sábado, 6 de maio de 2017




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Um governo de esquerda na 1.ª República
O Governo da Esquerda Democrática de José Domingues dos Santos - 1924/25 será o único a contar com o apoio popular, incluindo a anarco-sindicalista CGT, o Partido Socialista e o jovem Partido Comunista.

Artigo de Álvaro Arranja


A 13 de Fevereiro de 1925, Lisboa é palco de uma grande manifestação de todas as forças de esquerda - jornal "A Batalha"
Entre Novembro de 1924 e Fevereiro de 1925, a 1.ª República tem o seu único Governo nitidamente de esquerda, o Governo da Esquerda Democrática de José Domingues dos Santos. Será o único a contar com o apoio popular, incluindo a anarco-sindicalista CGT, o Partido Socialista e o jovem Partido Comunista. Contará, pelo contrário, com a oposição activa da União dos Interesses Económicos,
representante do patronato que tudo fará para o derrubar.
Nos finais de 1924, as grandes figuras do velho Partido Republicano Português (agora conhecido como Partido Democrático), chefiadas por António Maria da Silva, mostravam-se incapazes de gerar uma solução governativa. Era a hora da ala esquerda do republicanismo ter finalmente a sua oportunidade.
Em França, país chave no imaginário dos republicanos portugueses, vivia-se a primeira experiência de unidade da esquerda. Era o triunfo do "Cartel des Gauches" que reunia radicais de esquerda, radicais-socialistas, republicanos socialistas e socialistas da SFIO. Em Maio de 1924, o "Cartel das Esquerdas" derrotara a direita, subindo ao poder um governo radical-socialista, presidido por Édouard Herriot.

José Domingues dos Santos surge como uma figura com o objectivo de recuperar a base social que estivera na origem do 5 de Outubro. Forma Governo em 22 de Novembro de 1924, sem o apoio da ala direita do Partido Democrático, mas com o apoio de muitos deputados hesitantes que lhe garantem um apoio parlamentar instável. O novo Presidente do Ministério declara ostensivamente no seu discurso de apresentação, pertencer à "esquerda da república". Conquistar o apoio popular, do movimento sindical, é a sua melhor probabilidade de subsistência.
Desde o início da sua actividade, o Governo de José Domingues dos Santos vai enfrentar o poder económico, a começar pela banca.











A reforma bancária
Em Janeiro de 1925, um decreto ataca directamente a especulação bancária, dando vastos poderes ao Governo para controlar a banca.
Segundo “O Mundo” de 22.1.1925, jornal histórico do republicanismo, agora próximo de José Domingues dos Santos," a reforma bancária fez-se para evitar:
- que os bancos financiem empresas de resultados duvidosos, dirigidas pelos directores do próprio banco;
- que funcionem casa bancárias com um capital diminuto, em que os sócios devem quantias iguais a esse capital;
- que funcionem bancos cujos directores tenham  abertas contas com enormes saldos devedores."
O Governo pretendia ver os bancos a financiar as pequenas e médias empresas, combatendo a monopolização do crédito. Podia encerrar os bancos que não cumprissem estes critérios.
Estas medidas foram entendidas como uma verdadeira declaração de guerra, pela alta finança.
Apesar de esclarecer não querer apoiar o Governo, “A Batalha” de 23.1.1925 (órgão da CGT anarco-sindicalista), refere no seu tom característico, estarem "a banca e os reaccionários em estreita e fraternal união", dando "um espectáculo repugnante de rebeldia contra o actual Ministério".
A reforma agrária
Outra iniciativa que vai marcar o Governo de José Domingues dos Santos, é uma proposta de reforma agrária, da responsabilidade do ministro Ezequiel de Campos, republicano próximo do grupo da Seara Nova.
Apesar de se tratar de uma reforma com objectivos muito moderados, a forte reacção dos latifundiários do Alentejo e Ribatejo, transforma-a num tema político da maior importância.
Nas páginas de “O Século” de 15.1.1925, jornal do patronato agrupado na União dos Interesses Económicos, Pequito Rebelo (figura fundamental da extrema-direita, fundador do Integralismo Lusitano), escreve que a reforma de Ezequiel de Campos "encerra um princípio de guerra civil e de dissolvente ataque à propriedade".
Segundo Pequito Rebelo, o Governo quer erguer esta reforma como uma "bandeira revolucionária". O latifúndio seria para ele "a melhor utilização da propriedade". Continua dizendo que "um defeito gravíssimo da lei é o seu estatismo, o vício de querer substituir a acção do Estado, à acção da propriedade".
De facto, a proposta do Governo não tem os contornos radicais que Pequito Rebelo, dando voz aos grandes latifundiários, diz possuir. Apenas prevê:
- a expropriação com indemnização dos ermos , pousios e terras mal aproveitadas;
- a divisão das destas terras em pequenas parcelas vendidas ou arrendadas a novos ocupantes.
No relatório que acompanha a proposta de lei apresentada na Câmara dos Deputados, a proposta mais ousada é a "apropriação pelo Estado dos pousios mal aproveitados e dos trechos agricultáveis dos baldios".
Porém, mesmo moderadamente, depois da banca, o Governo ousava tocar nos privilégios de outro grupo das então chamadas "forças-vivas", os grandes latifundiários.
A Batalha” de 17.1.1925, insta o Governo a um salto em frente, dando "a posse da terra aos sindicatos de trabalhadores rurais".
O encerramento da Associação Comercial de Lisboa
O outro pilar das "forças vivas", é o grande comércio. A Associação Comercial de Lisboa, faz desde o início um ataque feroz ao Governo. A resposta de José Domingues dos Santos, vai marcar o momento de ruptura com o poder económico.
Já antes tinha sido preso como açambarcador, Manuel de Melo, genro de Alfredo da Silva e herdeiro do grupo CUF.
No início de Fevereiro é dissolvida por um decreto a Associação Comercial de Lisboa. A defesa da República contra as conspirações dos "interesses económicos" que pretendem derrubar o regime, é claramente colocada pelo Governo.
O decreto de dissolução refere que a atitude da Associação, " tomou recentemente um carácter de verdadeira rebelião contra os poderes constituídos", tendo-se transformado "em grémio político tendente a promover a desordem e capaz de gerar males sociais difíceis de calcular".
O Mundo” de 6.2.1925, jornal declaradamente apoiante do Governo, titula a toda a largura da 1ª página "O Governo Defende a República". A propósito da Associação Comercial, comenta que "transformada em centro político adverso às instituições, tendo nela surgido para obscuros fins a famosa Liga dos Interesses Económicos cujo carácter reaccionário e subversivo não oferece dúvidas, a Associação Comercial de Lisboa já não era um órgão verdadeiro da sua classe, mas um foco de permanente perturbação social, que se julgava acima da lei e não duvidava pregar as mais perigosas rebeldias. "
(jornal "A Batalha de 30 de Janeiro de 1925)
Em 8 de Janeiro, a União dos Interesses Económicos em comunicado qualifica este encerramento como "monstruosa violência".
Estava declarada a opção da oligarquia económica, por soluções semelhantes à Itália de Mussolini ou à Espanha de Primo de Rivera.
A atitude radical dos representantes do poder económico, teria inevitáveis consequências a nível político. A ala conservadora no interior do Partido Democrático, não iria deixar passar em claro esta oportunidade. Aliando-se à direita parlamentar, podia facilmente derrubar um governo que despertava o ódio das várias oligarquias
"A GNR não serve para fuzilar o povo"
Face a esta conjuntura, a José Domingues dos Santos não resta senão apelar para o apoio da "rua".
(Jornal "A Batalha" de 7 de fevereiro de 1925)
No dia 6 de Fevereiro de 1925, várias organizações republicanas, com o apoio da CGT anarco-sindicalista, do PS e do PCP, promovem uma grande manifestação de apoio ao Governo. Era a primeira vez que um ministério republicano tinha este apoio do movimento operário e seria a última.
Segundo “A Batalha” do dia seguinte, a manifestação "foi uma imponente parada contra os manejos da União dos Interesses Económicos." O jornal sublinha a convivência entre os republicanos de esquerda e o movimento operário, referindo que "enquanto uma parte dos manifestantes cantava A Portuguesa a outra parte, a maior, composta na sua maioria por operários, entoava a plenos pulmões A Internacional."
Um incidente viria a marcar esta manifestação. Iniciado nos Restauradores, o cortejo quando pretendia dirigir-se ao Largo do Município, viu a sua passagem impedida, junto ao Banco de Portugal, pela GNR. A força pública efectuou disparos, tendo também explodido uma bomba, dando origem a vários feridos.
A manifestação não se dispersou, dirigindo-se ao Terreiro do Paço onde, das varandas do Ministério do Interior, José Domingues dos Santos viria a fazer afirmações nunca ouvidas a um chefe de governo republicano.
Segundo “O Mundo” do dia seguinte, perante o tiroteio que se generalizava, com os soldados "num estado extraordinário de exaltação, José Domingues dos Santos ordenou a dois oficiais que se encontravam na sala do Ministério do Interior que façam recolher os soldados ao posto. O desejo do chefe do governo é imediatamente cumprido e a multidão ovaciona delirantemente".
José Domingues dos Santos logo de seguida fala aos manifestantes, fazendo suas as ideias do movimento operário. Ainda segundo “O Mundo”, diz que "o povo tem sido explorado pelo alto comércio e pela alta finança. O Governo da República colocou-se abertamente ao lado dos explorados, contra os exploradores. (Prolongados aplausos)". Sobre os incidentes daquele dia, afirma que "lamenta profundamente o acontecimento que se acaba de dar." Afirma ainda que não consente que "a força pública sirva para fuzilar o povo".
De seguida algo de singular se passaria. Seguindo ainda “A Batalha”, “à janela do ministério assomou o camarada Rosendo José Viana, em nome da União dos Sindicatos Operários, para protestar contra as violências momentos antes praticadas pela GNR(…) e para exteriorizar o seu descontentamento contra as forças vivas”. É um momento único na história da 1ª República… um sindicalista da CGT discursando na janela do Ministério do Interior.
"Ao lado dos explorados contra os exploradores"
(Jornal "A Capital" de 9 de fevereiro de 1925)
Por convicção ou levado por cálculo político, as últimas declarações de José Domingues dos Santos, são de uma clara opção pela esquerda, colocando-se ao lado do discurso da CGT, do PS ou do PCP.
Em 11 de Fevereiro, a conclusão esperada chega. Uma moção no parlamento, aprovada por 65 votos contra 45, provoca a queda do Governo. António Maria da Silva lidera a direita dentro do PRP que, em aliança com toda a direita parlamentar, derrota o Governo "canhoto".
José Domingues dos Santos, perante a morte anunciada da experiência governativa da Esquerda Democrática, vai ao fundo da questão. No parlamento declara:
"- Ficamos entendidos! A maioria que votou contra nós quer um Governo que esteja ao serviço dos exploradores contra os explorados; quer um Governo que use a força pública para espingardear o povo! Cumpram-se os fados."
A 13 de Fevereiro, Lisboa é palco de uma grande manifestação de todas as forças de esquerda. Segundo “A Batalha” do dia seguinte, tratou-se de "Uma jornada gloriosa do povo de Lisboa". Segundo o jornal, sempre avesso a apoios a governos republicanos, "mais de 80.000 pessoas - trabalhadores manuais e intelectuais - foram ontem a Belém manifestar perante o Chefe do Estado a sua repulsa pelas afirmações do parlamento, onde se derrubou um governo por ter dito que a Guarda Republicana não foi feita para fuzilar o povo e que estava ao lado dos explorados contra os exploradores". Para “A Batalha”, “basta de reaccionários e delegados dos bancos no parlamento!”, concluindo que “acima dos políticos reles que as servem, as oligarquias financeiras são o maior inimigo.”
Mas a manifestação do povo de Lisboa, nada podia contra o muro de interesses que derrubou o governo da Esquerda Democrática. A 1ª República tinha cortado definitivamente com os sectores populares que lhe podiam fornecer um a base de apoio.
A Ditadura anuncia-se. Um ano e quatro meses antes do 28 de Maio de 1926, já “A Batalha”descrevia com notável rigor o que iria acontecer no país nos 50 anos seguintes. Segundo o jornal da CGT “A União dos Interesses Económicos – união dos capitalistas que nos têm roubado e explorado – está preparando um forte movimento de reacção, apoiado por todas as forças conservadoras e reaccionárias do país. O seu objectivo é galgar ao poder para exercer sobre o povo a mais esmagadora ditadura económica, defendida pelo exército, sancionada pela igreja e manejada pelos monárquicos. Lançar-se-á furiosamente contra as pequenas regalias conquistadas pelo povo. Cairá sobre os sindicatos operários, sobre a liberdade de reunião e pensamento, reduzindo pela asfixia o país ao silêncio.”



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