segunda-feira, 9 de janeiro de 2017





Camara Municipal de Lisboa
9 de Dezembro de 2015












Soares, tal e qual
António Valdemar*
Era um animal político. Mal acordava, Mário Soares queria saber tudo o que acontecera. Mergulhava na leitura dos jornais e revistas. Portugueses. Franceses. Espanhóis. Entretanto, seguiam – se os telefonema. Organizava mentalmente essa informação para enfrentar mais outro dia.
O perfil do homem público não se diferenciava muito do homem no convívio íntimo. Nos afetos calorosos, nas aversões ferozes. Mudou, evidentemente, de opinião sem alterar princípios fundamentais. Há situações que, de momento, não vale a pena enumerar. Todavia, era espontâneo nas simpatias e antipatias. As reconciliações possíveis não erradicaram os motivos de cisão, de incompatibilidade, de afastamento. De corte de relações políticas. De relações pessoais. Ou ambas as coisas.
Não se adaptou à internet. O computador colocado na secretaria, do seu gabinete na Fundação, era apenas um elemento decorativo. Até ao fim, tudo o que leu tinha de ser em papel. Escrevia, com rapidez e fluência, na sua letra miúda. Cada vez mais miúda. Mas, em certas ocasiões, emendava muito. As secretárias, durante décadas, a Osita e a Maria José, habituaram – se a decifrar os manuscritos labirínticos, os «textos aracnídeos» conforme exclamei ao ver uma folha A4 repleta correções, de acrescentamentos, de cortes, de repuxos.
Ao falar – lhe nisso respondeu – me: «Procuro, apenas, ser claro». Insisti: «O seu mestre Prof. Francisco Vieira de Almeida costumava advertir: «O simples não é o fácil». Soares olhou – me de alto a baixo e pediu para repetir. E acrescentou: «Eu que o diga...»
Era um homem de cultura. Apesar de nunca ter sido escritor na verdadeira aceção da palavra, frequentou tertúlias de Lisboa e de Paris e sentia – se em pé de igualdade ao lado dos outros intelectuais. Procurava estar ao corrente das novidades. Comprava tudo o que lhe interessava e alguns livros que, não fazendo parte das suas curiosidades habituais, já constituíam uma referência.
Além dos milhares de livros que tinha em casa, e nas casas de Nafarros e do Algarve, instalou no 4º andar do seu prédio, uma «nova biblioteca». Perante aquele universo bibliográfico, devidamente, sistematizado por temas e autores, confirmei o prazer, mais do que isso, a volúpia de ter edições raras. Encadernações preciosas. Primeiras edições, de livros com dedicatórias dos autores e anotações dos possuidores.
Não esqueço o deslumbramento que manifestou ao visitar a biblioteca de Pina Martins, de folhear primeiras edições de Erasmo e Damião de Gois. «Estou esmagado. É demais... » Nesse dia, ao jantar comigo e com o José Manuel dos Santos -  seu colaborador direto, durante décadas e amigo muito próximo - embora houvesse matéria política escaldante, continuava dominado pela emoção que lhe causara a coleção de Pina Martins. E, de vez em quando, repetia: «Estou esmagado... Estive para cheirar o papel mas o Pina deve usar inseticidas».
Mário Soares toda a vida também frequentou livrarias e alfarrabistas. Mesmo quando era Primeiro- Ministro, Presidente da Republica, deputado do Parlamento Europeu. Incluiu entre os seus amigos poetas e escritores. Uns ainda da geração do pai, como Jaime Cortesão e Aquilino;  da geração seguinte Rodrigues Migueis e Miguel Torga; outros da sua geração como Carlos de Oliveira, Cardoso Pires, Sophia, Natália Correia, Mario Cesariny ou Luís Pacheco. Outros ainda das gerações mais recentes.
O mesmo aconteceu com artistas plásticos. Admirava Columbano mas o seu apreço e convívio estenderam – se, por exemplo, a Júlio Pomar, a Vieira da Silva, a Jorge Martins. Escapava – lhe a música. Perguntava – me um dia: «Consegue escrever com música?». «Sempre que estou em casa escrevo melhor com música». «Mas que música? – insistiu. «Com os clássicos. Quase sempre os mesmos». «Compreendo perfeitamente...»
De todos os escritores portugueses o que mais admirava era Eça de Queiroz. Outra das suas admirações profundas era Teixeira Gomes. Várias vezes, na sua casa do Vau, partilhamos a leitura de páginas antológicas do Agosto Azul e de pequenos grandes textos acerca das metamorfoses da luz e da cor, das praias e do mar do Algarve, das pedras com memória e das terras com aromas.
Era um homem de coragem. Política e pessoal. Deu provas da sua determinação na resistência ao salazarismo, nas prisões que suportou. No verão quente de 75, ao insurgir – se contra outros totalitarismos. Em campanhas eleitorais, ao ser agredido na Marinha Grande. Ao assistir, no encerramento de um Congresso da Internacional Socialista, da qual era vice – presidente, ao atentado a Sartawi, observador da OLP e abatido por um membro de um grupo radical, do Abu Nidal, no Hotel de Montechoro.
Estava preparado para as situações mais diversas. Trágicas, cómicas, insólitas. Em 1990, como Presidente da Republica entregou o Premio de Poesia a Natália Correia e, ao mesmo tempo, aproveitou a oportunidade para a distinguir com a Ordem da Liberdade. Natália Correia ouvia o discurso com o seu ar desafiador.
Enalteceu, de início, em duas frases os méritos literários de Natália e os seus contributos para a Democracia, antes e depois do 25 de Abril. A seguir Mario Soares, numa breve nota pessoal, quando salientava, apenas e tão só, que Natália Correia fora «uma das mulheres mais belas da Lisboa dos anos 40 e 50» ouviu – se, em toda a sala, sem necessidade de microfone, a cólera vulcânica e impetuosa de Natália; «Lá está ele a falar do meu corpo. Olhou sempre para mim como uma fêmea. Nunca contemplou o meu espírito. Nem mesmo aqui... »
Era de mais. Excedera os limites aceitáveis. Ultrapassara broncas sucessivas que marcaram a sua presença na Presidência Aberta nos Açores. A cerimónia começava a perder a dignidade institucional. Mário Soares decidiu abreviar o discurso. Horas depois, num jantar reservado, riu. Riu imenso. Rimos todos com ele. A amizade manteve – se na íntegra. Continuou a prestar a Natália todas as homenagens. Em vida, por ocasião da morte e depois da morte.
Era um apreciador da boa mesa. A mulher é que tratava dos assuntos domésticos. Tal como acontecera com a mãe. Mas havia pequenas coisas que lhe davam satisfação. Ir comprar doces e alguns queijos. No tempo das castanhas, de regresso a casa, mandava o motorista parar numa esquina e comprava uma ou duas dúzias de castanhas para a sobremesa. Com tinto.
Frequentou os melhores restaurantes do mundo. Saboreou os pratos mais diversos. Evitava ementas sofisticadas. Gostava, sobretudo, de pratos tradicionais: uma sopa de legumes, a abrir; carne à jardineira; uma boa posta de pescada cosida; uma omelete cremosa, com salsa picada. Pastéis de bacalhau. Pataniscas com arroz de feijão. Comida caseira portuguesa. E gostava de bons vinhos. Comia e bebia com moderação. Apreciava queijos. Olhava para a tábua com varias marcas como um filatelista percorria as folhas de um álbum. Jean Daniel, num jantar de família, ao experimentar vários queijos não se conteve perante um Serpa: «Ça c’ est le fromage». Um sorriso, de orelha a orelha, traduziu o contentamento de Mário Soares ao verificar que os amigos, se sentiam bem recebidos, na sua casa e à sua mesa.
Deliciava – se, por exemplo, com pão-de-ló. Oferecia, generosamente. «Desculpe não gosto de doces!». Com o ar mais sério do mundo dizia: «Comprei por sua causa. Coma ao menos uma fatia?!». Em face da minha recusa exclamava: «Então como eu. Está ótimo. Não sabe o que perde». Repetia. E com uma colher de sopa rapava ainda o doce de ovos que estava dentro do pão-de-ló. Ficava regalado. Como uma criança. O menino de sua mãe.
Era um apaixonado pelas viagens. Nos anos 60 conheceu parte da Europa com a mulher e os filhos. De país em pais. Surpreendendo os contrastes das paisagens. Percorrendo monumentos e museus. Visitou o Brasil, após a fundação do Partido Socialista, para falar com exilados políticos, desde militares da Rotunda e seareiros que participaram na revolta do 7 de Fevereiro, como Sarmento Pimentel e Jaime de Morais, até Casais Monteiro, Vitor da Cunha Rego e Manuel Pedroso Marques.
Voltou ao Brasil em viagens de Estado, recebido com todas as honras. Foi noutras ocasiões fazer conferências e tomar parte em colóquios. Tinha relações pessoais com Jorge Amado, Leonel Brisola, Darcy Ribeiro, Antonio Cândido, Celso Furtado, Cândido Mendes de Almeida, Antonio Houaiss, José Aparecido de Oliveira, entre muitas outras personalidades.
Era agora o que não queria ser. Das últimas vezes que esteve no Rio convidaram – no para uma jantar, com políticos e intelectuais. Ali se encontrou com Roberto Marinho, o diretor e proprietário do jornal O Globo, da Televisão O Globo, da rádio CBN, do Globonews, do maior império da comunicação social não só do Brasil, mas também da América Latina. Marinho com noventa e muitos anos que pareciam robustos fazia confusões tremendas. Ao cumprimenta – lo, Soares logo ficou intrigado quando Marinho o interpelou: «Sabe alguma coisa daquele político português, muito simpático, parece – me que se chama Soares e que foi ou ainda é Presidente da Republica? Ele está bem? Se estiver com ele apresente – lhe os meus cumprimentos...» Com o melhor dos sorrisos disse: «Está bem. Muito bem... Darei. Darei...» Ao contar- me o que se passara com Roberto Marinho disse – me: «Estou a avançar para os 80. Espero que isto não me aconteça. Seria um horror». Entre centenas de outras estórias, de um convívio de muitos anos, recordo – me deste episódio que o estarreceu. E agora nos choca. Profundamente. Basta evocar imagens da televisão, nas últimas aparições públicas. Deixou de ser quem era e do que sempre quiz ser. Já estava ausente de tudo e ausente de si próprio.
*Jornalista, antigo aluno do Colégio Moderno e de Mário Soares
Do Expresso  - edição online de 7 de Janeiro dem2017


 

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