sábado, 7 de janeiro de 2017

         

Da Revista Sábado de 08 Janeiro 2015 • Rita Garcia,
com a devida vénia

As damas da alta sociedade na Primeira Guerra
 
Durante o conflito de 1914-18, a Cruz Vermelha construiu um hospital de campanha em França e tornou-se pioneira ao enviar um contingente de mulheres para tratar dos soldados nacionais. Elas nunca os deixaram. Mesmo quando só lhes restava vê-los morrer.
 
Antes de partir para a guerra, Maria Antónia Ferreira Pinto Basto já tinha fama de ser difícil. Enviuvara depois de um casamento conturbado com um marido demasiado mulherengo para o gosto dela. Os dois nunca tiveram filhos nem se divorciaram, mas viveram anos em cidades diferentes por incompatibilidade de feitios. Na alta sociedade lisboeta, Maria Antónia era conhecida por ser dura e inflexível. Em casa também. Os sobrinhos nunca sabiam bem aquilo de que a tia era capaz. No dia em que um dos seus favoritos lhe apresentou a futura mulher, ela tratou de a pôr à prova. Poupou-a a perguntas incómodas e a olhares de desdém. Fez-lhe apenas um pedido: "Mostre-me os seus dentes." Ninguém ousava dizer-lhe que não. Era de alguém assim que a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) precisava para chefiar a missão que estava prestes a lançar.

A Primeira Guerra Mundial, cujo centenário se comemora em 2014, já durava há dois anos e meio quando os primeiros militares do Corpo Expedicionário Português (CEP) saíram de Lisboa, em Janeiro de 1917. Iam juntar-se às tropas britânicas que combatiam em França os países da Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália). Bastaram as primeiras semanas do conflito para se perceber que os soldados portugueses tinham um problema: quando ficavam feridos, ninguém os compreendia nos hospitais de campanha. Cedo se percebeu que era preciso montar uma unidade de saúde onde se falasse português.
 

O duelo de Maria Antónia
Com o conhecimento e o apoio do então ministro da Guerra, general Norton de Matos, a CVP comprometeu-se a realizar uma viagem exploratória ao Norte de França com o objectivo de instalar uma unidade de saúde junto do contingente português. Thomaz de Mello Breyner foi convidado para chefiar a missão. E levou com ele uma aliada de peso: Maria Antónia Ferreira Pinto Basto, cuja determinação se revelaria fundamental até ao fim do conflito. A equipa contava ainda com o comissário Luiz Albuquerque Bettencourt, o cirurgião Azevedo Gomes e a secretária Albertina Torres.

Um contratempo de última hora impediu o chefe de missão de seguir para Paris com os restantes elementos, deixando à madame Ferreira Pinto, como era conhecida, a condução de várias matérias delicadas. Como falava bem inglês e francês – uma característica que partilhava com toda a família –, sentiu-se à vontade nas reuniões mais decisivas.

Uma das primeiras, a 6 de Abril, foi com Lord Donoughmore, o representante da Cruz Vermelha Britânica (CVB) em Boulogne-sur-Mer, onde ficava o Hospital Base nº 1, junto ao Canal da Mancha. De acordo com a correspondência enviada para a sede em Lisboa – provavelmente pelo médico Azevedo Gomes, apesar da assinatura ser quase ilegível – "a senhora dona Maria Antónia, com toda a sua superior inteligência e extraordinárias aptidões, travou com Sua Excelência a mais agradável e amigável conversação".

Quem conhecia Lord Donoughmore dizia que, quando prometia alguma coisa, nunca falhava. Por isso, madame Ferreira Pinto saiu do encontro com uma certeza: a CVB estava disposta a ajudar a portuguesa a construir um hospital de segunda linha, mais barato do que os que operavam em postos mais avançados. Os ingleses dispunham-se a oferecer todo o recheio da unidade, desde o mobiliário às camas, sem esquecer a roupa, todo o equipamento de cozinha e os aparelhos de desinfecção. Ficaram ainda de dar todo o material necessário para o bloco operatório e para o laboratório, e fogões de aquecimento que ajudassem doentes e pessoal a suportar os rigores do Inverno. Mais tarde, a Cruz Vermelha Americana também daria o seu contributo – um cheque para pagar a instalação eléctrica da unidade e uma verba destinada à compra de um transporte para o pessoal.
Numa primeira fase, ainda se equacionou a hipótese de montar o hospital num edifício já existente, mas a ideia não vingou. "As casas particulares são para moradia, os hospitais são para doentes", justificava a mesma carta. Por conselho de Lord Donoughmore, optou-se por construir uma unidade do tipo canadiano, com barracas de madeira ligadas entre si e capacidade para 200 doentes. O custo estimado da obra rondaria as 6.500 libras (cerca de 421 mil euros considerando a inflação e convertendo o valor para preços correntes de 2014).

Em plena guerra tudo tinha de ser autorizado pelos comandantes dos Exércitos e tanto o português como o britânico levavam tempo a decidir. Por fim, os generais Tamagnini e Wilberforce deram o aval e o inglês combinou mostrar à delegação portuguesa a área que pretendia ceder-lhes para o efeito. No dia seguinte, apanhou-os de carro no hotel Dervaux, onde estavam hospedados, e levou-os ao local. Foi uma desilusão. "[Era um] terreno baixo, árido e exposto, como nenhum, aos ventos do Norte que ali tinham trágica fama", escreveu um dos elementos da missão. Na base constava que Wilberforce contrariava tudo e todos, mas isso não demoveu Maria Antónia de o fazer reconsiderar. "Travou-se um duelo de argumentos defendidos [por ela] com tal ardor que, a pouco e pouco, o general foi cedendo e finalizou por perguntar se este ou aquele terreno nos convinha", diz a carta.

Madame Ferreira Pinto aproveitou a oferta e escolheu um junto à estrada, a escassos metros de um conjunto de casas que poderiam ser arrendadas para alojar as enfermeiras que chegariam dentro de poucos meses.
A plantação de batatas
Só havia um inconveniente: nesses campos existia uma sementeira de batatas que, dada a escassez de alimentos, não se podia desperdiçar. A solução era começar a obra por outra ponta da propriedade enquanto não se fazia a colheita.

O contrato de arrendamento teve início a 1 de Julho, mediante o pagamento de 75,70 francos por trimestre (cerca de 14 mil euros a preços de hoje). Depois de negociações falhadas com o primeiro construtor, a CVP adjudicou o trabalho à Sommerville & Co. Com os atrasos e a falta de materiais, o preço disparou: em vez das 6.500 libras previstas inicialmente, os custos ascenderiam a 11.500 (708 mil euros em valores actuais).

A este encargo somar-se-ia ainda o pagamento dos quatro hotéis que, a partir de 1 de Outubro, seriam arrendados em exclusivo para acolher as enfermeiras e os oficiais com a devida dignidade. O pessoal seria distribuído entre o Hotel et Café de la Paix, o Sourire d’Avril, o Brise de Mai e o Éole, cujos letreiros foram cobertos por panos com as insígnias da CVP.

Ao fim de quase três meses, os enviados da CVP tinham tudo tratado. Deixaram dinheiro à CVB para saldar contas na sua ausência, e regressaram a Lisboa, onde as primeiras candidatas ao Grupo Auxiliar de Damas Enfermeiras já estavam em formação.
As regras para entrar eram apertadas. As que fossem formadas, deveriam apresentar um certificado de habilitações. As outras tinham de se submeter aos cursos que a CVP ministrava na sede de Lisboa. Só seriam admitidas mulheres com idades entre os 21 e os 50 anos, que tivessem as vacinas em dia e "um atestado médico provando que não sofriam de moléstia contagiosa", especificava o regulamento.

Só as melhores viriam a usar os símbolos da missão: o uniforme, obrigatório mesmo nas folgas, um cinto, uma braçadeira, uma bolsa, distintivos, botões e um bilhete de identidade com fotografia. Todos os objectos eram propriedade da CVP e deviam ser devolvidos no fim da comissão de serviço.

As enfermeiras assinavam um compromisso em que se sujeitavam a um conjunto de regras, incluindo o dever de neutralidade em relação a políticas e credos. Tinham também de obedecer à superintendente e de sacrificar o bem-estar pessoal em função das necessidades de feridos e doentes. "[A enfermeira] obriga-se a ser correcta em todos os seus actos, serena, obediente e rigorosamente pontual", lê-se no documento. Ninguém tinha ordem de partir sem o Ministério da Guerra sancionar a sua ida. Só então recebia guia de marcha e uma patente equiparada a alferes.

Quase todas as 26 mulheres que constituíram o primeiro contingente eram jovens, solteiras e pertenciam à alta sociedade. Ao todo, de acordo com os documentos consultados pela SÁBADO, terão sido enviadas para França 37 damas-enfermeiras.

O atraso nas obras
Em Outubro, madame Ferreira Pinto foi de novo a França, desta vez para fiscalizar as obras. Queria certificar-se de que estava tudo pronto quando chegassem as primeiras enfermeiras, a 19, 21 e 24 de Novembro. Em Ambleteuse, ficou desanimada com o que viu. A construção começara logo atrasada por falta de madeiras, retidas durante demasiado tempo num porto britânico por falta de autorização do Exército para o transporte. Depois foram as chuvas de Outono que deixaram o solo enlameado e impróprio para aquele tipo de empreitada. Além disso tudo, havia uma enorme dificuldade para arranjar mão-de-obra. Nessa altura, todo o trabalho estava apenas a ser feito por 10 carpinteiros ingleses e seis operários franceses.
Uma coisa era certa: o hospital não ia estar pronto a tempo. Era necessário encontrar uma solução. Mais uma vez, madame Ferreira Pinto tratou do assunto. Por intermédio de uma amiga, marcou um chá com Miss McCarthy, a chief matron (enfermeira-chefe) do Exército Britânico, que tinha patente de general e 10 mil mulheres sob o seu comando só em França. Nessa tarde, pediu-lhe que autorizasse as novas enfermeiras a integrar as escalas das inglesas enquanto não pudessem começar a trabalhar no hospital português. Apesar de ser uma situação inédita, Miss McCarthy acedeu. Exigiu, porém, que, em cada grupo, pelo menos uma falasse bem inglês, e deixou claro que todas elas deveriam obedecer-lhe.



De facto, foi no Hospital de Base nº 1 que as damas-enfermeiras fizeram serviço durante os primeiros meses. Ali confrontaram-se com gaseados, feridos, amputados e passaram a lidar com a morte todos os dias. Em Lisboa, o ministro Norton de Matos dava conta do seu orgulho numa entrevista ao jornal O Século: "A participação das enfermeiras portuguesas no nosso sector era precisamente a última démarche que faltava concluir para que o nosso exército pudesse considerar-se completamente em pé de guerra."
Depois de quase um ano de negociações e contratempos, o hospital da CVP acabou por ser inaugurado numa data que ficou para a História: 9 de Abril de 1918, o dia em que começou a batalha de La Lys, que provocou gravíssimas baixas no Corpo Expedicionário Português. O enorme número de feridos foi distribuído por todas as instalações de saúde disponíveis. E o Hospital de Base nº 2, nome oficial do hospital da CVP, teve de abrir portas para acudir à emergência. A forma corajosa como as damas-enfermeiras se comportaram ficou registada nas fichas de identificação de cada uma.

Notícias e relatos da época deixam claro que as mulheres da CVP não se pouparam a esforços. "Geralmente esquecemos a dedicação e o amor com que as enfermeiras portuguesas, algumas delas senhoras de rara distinção, abandonaram a tranquilidade dos seus lares, as frivolidades da moda, o convívio amigável de dezenas de pessoas, o prazer de se sentirem elegantes e admiradas, pela vida rude, dolorosa e sograda de aliviar muitas dores, estancar o sangue vivo de muitas feridas, fechar as pálpebras sobre os olhos vítreos dos nossos queridos mortos", publicava o jornal O Século a 20 de Agosto de 1918.

No mesmo artigo, o médico Vasco Palmeirim falava com particular enlevo de um grupo especial de 10 damas-enfermeiras destacadas, no Inverno anterior, para servir no Hospital de Sangue nº 8, em Herbelles, junto à frente de batalha. Elogiava-lhes a abnegação que revelaram ao passar "meses seguidos em misérrimas aldeias, mal alojadas, sem sombra de conforto no meio daquele cenário de perigos, dor e sofrimento." Ali, à falta de hotéis, dormiam em tendas de lona montadas sobre terra batida.
O clínico relatava a forma como se tinham mantido firmes em "noites frigidíssimas de Inverno, tendo de transitar de umas barracas para as outras, cercadas de neve e lama, numa escuridão profunda para que os aviões inimigos não as descobrissem". E admirava-as por suportarem sem queixumes a necessidade de "usar botas altas de borracha e bengalões ferrados como os homens".

No Hospital de Base nº 2, em Ambleteuse, as condições podiam ser um pouco melhores, mas faltava quase tudo. Era frequente ter de se pedir bens a Lisboa. Encomendava-se papel e envelopes timbrados para a correspondência e até panos de limpeza – os que havia eram caros e maus. Mas o mais grave era a escassez de alimentos, como azeite, feijão e grão.

O grupo de pescadores
A única coisa que havia em abundância era peixe, graças à proximidade do mar e ao grupo de pescadores criado pelo tenente Rui Ferreira, responsável pelas provisões. "A nossa pescaria dá excelentes resultados. Nunca mais houve falta de peixe para dietas e tem até dado rancho geral para 275 pessoas. Apanhei dois bacalhaus enormes", escreveu a 17 de Julho de 1918.
Por essa altura, as damas enfermeiras desdobravam-se em cuidados para cuidar dos militares e civis infectados com a gripe pneumónica que matou milhares de pessoas em toda a Europa. O jornal Le Telegramme elogiou-as num texto de coluna inteira.
De resto, o esforço da CVP foi reconhecido de imediato em França. No dia em que a Câmara Municipal de Ambleteuse inaugurou um monumento aos portugueses mortos em combate na Primeira Guerra, as autoridades aproveitaram para homenagear toda a equipa.

A dedicação das damas-enfermeiras não cessou com o Armistício. Muitas permaneceram ao serviço até que os últimos feridos estivessem em condições de voltar a casa. Por causa deles, ficaram em França grande parte do ano 1919. No fim, algumas receberam condecorações. Maria Antónia Pinto Basto, por exemplo, foi agraciada com a Cruz da CVP e várias medalhas comemorativas da campanha. De volta a Lisboa, nunca falava da guerra. Morreu em 1930, depois de um serão passado no teatro.
 

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