençois; as mãos não
podiam ser aquecidas nos bolsos; o entendimento entre colegas tinha de ser
limitado para não conduzir a perigosíssimas amizades
particulares». (pag. 23)
Estas
medidas repressivas no dominio sexual e afetivo, e a que foram submetidas
gerações sucessivas – concluíu Arnaldo Saraiva – não
impediram, decorridos 90 anos, que o seminário do Fundão fechasse «as suas
portas, em 2015,já depois de um escandalo que envolveu um seu vice-reitor». (pag. 51)
NOTAS CONFIDENCIAIS
Apesar do
encerramento, amplamente noticiado na comunicação social, das declarações
contraditórias de bispos da diocese, de processos-crime de pedofilia julgados
em Tribunal e a aguardar decisões de instâncias judiciais superiores, perdura o
arquivo do Seminário do Fundão. Possui fontes documentais, até agora,
consultadas por um número muito restrito de eclesiásticos como Alfeu dos Santos
Pires e de que só chegaram ao público informações escassas e muito filtradas.
Ao ter
acesso aos livros de registos, Arnaldo Saraiva extraíu notas manuscritas e que
constam de fichas de comportamento e aproveitamento (1928 – 1937). Trata-se
de avaliações de reitores e professores, advertências de diretores espirituais e
denúncias de confessores que seguiam, de perto, o percurso de cada aluno, em
cada ano escolar. Também se destinavam a informar o bispo da diocese da Guarda
José Alves Matoso.
Entre as
observações mais significativas a propósito de Vergilio Ferreira destacam-se, nomeadamente;inteligência
e aplicação «regulares»; caráter «afeminado e voluntarioso; tem muitos nervos,
é um histérico»; e, ainda, por exemplo,faz «tratamento anti-siflítico. É hereditária a doença». (pags.24
a 29)
Em Vergilio Ferreira, Seminarista nos
seminários do Fundão e da Guarda, Arnaldo Saraiva desfez tabus, esclareceu
equívocos, desmontou opiniões falsificadas, corrigiu datas e, em especial, recolheu
numerosos documentos inéditos com revelações surpreendentes.Tudo isto porque Arnaldo
Saraiva reconhece que, apesar dos livros sobre Vergílio Ferreira da autoria de
Maria da Glória Padrão e Helder Godinho, de Serafim Ferreira e Fernanda Irene
Fonseca,entre outros estudiosos, Vergilio Ferreira «espera ainda e merece, uma
biografia digna», (pag. 7)
MANANCIAL
PRODIGIOSO
O universo
cadaveroso dos seminários - viveiro dos precursores da delação premiada –
proporcionou a largos milhares de antigos alunos, que foram expulsos ou
desistiram do sacerdócio, as habilitações indispensáveis para ingressar no
funcionalismo público (Câmaras Municipais, correios, tribunais, Policia
Judiciária,PIDE etc) ou, então, nos cursos do magistério (primário, secundário
e superior). No caso de Vergilio Ferreira serviu - lhe para fazer o liceu,
entrar na Universidade de Coimbra, formar-se em Letras e lecionar, em diversos
liceus, Português, Latim e Grego. A repetir, durante décadas, sempre o mesmo do
mesmo.
O «exercício
burocrático do ensino» – assim me declarou várias vezes – assegurava-lhe a
subsistência económica e o equilibrio financeiro. Cinco ou seis anos de vexames
e de humilhações, nos seminários do Fundão e da Guarda, deram-lhe um prodigioso
manancial de conhecimento vivido, para reflexões angustiantes em torno da
natureza humana. Abriram caminho para se afirmar como um dos mais notáveis
escritores portugueses do século XX e com legítima ambição ao Prémio Nobel da
Literatura.
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