Camara Municipal de Lisboa 9 de Dezembro de 2015 |
Soares, tal e qual
António Valdemar*
Era um animal político. Mal acordava, Mário Soares queria
saber tudo o que acontecera. Mergulhava na leitura dos jornais e revistas.
Portugueses. Franceses. Espanhóis. Entretanto, seguiam – se os telefonema.
Organizava mentalmente essa informação para enfrentar mais outro dia.
O perfil do homem público
não se diferenciava muito do homem no convívio íntimo. Nos afetos calorosos,
nas aversões ferozes. Mudou, evidentemente, de opinião sem alterar princípios
fundamentais. Há situações que, de momento, não vale a pena enumerar. Todavia,
era espontâneo nas simpatias e antipatias. As reconciliações possíveis não
erradicaram os motivos de cisão, de incompatibilidade, de afastamento. De corte
de relações políticas. De relações pessoais. Ou ambas as coisas.
Não se adaptou à internet.
O computador colocado na secretaria, do seu gabinete na Fundação, era apenas um
elemento decorativo. Até ao fim, tudo o que leu tinha de ser em papel.
Escrevia, com rapidez e fluência, na sua letra miúda. Cada vez mais miúda. Mas,
em certas ocasiões, emendava muito. As secretárias, durante décadas, a Osita e
a Maria José, habituaram – se a decifrar os manuscritos labirínticos, os
«textos aracnídeos» conforme exclamei ao ver uma folha A4 repleta correções, de acrescentamentos, de cortes, de
repuxos.
Ao falar – lhe nisso
respondeu – me: «Procuro, apenas, ser claro». Insisti: «O seu mestre Prof.
Francisco Vieira de Almeida costumava advertir: «O simples não é o fácil».
Soares olhou – me de alto a baixo e pediu para repetir. E acrescentou: «Eu que
o diga...»
Era um homem de cultura. Apesar de nunca ter sido escritor
na verdadeira aceção da palavra, frequentou tertúlias de Lisboa e de Paris e
sentia – se em pé de igualdade ao lado dos outros intelectuais. Procurava estar
ao corrente das novidades. Comprava tudo o que lhe interessava e alguns livros
que, não fazendo parte das suas curiosidades habituais, já constituíam uma
referência.
Além dos milhares de livros
que tinha em casa, e nas casas de Nafarros e do Algarve, instalou no 4º andar
do seu prédio, uma «nova biblioteca». Perante aquele universo bibliográfico,
devidamente, sistematizado por temas e autores, confirmei o prazer, mais do que
isso, a volúpia de ter edições raras. Encadernações preciosas. Primeiras
edições, de livros com dedicatórias dos autores e anotações dos possuidores.
Não esqueço o
deslumbramento que manifestou ao visitar a biblioteca de Pina Martins, de
folhear primeiras edições de Erasmo e Damião de Gois. «Estou esmagado. É
demais... » Nesse dia, ao jantar comigo e com o José Manuel dos Santos -
seu colaborador direto, durante décadas e amigo muito próximo - embora houvesse
matéria política escaldante, continuava dominado pela emoção que lhe causara a
coleção de Pina Martins. E, de vez em quando, repetia: «Estou esmagado...
Estive para cheirar o papel mas o Pina deve usar inseticidas».
Mário Soares toda a vida
também frequentou livrarias e alfarrabistas. Mesmo quando era Primeiro-
Ministro, Presidente da Republica, deputado do Parlamento Europeu. Incluiu
entre os seus amigos poetas e escritores. Uns ainda da geração do pai, como
Jaime Cortesão e Aquilino; da geração seguinte Rodrigues Migueis e Miguel
Torga; outros da sua geração como Carlos de Oliveira, Cardoso Pires, Sophia,
Natália Correia, Mario Cesariny ou Luís Pacheco. Outros ainda das gerações mais
recentes.
O mesmo aconteceu com
artistas plásticos. Admirava Columbano mas o seu apreço e convívio estenderam –
se, por exemplo, a Júlio Pomar, a Vieira da Silva, a Jorge Martins. Escapava –
lhe a música. Perguntava – me um dia: «Consegue escrever com música?». «Sempre
que estou em casa escrevo melhor com música». «Mas que música? – insistiu. «Com
os clássicos. Quase sempre os mesmos». «Compreendo perfeitamente...»
De todos os escritores
portugueses o que mais admirava era Eça de Queiroz. Outra das suas admirações
profundas era Teixeira Gomes. Várias vezes, na sua casa do Vau, partilhamos a
leitura de páginas antológicas do Agosto Azul
e de pequenos grandes textos acerca das metamorfoses da luz e da cor, das
praias e do mar do Algarve, das pedras com memória e das terras com aromas.
Era um homem de coragem. Política e pessoal. Deu provas da
sua determinação na resistência ao salazarismo, nas prisões que suportou. No
verão quente de 75, ao insurgir – se contra outros totalitarismos. Em campanhas
eleitorais, ao ser agredido na Marinha Grande. Ao assistir, no encerramento de
um Congresso da Internacional Socialista, da qual era vice – presidente, ao
atentado a Sartawi, observador da OLP e abatido por um membro de um grupo
radical, do Abu Nidal, no Hotel de Montechoro.
Estava preparado para
as situações mais diversas. Trágicas, cómicas, insólitas. Em 1990, como
Presidente da Republica entregou o Premio de Poesia a Natália Correia e, ao
mesmo tempo, aproveitou a oportunidade para a distinguir com a Ordem da
Liberdade. Natália Correia ouvia o discurso com o seu ar desafiador.
Enalteceu, de início, em
duas frases os méritos literários de Natália e os seus contributos para a
Democracia, antes e depois do 25 de Abril. A seguir Mario Soares, numa breve
nota pessoal, quando salientava, apenas e tão só, que Natália Correia fora «uma
das mulheres mais belas da Lisboa dos anos 40 e 50» ouviu – se, em toda a sala,
sem necessidade de microfone, a cólera vulcânica e impetuosa de Natália; «Lá
está ele a falar do meu corpo. Olhou sempre para mim como uma fêmea. Nunca
contemplou o meu espírito. Nem mesmo aqui... »
Era de mais. Excedera os
limites aceitáveis. Ultrapassara broncas sucessivas que marcaram a sua presença
na Presidência Aberta nos Açores. A cerimónia começava a perder a dignidade
institucional. Mário Soares decidiu abreviar o discurso. Horas depois, num
jantar reservado, riu. Riu imenso. Rimos todos com ele. A amizade manteve – se
na íntegra. Continuou a prestar a Natália todas as homenagens. Em vida, por
ocasião da morte e depois da morte.
Era um apreciador da boa
mesa. A mulher é
que tratava dos assuntos domésticos. Tal como acontecera com a mãe. Mas havia
pequenas coisas que lhe davam satisfação. Ir comprar doces e alguns queijos. No
tempo das castanhas, de regresso a casa, mandava o motorista parar numa esquina
e comprava uma ou duas dúzias de castanhas para a sobremesa. Com tinto.
Frequentou os melhores
restaurantes do mundo. Saboreou os pratos mais diversos. Evitava ementas
sofisticadas. Gostava, sobretudo, de pratos tradicionais: uma sopa de legumes,
a abrir; carne à jardineira; uma boa posta de pescada cosida; uma omelete
cremosa, com salsa picada. Pastéis de bacalhau. Pataniscas com arroz de feijão.
Comida caseira portuguesa. E gostava de bons vinhos. Comia e bebia com
moderação. Apreciava queijos. Olhava para a tábua com varias marcas como um
filatelista percorria as folhas de um álbum. Jean Daniel, num jantar de família,
ao experimentar vários queijos não se conteve perante um Serpa: «Ça c’ est
le fromage». Um sorriso, de orelha a orelha, traduziu o contentamento de
Mário Soares ao verificar que os amigos, se sentiam bem recebidos, na sua casa
e à sua mesa.
Deliciava – se, por
exemplo, com pão-de-ló. Oferecia, generosamente. «Desculpe não gosto de
doces!». Com o ar mais sério do mundo dizia: «Comprei por sua causa. Coma ao
menos uma fatia?!». Em face da minha recusa exclamava: «Então como eu. Está
ótimo. Não sabe o que perde». Repetia. E com uma colher de sopa rapava ainda o
doce de ovos que estava dentro do pão-de-ló. Ficava regalado. Como uma criança.
O menino de sua mãe.
Era um apaixonado pelas
viagens. Nos anos
60 conheceu parte da Europa com a mulher e os filhos. De país em pais.
Surpreendendo os contrastes das paisagens. Percorrendo monumentos e museus.
Visitou o Brasil, após a fundação do Partido Socialista, para falar com
exilados políticos, desde militares da Rotunda e seareiros que participaram na
revolta do 7 de Fevereiro, como Sarmento Pimentel e Jaime de Morais, até Casais
Monteiro, Vitor da Cunha Rego e Manuel Pedroso Marques.
Voltou ao Brasil em viagens
de Estado, recebido com todas as honras. Foi noutras ocasiões fazer
conferências e tomar parte em colóquios. Tinha relações pessoais com Jorge
Amado, Leonel Brisola, Darcy Ribeiro, Antonio Cândido, Celso Furtado, Cândido
Mendes de Almeida, Antonio Houaiss, José Aparecido de Oliveira, entre muitas outras personalidades.
Era agora o que não
queria ser. Das últimas
vezes que esteve no Rio convidaram – no para uma jantar, com políticos e
intelectuais. Ali se encontrou com Roberto Marinho, o diretor e proprietário do
jornal O
Globo, da Televisão
O Globo, da rádio CBN, do Globonews, do maior império da
comunicação social não só do Brasil, mas também da América Latina. Marinho com
noventa e muitos anos que
pareciam robustos fazia confusões tremendas. Ao cumprimenta – lo, Soares logo
ficou intrigado quando Marinho o interpelou: «Sabe alguma coisa daquele
político português, muito simpático, parece – me que se chama Soares e que foi
ou ainda é Presidente da Republica? Ele está bem? Se estiver com ele apresente
– lhe os meus cumprimentos...» Com o melhor dos sorrisos
disse: «Está bem. Muito bem... Darei. Darei...» Ao contar- me o que se passara
com Roberto Marinho disse – me: «Estou a avançar para os 80. Espero que isto
não me aconteça. Seria um horror». Entre centenas de outras estórias, de um
convívio de muitos anos, recordo – me deste episódio que o estarreceu. E agora
nos choca. Profundamente. Basta evocar imagens da televisão, nas últimas
aparições públicas. Deixou de ser quem era e do que sempre quiz ser. Já estava
ausente de tudo e ausente de si próprio.
*Jornalista, antigo
aluno do Colégio Moderno e de Mário Soares
Do Expresso - edição online de 7 de Janeiro dem2017
Do Expresso - edição online de 7 de Janeiro dem2017
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