sábado, 3 de setembro de 2016









Lápide evocando a viagem de António José de Almeida
 ao Brasil na qualidade de Presidente da República
colocada no Páteo da casa onde nasceu

 

Duas “Repúblicas” portuguesas no Brasil em 1922: António José de Almeida e António Ferro

Luís Reis Torgal
 
Duas concepções republicanas e um ponto de ligação.
 
ANTÓNIO JOSÉ DE ALMEIDA (1866-1929) E ANTÓNIO FERRO (1895-1956) são, por certo, duas figuras bem distintas, se bem que ambas fossem de temperamento arrebatado e sentimental e se tivessem encontrado por vezes, quase fortuitamente, mas de forma ainda assim significativa.
O primeiro, mais velho quase 30 anos, de origem rural, ainda que cedo tenha chegado à cidade, à universitária Coimbra, e, depois, a Lisboa, onde tudo se joga politicamente, neste caso após uma passagem de cerca de sete anos por África como médico, na mais rica colónia portuguesa de então, S. Tomé e Príncipe, e a seguir a uma viagem cultural pela Europa além-pirenaica, onde passou por vezes a ir, para curas termais. O segundo, lisboeta, originário de uma pequena burguesia, que correu mundo como jornalista, e não deixou de ter estado também, durante um breve período, em África, em 1918, como militar miliciano, ajudante de campo do governador-geral de Angola, comandante Filomeno da Câmara, que o veio a nomear secretário-geral da colónia.
António José foi médico de formação e de profissão, pelo menos até à implantação da República, ao passo que Ferro não se chegou a formar em direito em Lisboa, na Universidade que, como ministro do Interior, o primeiro criara. Ambos foram jornalistas e interessados pelo fenómeno artístico. Mas o primeiro foi fundamentalmente jornalista político, desde os 24 anos (era estudante de medicina, para cuja faculdade entrou já com idade avançada), com o célebre artigo “Bragança, o último”, inserido no jornal Ultimatum, de 23 de Março de 1890, artigo que o levou durante três meses à prisão, acusado de insultar o rei, continuando a escrever em jornais republicanos (como Resistência, de Coimbra, ou A Luta ou O Mundo, de Lisboa), tornando-se depois editor da revista Alma Nacional (1910) e, a seguir, fundador e diretor do jornal República, que se tornou o órgão do Partido Evolucionista, que criou, ao passo que a sua ligação à arte se limitou praticamente ao gosto que manifestou e às medidas políticas que tomou, na qualidade de ministro do Interior. Ferro foi em 1915, com apenas 19 anos, editor da revista Orpheu, onde escreveram Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário Sá-Carneiro. Com pouco mais idade, em 1917, foi considerado o primeiro conferencista de cinema, tornou-se diretor, por breve tempo, da revista ilustrada de maior divulgação, a Ilustração Portuguesa, e foi jornalista dos diários O Jornal, O Século e Diário de Notícias, este que o levou a viajar pela Europa, a entrevistar D’Annunzio, os ditadores, entre eles Mussolini e depois Salazar. Mas foi ainda, desde cedo, dramaturgo contestado pela moral tradicional e escritor de prosa modernista. Mais tarde, nos anos 1930, foi coargumentista de um filme de propaganda, A Revolução de Maio, e, nos anos quarenta, foi fundador da revista oficial salazarista Panorama.
Politicamente, António José de Almeida foi, desde muito novo, um destemido político republicano, orador dos mais ouvidos e respeitados, em comícios ou no parlamento, para que foi eleito deputado do PRP, em 1906/07, e foi deputado e ministro da República (ministro do Interior, no Governo Provisório, em 1910/11, e presidente do ministério no governo da “União Sagrada”, em 1916/17) e, depois, presidente da República, em 1919-23, o único a cumprir um mandato completo, graças ao seu feitio consensual e nacionalista, defensor desde o início da “política de atração”, ou seja, da conciliação de todas as sensibilidades em volta da República, embora tivesse sido um adversário aberto do radicalismo democrático de Afonso Costa, só se unindo a ele em momentos de crise nacional, como sucedeu durante a guerra, ou quando triunfou em Portugal a ditadura e o presidencialismo autoritário de Sidónio Pais (1917/18). António Ferro, filho de pai republicano, confessou-se sempre como republicano de direita e, mais do que isso, atraído pelas ditaduras, nomeadamente pelo fascismo italiano, apesar de este se ter enquadrado pragmaticamente, contra a sensibilidade de Mussolini, num regime monárquico. Assim, aderiu de imediato ao salazarismo e ao seu processo de formação do Estado Novo, tendo sido nomeado, logo em 1933, diretor do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), depois no fim da guerra (1944) chamado Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), criando assim uma notável ação de propaganda política. Foi no contexto da guerra, altura em que o Estado Novo português se começou a voltar para os aliados, sem abdicar do estatuto de neutralidade, que veio a estabelecer relações com o Estado Novo brasileiro de Getúlio Vargas, com a presença do Brasil na Exposição do Mundo Português das Comemorações Centenárias de 1940 e com a visita ao Brasil de uma “Embaixada Extraordinária”, em Agosto de 1941, altura em que foi assinado o Acordo Cultural Luso-Brasileiro entre o SPN e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), dirigido então por Lourival Fontes. Daqui, por exemplo, surgiu a publicação luso-brasileira Atlântico, cujo primeiro número data de 23 de Maio de 1942 (Paulo, 1994: sobretudo cap. V, p. 165 e segs.). A propósito destas relações culturais e de propaganda, Ferro veio a publicar em 1949 o livro com o significativo título Estados Unidos da Saudade (1949).
Que relação poderão ter afinal estes dois homens tão diferentes? Fixemo-nos numa situação: a morte de António José de Almeida, ocorrida na madrugada de 31 de Outubro de 1929, já em plena Ditadura Militar, com Carmona presidente da República “plebiscitado” e Salazar ministro das Finanças, embora ainda com um republicano como presidente do governo, Artur Ivens Ferraz. A partir de 1930 far-se-á com Domingos Oliveira a transição para o Estado Novo.
António Ferro, como tantos outros jornalistas de variadas tendências, escreveu um artigo de In Memoriam no Diário de Notícias (2 nov. 1929).1 Partidário de Sidónio Pais, interpretando-o, como foi comum, em sua linha mais à direita, “o precursor das ditaduras modernas”, autor do livro Viagem à volta das ditaduras, publicado dois anos antes, em 1927, entrevistador de Mussolini, como antes de Gabriele D’Annunzio (Gabriele d’Annunzio e eu, 1922), recordava nesse emocionante artigo a sua infância, quando vivia no 3o andar do no 237 da Rua da Madalena, no edifício que fora comido por um fogo célebre. Sua memória levava-o aos tempos em que, ainda de bibe, sonhava com a República e passava horas esquecidas na barbearia em frente, de Joaquim Ferreira Pacheco, a ouvir os seus “correligionários” republicanos, entre eles António José de Almeida. Era ainda no tempo da Monarquia e, para a sua imaginação infantil, a República era idealizada, como se “tivesse forma humana, como se fosse uma linda mulher, uma mulher forte, corpulenta, saudável, de barrete frígio, uma linda mulher que a todos amava e a todos se negava…”. E então pensava, nos seus sonhos de menino, que António José de Almeida era “o noivo ideal da República, da República popular, iconográfica, dessa república de oleogravura, de cores berrantes, da república de cores puras, da república verde e encarnada”. Atreveu-se, por isso, o pequeno António, a escrever um pequeno jornal, a que chamou justamente República e que existiu antes do jornal com o mesmo nome de António José de Almeida, a quem pediu um artigo num momento de coragem, ao que ele acedeu. Conta António Ferro:
E com o meu lápis de colegial, numa folha de papel que eu lhe estendi, timidamente, António José de Almeida, futuro director da “República”, escreveu um artigo de fundo (um grande período chegava para encher uma coluna…) para a minha “Republicazinha”, para a minha Andorra… Foi esse, certamente, um dos dias mais felizes da minha infância…
Quando o seu pai o levava aos “comícios domingueiros” — “verdadeiras festas para mim, estes comícios palpitantes, teatrais, feiras de palavras, fogo de vista que me deslumbrava” — ouvia extasiado a voz de António José de Almeida:
Lembro-me de tudo, como se fosse hoje: um grande descampado, a tribuna tosca de madeira, os oradores debruçados sobre o povo, magnetizando-o… Mas que me importavam os oradores? Interessava-me, apenas, um orador, o orador: António José de Almeida. Era sempre o último a falar, para que a multidão não se fosse embora, para que não dispersasse, para que resistisse ao sol e à chuva… António José de Almeida começava a falar e tudo esquecia. O sol não queimava e a chuva não molhava. A sua voz opiava a multidão. A sua república — essa república que lhe subia do coração aos lábios — não era um regime, não era um sistema novo: era um país maravilhoso, um país de “conto de fadas”, onde não havia injustiças nem violências, onde todos eram bons, onde tinham o coração de António José de Almeida, o país da Liberdade, da Igualdade, da Fraternidade, um país ideal, um país que não pode existir… E o povo ficava a ouvi-lo, embalado, e o povo acreditava. Estranho encantamento, estranha sugestão… A República entrou na alma do povo — é preciso dizê-lo — pela voz de António José de Almeida… A ele se deve o fetichismo da República, a ele se deve a música da palavra…
Aquele que será o intelectual da Propaganda salazarista, que considerava a Palavra um valor estético, voltou a encontrar (segundo contava) António José de Almeida, já como presidente da República. E, então, como defensor da direita republicana, recordou com ele, em clima de tolerância, o seu “passado republicano” da infância. Eram as memórias que queria invocar nessa hora triste da morte de seu “herói”. Por isso, como dizia no início do artigo: “A morte de António José de Almeida é uma página rasgada da minha vida, uma das mais lindas páginas da minha infância…”. E, a finalizar a crónica, concluía:
Eu devia estas palavras, este depoimento, à memória do homem bom, do homem sincero, com quem não estive de acordo, algumas vezes, mas cuja grande alma encheu de sonho a minha infância. Houve uma hora em que o ideal republicano se confundiu, singularmente, com a figura deste grande tribuno, deste último romântico. E há uma verdade que é preciso dizer, nesta hora, a verdade com que fecho esta crónica, o laço com que ato o meu ramo de flores: foi António José de Almeida, acima de todos, quem plantou e regou, no coração do povo português, a palavra “República”…
Talvez assim se explique, em parte, a permissão da difusão da memória de António José de Almeida no próprio tempo da Ditadura Militar (ou “Nacional”, como depois se divulgou) e no Estado Novo. Os funerais do antigo presidente foram “funerais nacionais”, a que assistiram Gomes da Costa, Carmona, Salazar…; nessa mesma altura formou-se uma comissão para erguer uma estátua a António José de Almeida em Lisboa; deram-se a ruas e a praças o seu nome; permitiu-se, no próprio ano do plebiscito da Constituição do Estado Novo, 1933, a formação de Centros Republicanos Dr. António José de Almeida (assim sucedeu em Coimbra);2 e a 31 de Outubro de 1937, aniversário da morte do velho republicano, com a presença dos representantes do Estado, foi inaugurada a estátua na Lisboa moderna, das “avenidas novas”, traçadas pelo engenheiro Duarte Pacheco e pelos seus engenheiros e arquitetos. O regime de Salazar legitimava, assim, o monumento daquele que tinha estado na primeira linha da revolução republicana de 1910. Confirmando esta imagem, mais tarde, em 1944, depois da morte por acidente de viação do ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco, num filme oficial do cineasta do regime, António Lopes Ribeiro, A vida e a morte de Duarte Pacheco, entre as obras referidas como tendo sido realizadas durante esse ministério, lá aparece, em primeiro lugar, a estátua erigida a António José de Almeida.3
Afinal o Estado Novo, mesmo em período crítico da guerra civil de Espanha e do apogeu do fascismo, que Salazar dizia admirar, procurava fazer ponte com os republicanos nacionalistas. A Constituição de 1933 considerava, de resto, que Portugal era uma “República unitária e corporativa” (artigo 5o) e continuava a celebrar como feriados nacionais o “5 de Outubro”, dia da proclamação da República, e mesmo o “31 de Janeiro”, data da primeira tentativa de revolução republicana, em 1891, da qual, em Coimbra, António José havia participado. Em 1951, ano da morte de Carmona, o “presidente do Estado Novo”, e ano do decisivo III Congresso da União Nacional, o “partido único” do Estado Novo, mesmo um monárquico de raiz, como era Marcello Caetano, não deixou de manifestar a vantagem em não discutir então o regime, dado que, no seu entendimento, o Estado Novo era em si mesmo um “sistema político”, para além dos regimes.4 A procura de pontos de contacto com os velhos e “puros” republicanos era afinal feita pela via do “nacionalismo”, a que António José de Almeida sempre fora sensível — como já o afirmara Fernando Pessoa,5 ainda no início da República — e que se manifestara ainda de forma mais acesa no fim da sua vida. Assim, aderiu à Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira, movimento unitário nacionalista formado em 1918, a que se ligaram também, curiosamente, Salazar e o padre Manuel Gonçalves Cerejeira e até alguns fascistas de primeira água (Leal, 1999). Foi em verdadeiro espírito nacionalista que recebeu, a 7 de Abril de 1921, aniversário da batalha de La Lys, os dois soldados desconhecidos que foram a sepultar no mosteiro da Batalha, símbolo da independência nacional, e que acompanhou ao longo do seu mandato presidencial a inauguração de vários monumentos aos Mortos da Grande Guerra (Sousa, 2008); que resistiu a golpes sanguinários que se manifestaram durante a República, como se verificou em Outubro de 1921; que apoiou entusiasticamente a viagem aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral ao Brasil e que, ele próprio, como presidente da República, realizou a primeira viagem de um governante português ao Brasil, por altura das festas do primeiro centenário da sua independência; que consolidou o reatar das relações do Estado com a Igreja, impondo, em Janeiro de 1923, o barrete cardinalício ao núncio apostólico Achille Locatelli.
António José de Almeida foi, todavia, e sempre voltará a ser, um marco memorial para os republicanos democratas, adeptos do multipartidarismo e das eleições livres, sobretudo quando a oposição ao sistema de Salazar se tornou mais viva, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, como o fora já para Joaquim de Carvalho e para tantos outros, desde 1933.6 Mas, durante alguns anos, tentou-se que esse republicanismo (por vezes manifestado por António José de forma radical) fosse apagado, em nome do ideal unitário, da “União Nacional”, muito cara à ideologia corporativa salazarista. Mas esqueçamos, por agora, a sequência da história e da memória e concentremo-nos no ano de 1922.
A viagem de António José de Almeida ao Brasil ou a República de 1910 no Rio de Janeiro
António José de Almeida pertencia a uma família com vários parentes emigrados na África e no Brasil.
Por isso não deixa de ser interessante e sintomático o facto de, em 9 de Julho de 1919, na reunião extraordinária do Congresso da República, ter sido ele, entre os deputados, um dos parlamentares a proferir o discurso ao presidente eleito do Brasil, Epitácio Pessoa. Curiosamente, o último presidente do Brasil eleito (antes de tomar posse) a passar por Portugal havia sido o marechal Hermes da Fonseca, que, a bordo do navio São Paulo, ainda recebeu José Relvas que, no próprio dia 5 de Outubro, lhe comunicou que havia sido proclamada a República.
Epitácio Pessoa, jurista, formado na Faculdade de Direito do Recife, depois de ter liderado a delegação brasileira à Conferência de Paz de Versalhes, que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, passou então por Lisboa, após ter sido eleito presidente na sua ausência. António José de Almeida dirigiu-lhe uma oração bem característica da oratória de circunstância, usual em acontecimentos deste tipo, ou seja, uma peça de carácter acentuadamente histórico, que procurou marcar bem as ligações entre Portugal e o Brasil.7 Em suma, o seu discurso revela esta ideia: o Brasil foi uma espécie de discípulo de Portugal e Portugal uma espécie de discípulo do Brasil; umas vezes, seguiu um à frente na rota da Civilização e, em certas alturas, foi o outro que tomou a primazia.
Neste contexto, de ligação profunda entre os dois países, constata que, se não fora possível, e muito menos o era nessa altura, criar uma federação política Portugal-Brasil, como defendera em 1825 Silvestre Pinheiro Ferreira, existia — segundo as palavras de António José — uma “federação sentimental”:
O Brasil, colónia de Portugal, foi, naturalmente, o reflexo da vida portuguesa, desenvolvendo-se embora numa região de clima diverso, em que a natureza desdobrou um cenário diferente. O génio brasileiro, que começa desde logo a desferir o seu voo prometedor, é uma espécie de transplantação do génio português, em que certas qualidades se acentuam e outras se esmaecem. O Brasil, então, é verdadeiramente o filho de Portugal, herdeiro opulento das suas qualidades magníficas, sobre ele pesando também um pouco dos defeitos e dos vícios do seu próximo antepassado (Almeida, 1933: v. III, p. 260).
A glória de Portugal nos séculos das descobertas e da expansão — “éramos um punhado de homens, menos de três milhões de habitantes, e dominámos o mundo, sendo, em certo sentido, os senhores do Universo” — prolongou-se depois na glória do Brasil (Almeida, 1933: v. III, p. 261-263). E, mais tarde, a independência e a história do Brasil-Reino foi a síntese da história de Portugal, com os seus sucessos e os seus defeitos: “O Brasil proclama-se reino e, na sequência do fatalismo histórico que a hereditariedade lhe determina, ele, em harmonia com a época diversa e com o diferente teatro de acção, reproduz, em síntese, a história do seu progenitor” (Almeida, 1933: v. III, p. 260-261).
Mitificando a realidade republicana — como sempre fora seu hábito —, António José apresenta, a seguir, o Brasil como o inspirador de Portugal. À revolução republicana brasileira de 1889 seguiu-se em Portugal o 31 de Janeiro de 1891 e, anos mais tarde, nossa revolução vitoriosa de 5 de Outubro de 1910. De onde conclui: “O Brasil na verdade foi, durante cerca de meio século, uma espécie do nosso preceptor político, rasgando primeiro que nós os horizontes da aspiração comum e estimulando quase sempre as nossas tendências para a revolta contra a prepotência e a injustiça” (Almeida, 1933: v. III, p. 269).
Por fim, surgia, também inevitavelmente, a mitificação da nossa entrada na guerra. E, dentro dessa lógica, considerava que em 1914 passámos outra vez para a frente, tendo apoiado, primeiro que o Brasil, os “aliados”. Assim, salvámos as nossas colónias e colaborámos na luta da Civilização contra os “bárbaros”: “Sim! Nós fomos para a guerra com a cauta determinação de salvar o nosso futuro, mas também com o fim altruísta e, pleiteando pelo direito dos povos e pela civilização da humanidade, honrar a nossa História” (Almeida, 1933: v. III, p. 270).
Terminou, saudando o dr. Epitácio Pessoa, no sítio que considerava o lugar próprio, que era aquele em que — segundo a sua imagem — se lutava pela “liberdade republicana”, o Congresso, que era simultaneamente uma “arena” e um “templo”. E o combatente da tribuna regressa aos seus tempos gloriosos do discurso enfático e triunfal, às palavras sonantes que o lançaram na ribalta política:
Nunca, nos mais árduos combates, naqueles em que tive de desafrontar-me, na tribuna desta Câmara, com os mais fortes adversários; nunca, nos mais comovidos momentos em que tive de render alguma grande homenagem ou prestar algum grande culto, me vi tão receoso de mim mesmo, tão cheio de apreensões e incertezas. Nunca, mais do que hoje, desejaria que a minha palavra fosse a luz e o fogo dum grande esplendor que se visse do outro lado do Atlântico, e até lá levasse, através das vibrações do espaço, o calor e o afago da velha alma lusitana, que se revê no Povo que continua a sua vida e a sua história e que orgulhosamente está desdobrando, em todos os campos da atividade humana, as espirais luminosas do seu génio.
Mas, assim como sou, modesto e simples, do alto desta tribuna envio à República do Brasil a saudação calorosa do povo republicano de Portugal, que, constante defensor da Liberdade, ainda há dias, foi, num gesto de bravura gloriosa, à encosta de Monsanto, não vencer um inimigo, há muito vencido, mas de vez enterrar o cadáver ainda insepulto da monarquia (Almeida, 1933: v. III, p. 275-276).
Começa, pois, assim, a relação de António José de Almeida com o Brasil. Eleito presidente da República nesse ano de 1919, vai agora participar, em 1921, na visita oficial ao país irmão, não sem antes apoiar, como se disse, a viagem aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, onde chegaram, à baía de Guanabara, no dia 17 de Junho, depois de variadas peripécias, que os levaram a mudar de avião por duas vezes. A viagem de Coutinho e de Cabral fora — no dizer expressivo da Ilustração Portuguesa (2a série, no 872) — “O beijo através do Atlântico”. Poderíamos dizer, agora também em tom assumidamente retórico, que a viagem de António José ia ser “o abraço através da palavra”.
Comecemos por afirmar que a viagem de António José de Almeida teve um grande impacto nos meios nacionais, dado que o Brasil sempre apareceu no imaginário português como o “filho que se emancipou”, mas que “se soube emancipar”, mantendo unido um imenso espaço territorial e possuindo uma riqueza notável para explorar. Daí que o movimento migratório para o Brasil, sobretudo do norte do país, se fizesse por ciclos constantes durante muitos anos, nomeadamente no final do século XIX e nos primeiros anos do século XX. Em 1895 atinge o numero de 44.746 emigrantes, em 1910 (ano de implantação da República) baixa para 31.280, e em 1912 atinge o número de 74.860 (Arroteia, 1983). A visita de um homem de Estado ao Brasil não se reduzia, pois, a uma mera situação ao nível diplomático, de “negócios estrangeiros”, mas implicava também o reencontro com o tal “filho emancipado e de sucesso” e o abraço às nossas populações portuguesas que se instalaram no Brasil, com as suas empresas e nos seus postos de trabalho, mais ou menos modestos ou de sucesso, e também com os seus clubes de lazer, as suas associações regionais, as suas instituições cívicas, as suas lojas maçónicas, os seus espaços de cultura e de ensino ou de assistência, de que se destacavam o Gabinete Português de Leitura, com várias instalações em território brasileiro, o Liceu Português ou a Beneficência Portuguesa. Além disso, os “torna-viagem” davam geralmente a imagem de cidadãos bem-sucedidos na vida, que construíam as suas casas ostensivamente luxuosas e nem sempre de “bom gosto” (as “casas dos brasileiros”), que investiam nos negócios de Portugal e até eram capazes de criar escolas e “fundações” de solidariedade ou de instrução, como fora o caso das escolas “Conde Ferreira”.
Assim, se a implantação da República no Brasil (15 de Novembro de 1889) suscitou vivo interesse entre os republicanos portugueses, considerando estes que, desta vez, o país “filho” havia ultrapassado a “Pátria-Mãe”, originando, por seu lado, certa atração, até, em certos meios, pela lógica presidencialista da Constituição Brasileira — que, todavia, foi suplantada por uma sensibilidade considerada mais radicalmente republicana, de tipo parlamentar —, desde cedo, mesmo antes da implantação da República em Portugal, surgiu no seio dos seus militantes a ideia de que era necessário enviar emissários ao Brasil. Defendera-a o próprio António José de Almeida, em tempo de militância, durante a Monarquia,8 e Bernardino Machado, que nascera no Rio de Janeiro, foi o primeiro diplomata a instalar-se junto do Itamarati.
O centenário da independência do Brasil, em 7 de Setembro de 1922, e a expedição aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram decisivos para que se verificasse o convite do presidente Epitácio Pessoa ao presidente António José de Almeida.
Em 11 de Agosto de 1922, o Congresso da República Portuguesa votou a lei no 1.309 que, de acordo com o artigo 44o da Constituição, autorizava a deslocação do presidente. Iniciava-se, assim, no plano formal, a triunfal viagem, mas também um tanto atribulada, que será objeto de páginas e páginas por parte de revistas e jornais portugueses e brasileiros e de uma obra de referência de um jornalista de O Mundo, que acompanhou a comitiva, Luís Derouet, que compôs a colectânea, profusamente documentada e ilustrada, significativamente intitulada Duas pátrias (1923). Mas não foi apenas este tipo de obra que se publicou. Por exemplo, possuímos na nossa biblioteca particular, devidamente encadernada e com o título ufanista, a letras de ouro, Portugal — Brasil. A hora gloriosa da pátria (1922), o álbum que a Colónia Portuguesa de São Paulo ofereceu a João de Barros, que também acompanhou o presidente. O carácter simbólico que teve esta viagem já mereceu por isso de historiadores, como António Pedro Vicente (2001:161-176), e alunos de mestrado, como Rosália da Cunha Marques (1998), algum interesse especial, no último caso tendo como fonte principal a documentação existente no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
A comitiva seria formada por dois oficiais generais, Bernardo de Faria, do Exército, e Augusto Neuparth, da Armada, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, que, entre outros cargos que desempenhara (foi ministro de várias pastas), era professor da Faculdade de Direito de Lisboa, António Luís Gomes (antigo ministro de Portugal no Brasil e então reitor da Universidade de Coimbra), Francisco António Correia (diretor do Instituto Superior do Comércio de Lisboa), o pedagogo João de Barros e o escritor e médico Jaime Cortesão. Acompanhando pessoalmente o presidente seguiam o secretário-geral da Presidência da República Jaime Anahori Atias, que era oficial de Marinha, e o chefe do protocolo, o diplomata Luís Barreto da Cruz. Juntaram-se também os representantes da imprensa portuguesa: Acúrsio Pereira em nome do Diário de Notícias, Avelino de Almeida de O Século, Luís Derouet de O Mundo e Norberto de Araújo pelo Diário de Lisboa. Embarcou a comitiva no dia 26 de Agosto de 1922. Segundo Rocha Martins (1950:368), apesar do gosto que teria de seguir na viagem, em delegação do ABC, foi Alcântara Carreira, que era conhecedor do Brasil.
A viagem foi precedida e acompanhada por algumas perturbações. O vapor Porto, onde seguiam para o Rio de Janeiro, e que era assim denominado desde 1916, dado que era antes o navio mercante alemão Prinz Henrick, aprisionado à Alemanha durante a guerra e concedido a Portugal pelo Tratado de Versalhes, não estava ainda convenientemente adaptado à sua condição de transporte de passageiros. Para conclusão das obras atrasou-se o início da viagem, que só se verificou no dia 28. Entretanto, no próprio dia 26, houve uma crise do governo democrático presidido por António Maria da Silva, proporcionada pela demissão do ministro das Finanças, Albano Augusto de Portugal Durão. Augusto de Castro, futuro salazarista e que era nessa altura o diretor do Diário de Notícias, haveria de escrever a esse respeito um artigo de forte crítica à nossa desordem administrativa intitulado “Era tempo” (Diário de Notícias, 29 Ago. 1922), no qual, todavia, se elogiava o presidente da República, que iria levar ao outro lado do Atlântico “a alma de Portugal” e dali traria “a alma do Brasil”.
O Porto, que foi comboiado na barra pelos contratorpedeiros Douro e Vouga, começou logo por ter avarias no frigorífico. Por isso e por exigências de abastecimento, teve de aportar em Las Palmas no dia 1 de Setembro, onde António José de Almeida foi homenageado pela colónia portuguesa e pelas autoridades espanholas das Canárias. No dia 3, como se encontrassem a bordo, por coincidência, o General Neuparth que, em 1914, como ministro da Marinha, organizara a coluna que seguira para Angola, o seu comandante, também presente na qualidade de “capitão de bandeira” da expedição, o agora capitão de fragata Alberto Coriolano da Costa, e o próprio estandarte que seguira então para territórios angolanos, foi imposta a este, solenemente, a insígnia da Torre e Espada. No dia 7 de Setembro, data em que a embaixada portuguesa deveria estar já no Brasil, foi realizada uma sessão solene em honra da sua independência, em que tomaram a palavra Jaime Cortesão, João de Barros e em que falou também António José de Almeida. A independência do Brasil era, pois, uma das motivações principais desta viagem e, segundo Rocha Martins (1950: v. II, p. 366), o presidente levou consigo o livro que Martins (1922) havia escrito sobre o tema e que acabara de ser publicado. Dedicou-o o autor “Ao Brasil, onde são auroras diamantinas os épicos poentes de Portugal”. Portanto, vai-se imaginando o sentido épico desta viagem, marcada por pequenos acidentes de percurso e por cerimónias patrióticas e de homenagens a Portugal e ao “país irmão”.
Só no dia 17, com um atraso de cerca de 10 dias e demorando o dobro de uma viagem normal naquele tempo, o navio Porto chegou ao Rio de Janeiro. Mesmo a bordo António José de Almeida foi cumprimentado pelo presidente Epitácio Pessoa, que estava acompanhado dos seus ministros da Marinha e das Relações Exteriores e do ministro de Portugal no Rio, Duarte Leite. Entretanto, o Senado brasileiro votara antes uma proposta em que suspendia durante três dias os seus trabalhos para acompanhar a visita de António José e para que ele fosse cumprimentado por uma comissão de senadores em número igual ao dos estados brasileiros.
Como se sabe, era a primeira vez que um chefe de Estado português visitava o Brasil, pois gorara-se a projetada visita de d. Carlos. E, curiosamente, Almeida foi ocupar, no palácio de Guanabara, exatamente os mesmos aposentos que tinham sido destinados ao rei português e que pouco antes haviam sido ocupados por outro rei, Alberto da Bélgica. Ainda nesse dia recebeu os cumprimentos das missões estrangeiras, das delegações das câmaras legislativas, da magistratura e do alto funcionalismo do Brasil.
No dia 18, recebeu as mensagens especiais dos presidentes das Repúblicas do Uruguai, da Colômbia, de Cuba e do Peru; deu uma recepção aos representantes da colónia portuguesa no Palácio da Embaixada de Portugal; e foi-lhe oferecido um grande banquete pelo presidente da República do Brasil no Palácio do Catete. No dia 20 a colónia portuguesa recebeu solenemente António José no Gabinete Português de Leitura, onde obviamente pronunciou um discurso nacionalista e regionalista, sendo nomeado seu presidente honorário; e foi recebido no Congresso Nacional, que então estava provisoriamente instalado no edifício da Biblioteca Nacional; no dia 21 houve um “chá dançante” na casa oficial do embaixador de Portugal, oferecido a 2 mil convidados; no dia 22 houve uma recepção no Grémio Republicano Português, onde discursaram o seu presidente, José Augusto Prestes, e o reitor da Universidade de Coimbra, doutor António Luís Gomes, e foi recebido na Academia de Medicina. Entretanto, visitou vários estabelecimentos brasileiros e portugueses, deslocando-se nomeadamente ao recinto da Exposição Internacional, na Praça da Independência, na tarde do dia 24 de Setembro, onde se juntou uma enorme multidão que o aclamou. E, nesse mesmo dia, levou a Rui Barbosa as insígnias da Grã-Cruz de São Tiago de Espada. No dia 25 realizou-se o grande baile de despedida no Palácio de Guanabara. No dia 26 visitou a Câmara Portuguesa do Comércio, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Club de Engenharia e a Academia Brasileira de Letras.
Foi, pois, uma embaixada realizada com pompa e circunstância e com uma pitada de festa popular, como desejaria António José de Almeida, com o seu feitio simples e mesmo rural. Pelo menos, para além dos banhos de multidão, houve a participação de uma comissão executiva da colónia portuguesa que reuniu uma verba avultada para fazer face às despesas e até para enviar dinheiro, a fim de ser distribuído em Portugal pelas instituições de caridade. Quanto aos resultados, para além de ter sido uma jornada de acendrado nacionalismo e populismo, que teve o condão de aproximar os dois povos e deixar viva a memória de António José de Almeida no Brasil, que ainda hoje perdura, acabou por não ter grandes consequências ao nível dos três protocolos assinados no Rio de Janeiro, em 26 de Setembro, ou seja, uma convenção luso-brasileira sobre a reciprocidade em matéria de propriedade literária e artística, um tratado que regulamentava a isenção do serviço militar em caso de dupla nacionalidade e uma convenção sobre a proteção ao trabalho dos emigrantes. Só o primeiro caso foi contemplado, através da lei portuguesa no 1.485, de 1 de Novembro de 1923 (Derouet, 1923:146 e segs.; Almeida, 1933: v. IV, p. 259).
Posta de parte — aliás desde a chegada ao Rio do presidente português — a visita a São Paulo, primeiro programada, verificou-se o regresso, que se iniciou no dia 27. Embarcou no navio inglês Arlanza, tendo ainda desembarcado na Bahia, no Recife e na Madeira. Embora na narrativa histórica não é nosso costume seguir uma metodologia retórica, mesmo que de tipo simbólico, quase nos apetece dizer que este final da apoteose nacionalista representa uma pequena quebra do orgulho nacional. Almeida, que começara por ser um ferrenho antianglicista e que se tornara um fiel defensor da Aliança Inglesa, retorna à pátria não no português (apesar de originariamente alemão) Porto, que só dera problemas na sua viagem de ida, mas num barco britânico.
Para além das circunstâncias da viagem, e dos apontamentos “anedóticos” que ela poderia provocar, e, sobretudo, da indiscutível estadia “triunfal” — de acordo com as notícias de todos os jornais — de António José de Almeida no Brasil, importa, sobretudo, retermos algumas das partes dos seus “discursos”, pois, na verdade, foi nesta última etapa da sua vida política que se verificou o que chamámos a sua “apoteose”. E esta é uma das notas mais relevantes para quem — segundo a nossa opinião — fez da palavra a arma fundamental. Quase poderíamos dizer que do “discurso” jornalístico do Ultimatum (1891) e dos elogios fúnebres a José Falcão (1893) e a Rafael Bordalo Pinheiro (1905), passando pelas polémicas catilinárias de rua e pelas não menos polémicas orações parlamentares, até ao discurso ao povo na Praça da Independência do Rio (para escolhermos um exemplo), perpassa toda uma vida de “tribuno popular”, que, todavia, não faz esquecer, de modo algum, a prática política. Esta poderá não ser brilhante no plano estratégico, mas teve pontos significativos durante o governo provisório, quando, apesar de já soarem ventos de combate entre republicanos, ainda havia algum pudor e muito entusiasmo construtivo, e durante a presidência da República, quando pôde vir ao de cimo o seu carácter conciliador, em que tantas vezes se revia.
Iniciemos, pois, essa audição pelo discurso do palácio do Catete, realizado no banquete oferecido pelo presidente do Brasil. Epitácio Pessoa referiu-se, na sua oração de boas-vindas, em particular, ao centenário da independência que se estava a celebrar. Considerou-o então como “uma data da raça”. D. Pedro e o seu grito do Ipiranga havia sido apenas a consequência do trabalho do seu pai, d. João VI, em prol da independência do Brasil. E — numa leitura histórica forçada — afirmava que as Cortes regeneradoras, ao pretenderem manter o Brasil na situação de colónia, tanto provocaram a oposição dos brasileiros, como dos “portugueses liberais, indignados contra a ditadura colectiva dos deputados da regeneração”. Assim, o 7 de Setembro era “uma data luso-brasileira”, não tanto de “dois povos”, mas de “dois ramos do mesmo povo” (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 214-215).
António José de Almeida respondeu, como não podia deixar de ser, com uma lógica idêntica (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 209-213): “A emancipação política da grande pátria que é hoje o Brasil foi um facto espontâneo e normal, consequência de uma evolução inexorável, que nenhuma força seria capaz de impedir” — dizia. O Brasil, “apesar de colónia, foi desde cedo nação”. O Brasil devia a Portugal o facto de ter colonizado a terra e de entregar, “à custa de torrentes de sangue e de torrentes de lágrimas”, o território “intacto”. Mas, Portugal devia ao Brasil independente “a bravura, a inteligência e o amor da raça” com que ele tem mantido a sua terra e a tem feito desenvolver. Assim, foi-se criando “uma civilização própria”, a que se pode chamar “brasilidade” — “força nova, serena e ousada, que está intervindo eficazmente nos destinos do mundo”. Por isso, confirmava que o 7 de Setembro era, na verdade, “uma data luso-brasileira”. E era-o também devido à comunidade portuguesa que existia no Brasil:
Brasil e Portugal são duas pátrias irmãs, cada uma vivendo em sua casa, tendo um passado até há cem anos comum e um futuro, em muitos pontos diverso, mas em tantos outros equivalente.
Os brasileiros sentem-se em Portugal como em sua Pátria.
Os portugueses, em vastos núcleos de trabalhadores, sentem-se no Brasil como em sua própria terra. As mesmas instituições republicanas, embora sob aspecto diferente, governam e dirigem as duas nações, que têm dado provas ambas elas de amar sinceramente a democracia.
Uma língua incomparável, que retine melhor o ouro da linguagem humana e dispõe de um poder plástico sem igual, serve — maravilhoso instrumento de civilização e de solidariedade — os dois povos que se sentem presos nas espiras desse verbo quase divino (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 212).
Foi um discurso de circunstância, mas que será glosado e desenvolvido várias vezes, em formas diferentes e com jorros de palavras, próprias da eloquência que caracterizava a oratória da época e de que António José foi um vivo exemplo. No Congresso Federal, em 20 de Setembro (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 235-248), reviu e prognosticou os momentos altos da sua visita: primeiro, a sua “entrada em terra brasileira” e o “aperto de mão ao ilustre Presidente do Brasil, o Sr. Dr. Epitácio Pessoa”; segundo, a manifestação popular tida ao longo do caminho que o conduziu ao palácio Guanabara, com a qual se identificou, porque ele pertencia também ao povo — “tendo sido um homem que saiu molécula de água insignificante, mas que saiu do rio vermelho do povo, tive a satisfação sem par de ver que nesse rio mergulhava novamente”; terceiro, a troca de palavras com o presidente do Brasil — “um marco na vida dos dois grandes países”; o quinto será a visita ao Supremo Tribunal Federal, tão importante para ele, “o homem legalista e respeitador da lei”; e o quarto e penúltimo era a saudação ao Congresso da República Federal.
E é então que, dirigindo-se às câmaras legislativas, reinventa o argumento do discurso do Catete, numa lógica de louvor a d. Pedro IV que Rocha Martins atribuiu à leitura do seu livro, invocando o próprio testemunho do presidente (Martins, 1950: v. II, p. 366): d. Pedro IV e os brasileiros fizeram um favor a Portugal, pois se não tivessem proclamado a independência, que era um facto natural, no estado de crise em que o país se achava, teríamos perdido o Brasil em favor de outros povos.
Porém, a sua evocação da história teve outras facetas igualmente interessantes, que estavam, aliás, de acordo, não só com o sentido “religioso”, até “cristão” (mas não “católico”), afirmado vivamente no fim da sua vida política, mas também com a sua filosofia positivista, cosmovisão em que se radicavam praticamente todos os velhos republicanos.
“Livre pensador profundamente religioso” (no seu próprio dizer e conforme já havíamos detectado noutros discursos), António José de Almeida refere-se ao Cristo que se havia concebido para levantar no Corcovado com grande veneração histórica e até pessoal: “se Pedro Álvares Cabral, com sua esquadra, veio aqui em nome do amor da Pátria, veio também em nome do amor de Deus”. Por isso lamentava não ver ainda o Cristo no morro sobranceiro ao Rio e imaginava o prazer que teria sentido se ele lá já estivesse:
E eu, se entrasse além, na Baía de Guanabara, saudando de lá o Cristo, símbolo, em grande parte, e até em sua parte principal, da civilização brasileira, não cumpria somente um dever de português, cumpria também um dever de cidadão, porque não tenho a menor dúvida em vos confessar, igualmente, que considero esse Cristo como sendo meu grande antepassado moral. Pois que, tendo conhecido várias religiões que se desenvolveram antes dele, só os seus ditames, os seus conselhos, as suas doutrinas, deram verdadeiro guia à minha inteligência e verdadeiro consolo à minha alma de lutador, de rebelado (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 244).
Num artifício retórico, e dizendo que, ao vir falar em nome dos vivos, mas também em nome dos mortos (dos Gamas, dos Nun’Álvares, dos Pedros Álvares Cabral…), não poderia apenas aceitar a benevolência do auditório — tanto os brasileiros como os portugueses vivos, “porque são bons”, se declararão “satisfeitos” —, mas teria também de ter o acordo daqueles outros, já perecidos, que igualmente representava, só lhe restava um último argumento: seria declarar-se impotente para falar com a força que devia.
[…] tenho uma única maneira de fugir à responsabilidade desse formidável julgamento: é dizer: — “E os Srs. que é que fizeram? Fizeram uma obra maravilhosa e estupenda; por ela passaram sedes e fomes, por ela tiveram os apavorantes naufrágios, por ela, numa palavra, arrostaram perigos infernais e quase incompreensíveis. E que lhes aconteceu? A morte? Foram felizes. Eu fui, na vossa missão, reconheço, fui inferior a ela. Qual é a pena que a mim próprio me imponho? Pior que a vossa, porque é a pena do pesar, é o sentimento de ter vindo a esta terra onde, sendo tudo grande, a benevolência para comigo não podia ser pequena; o não haver sabido corresponder a ela, em nome das vozes sagradas que, do outro lado do Atlântico, deviam ter encontrado melhor intérprete para saudar a este imenso, a este formidável Brasil, dizendo dele aquilo que ele merece que se diga e que, confesso, sou incapaz de dizer!” (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 247).
E assim — desta forma paradoxal — terminou o discurso, entre “não apoiados gerais” e, ao mesmo tempo, “bravos”, “prolongadas salvas de palmas” e “aclamações à República Portuguesa, à República Brasileira”, a si próprio e ao presidente Epitácio Pessoa. Ele mesmo acabou, naturalmente, por gritar: “Viva o Brasil! Viva Portugal!”.
O jornal brasileiro Vanguarda do dia 21 afirmava: “Não foi um discurso. Foi um sermão”. E concluía: “O sermão político de ontem, que pregou aos representantes do povo, encerra tal soma de inesquecíveis lições, que o havemos de considerar, de agora em diante, cidadão brasileiro com os mesmos foros de Rui Barbosa” (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 252). E, nesse mesmo dia 21, o líder dos deputados do Sergipe requeria que fosse incorporada nos Anais da Câmara a ata da reunião de recepção do presidente de Portugal, o que foi aprovado por unanimidade, enquanto, através de um telegrama, um antigo presidente do estado do Maranhão saudava “o preclaro Cidadão” Almeida, “encarnação viva” da pátria dos seus “antepassados” (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 255-256).
Ficou também famoso o discurso pronunciado por António José de Almeida na Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro, em 22 de Setembro (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 261 e segs.). Ali se referiu às suas recordações políticas e às suas memórias de “médico dos pretos” de São Tomé e de “médico dos europeus” que ali iam à procura de fortuna e, muitas vezes, morriam “no meio da mais abominável desgraça”, às suas rememorações, de que dizia ter “tanto orgulho”, de “prático”, de “médico de aldeia”. Foi um discurso sentido que Miguel Couto — o qual o recebera com uma oração inicial e lhe concedera a insígnia de membro honorário da Academia — coroou com estas palavras singulares: “Senhores: depois da palavra sublime do grande orador, nem mais uma palavra”. Mas a sessão terminou, naturalmente, com “palmas prolongadas”…
No Grémio Republicano Português (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 277 e segs.), no mesmo dia 22, usou da maior diplomacia para fazer crer que os portugueses não se deveriam deixar impressionar pelas notícias pessimistas que vinham de Portugal: “não deem ouvidos a esses profetas da desgraça, que enviam mensagens de desânimo para o estrangeiro e para o Brasil”. E, procurando incutir o optimismo nos ouvintes, afirmou, depois de falar das “lutas” e “embates de certa importância na vida da República”:
E se os senhores forem ver na história do mundo o que têm sido essas comoções políticas, em todos os países, hão de verificar que foi em Portugal que essa transformação se fez com menos efusão de sangue e menos atentados ao direito. Por isso é que quando às vezes eu ouço alguns desanimados murmurar: — “Essa não foi a República que eu sonhei” eu respondo: “Pois é essa a República que eu sonhei”. É mesmo melhor do que eu sonhei, uma República tumultuante de vida e apaixonada no culto pelo direito. Eu já sabia que ela não poderia atingir o grau de perfeição sonhado por todos nós e as supremas virtudes, que são por todos nós desejadas, senão depois de passar por duras lutas e penosas provações. Todas as vezes que os povos galgam o degrau de sua maioridade passam por essa crise de crescimento. E agora, neste momento, há um outro elemento perturbador, que é preciso não esquecer. Façam-me o favor de olhar o que se passa por esse mundo fora e digam-me se os factos em Portugal têm carácter excepcional e desanimador!
Bem sei que isso tudo é desagradável e doloroso; que melhor seria que os homens, por combinação unânime e acordo mútuo, tivessem feito uma república tranquila e luminosa como a de Platão; mas essa república só existiu no espírito luminoso de Platão, não é obra humana. Por isso, […], eu posso dizer e afirmar que a nação portuguesa é absolutamente digna da sua república; que a República Portuguesa é absolutamente digna da nação que preside e que os homens que a governam são dos mais honrados e dos mais pobres que há no mundo; posso afirmar que nós entramos em período de ordem e calma em que se respeitam todas as consciências, em que cada um tem direito a suas crenças e que só podemos felicitar Portugal, nossa pátria, por ela ter escolhido a forma de governo que tem (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 281-282).
Mas o discurso mais empolgante e mais populista foi naturalmente aquele que dirigiu a milhares de populares na Praça da Independência, no dia 24, onde foi lançada a primeira pedra de um Monumento aos Povos de Portugal e do Brasil.9 Foi a eles, efetivamente, que se dirigiu. Primeiro, nestes termos arrebatados, ao Povo do Brasil:
Povo meu Amigo, povo meu Irmão! Abro os braços para te acolher; beijo-te na face; abro-te, de par em par, as portas do meu coração, para que venhas dar o calor da tua mocidade eterna à minha idade avançada, embora não decrépita.
Povo imenso, povo enorme, que és tudo na história do Brasil, ouve! És alma geradora desta Pátria; és o povo da Independência que se bateu ao lado de D. Pedro I; és o povo que fez a abolição, arrebatado pela voz incandescente de Castro Alves; és o povo que se bateu em Riachuelo; és o povo que fez o 15 de Novembro, isto é, a República; és o povo que está fazendo a transformação assombrosa desta terra de maravilhas que se chama Brasil — glória dos portugueses que a inventaram, glória dos brasileiros que a cultivam e que a engrandecem! És o povo, tendo tanto a noção das coisas e a sensibilidade dos acontecimentos, que, já antes da Independência, constituías uma Pátria […] (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 285).
E ao povo de Portugal dirigia este discurso não menos entusiástico:
Povo de Portugal, que também estás aqui, eu igualmente te saúdo neste momento, para que mais se faça e se sagre a junção das almas das duas Pátrias.
Povo de Portugal, que tudo tens dado à sua história; que fizeste a autonomia da Pátria, que fizeste a expansão da Pátria; que a ressuscitaste, quando um momento esteve semimorta; que libertaste, quando um instante foi invadida; que fizeste o 5 de Outubro, ara votiva em que se sagrou a luz, destinada pela história a iluminar uma idade nova; que defendeste as fronteiras; que cultivaste os campos e povoaste os mares; povo de Portugal, descendente de Viriato […]; companheiro do Infante de Sagres […]; que entraste na Grande Guerra para defender a liberdade […]; que nasceste nos acampamentos, foste embalado nas naus, e, hoje, mais espiritualizado do que nunca, mostraste aspirar, em doze anos de República, ao culto perfeito da Liberdade; povo de Portugal, eu te saúdo (apud Almeida, 1933: v. IV, p. 285).
Fossem estas ou outras palavras semelhantes — encontrámos versões ligeiramente diferentes em outras publicações (ver, por ex., Portugal—Brasil, 1922:CXXVIII) — as proferidas por António José de Almeida, elas foram significativas da sua emoção perante as cerca de 300 mil pessoas presentes. De resto, no Prefácio que escreveu à obra de Derouet, António José de Almeida corrigiu benevolamente “um jornal de um dos mais florescentes Estados brasileiros” — o qual havia afirmado que o presidente, emocionado, nada conseguira dizer para além de chorar — com estas significativas palavras:
E, todavia, o jornalista que aquelas palavras escreveu, afirmando uma inexatidão, assinalou, precisamente, aquilo a que, embora com esforço, podemos chamar uma verdade. Eu pronunciei então um discurso, que os microfones a par e passo iam levando a vários pontos do Rio de Janeiro e a algumas cidades do Brasil, mas bem no meu íntimo, de facto, eu soluçava de espanto e ternura, perante aquela manifestação assombrosa, em que a alma popular, em êxtase, perfeitamente divinizada, ergueu um hossana imortal às forças fecundadoras do génio das duas Pátrias.
Este teria sido, na verdade, para António José de Almeida, o momento mais apoteótico do “discurso” no Brasil. Tratava-se — como então se disse — de uma “Grande Manifestação Popular”, afinal de um verdadeiro “comício”. E ele sempre gostara de falar ao povo, de se envolver com ele, de tomar banhos de multidão.
Portanto, a viagem de António José de Almeida, o mais importante representante da República de 1910, teve um carácter oficial e nacional. O mesmo não sucedeu, obviamente, com a viagem de António Ferro, que ainda não significou a viagem da “República Corporativa” ao Brasil, instituída cerca de 10 anos depois, mas sim uma concepção modernista de cultura que, como na Itália fascista de Marinetti e D’Annunzio, se aproximava do fascismo, se bem que com uma roupagem republicana, que Ferro havia confessado vestir e que se porá ao serviço de Salazar. Trata-se de uma premonição de “outra República”, mesmo que historiadores considerem que só formalmente se tratou de uma “República”, pois a forma monoideológica e monopartidária que assumiu, com o consequente carácter repressivo, afastou, obviamente, o Estado Novo de uma concepção de cidadania democrática e respublicana.
António Ferro, modernista e republicano de direita, em São Paulo
Nesse ano de 1922 António Ferro escrevera a polémica peça Mar alto,10 um drama urbano aparentemente amoral, que viria a ser proibida no dia seguinte à primeira representação em Lisboa, no Teatro São Carlos, em 10 de Julho de 1923, com o protesto de intelectuais de todos os quadrantes. Antes, a Companhia de Lucília Simões e Erico Braga tinha ido apresentá-la no Brasil, onde se estreia no Teatro Sant’Ana, no dia 18 de Novembro de 1922 (a peça será repetida no Teatro Lírico do Rio de Janeiro em 16 de Dezembro). Ferro foi convidado para seguir com a Companhia — participou como ator e proferiu conferências.
Com efeito, nesse ano comemorativo da Independência do Brasil, da travessia do Atlântico em aeroplano por Sacadura Cabral e Gago Coutinho (que, curiosamente, será, com Lucília Simões, uma das testemunhas do casamento por procuração de Ferro com Fernanda de Castro, realizado em 1 de Agosto de 1922), da expressão formal do modernismo em São Paulo, com a célebre Semana de Arte Moderna, vai proferir uma conferência adequada ao seu estilo, A idade do jazz-band, primeiro no Teatro Lírico do Rio de Janeiro (30 de Julho de 1922), depois no Teatro Municipal de São Paulo (12 de Setembro) e no Automóvel Club da mesma cidade (10 de Novembro), no Teatro Guarany de Santos (10 de Outubro) e, por fim, no Teatro Municipal de Belo Horizonte (agora já em 1923, 8 de Fevereiro). Vários foram os discursos de apresentação de António Ferro: Carlos Malheiro Dias, um intelectual monárquico português exilado no Brasil, e os escritores modernistas Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho, um dos diretores do Orpheu (como o ex-secretário da legação portuguesa no Rio de Janeiro, Luís de Montalvor). Todos falaram da geração jovem a que pertencia Ferro, do seu narcisismo e da sua obra. Malheiro Dias dirá, para justificar a “presunção” de que o acusavam, que “a modéstia é a tristonha virtude da experiência”.11 Guilherme de Almeida, no Teatro Municipal de São Paulo, apresentará a sua conferência desta forma:
Isto quer dizer que ele vai falar de si próprio — de si e da sua Arte. Porque ele é a sua Arte mesma — e a sua Arte é um jazz-band. Um jazz-band completo, um jazz-band autêntico, um jazz-band do Hawai; mas um jazz-band civilizado, modernizado, estilizado, filtrado pela Broadway, um jazz-band bem Tio Sam, bem grill-room, com saiotes de palha, espeloteamentos e sapateados de Jig (Ferro, 1924:19).
Ronald de Carvalho, depois de notar que Ferro “ama a tradição, mas abomina o tradicionalismo”, “é um homem que não acredita no passado” (Ferro, 1924:33-34), explica assim a sua arte: “À semelhança de Fausto, cada um de nós explica o mundo pelo seu demónio. Esse demónio é a mentira da vida. António Ferro sabe praticar essa mentira e escutar esse demónio maravilhosamente” (Ferro, 1924:36).
Na sua conferência cénica, entrecortada por acordes de jazz-band, Ferro defende, mais uma vez, a arte moderna: “A Arte moderna revolucionou a Vida, proclamou a Humanidade em tudo quanto existe e em tudo quanto não existe” (Ferro, 1924:44). A arte é o domínio da mentira: “Torna-se urgente, portanto, fazer um pied-de-nez à morte, anteciparmos a nossa desaparição, suicidar-nos em crença, proclamarmos a mentira como única verdade…” (Ferro, 1924:45). Daí a importância da dança para esta “nova humanidade”: “A Dança triunfa como nunca triunfou, porque a dança desarticula os corpos, emboneca-os, liberta-os do peso da alma, desmascara-os… […] A humanidade já não marcha: dança!…” (Ferro, 1924:48). Daí a importância do jazz-band:
Para essa artificialização, minhas Senhoras e meus Senhores, está contribuindo, notavelmente, o Jazz-Band… O Jazz-Band frenético, diabólico, destrambelhado e ardente, é a grande fornalha da nova humanidade. Por cada rufo sinistro de tambor, por cada furiosa arcada, há um corpo que se liberta, um corpo que fica reduzido a linhas, a linhas emaranhadas… O Jazz-Band é o triunfo da dissonância, é a loucura instituída em juízo universal, essa caluniada loucura que é a única renovação possível do mundo… (Ferro, 1924:60)
A Europa estava em crise e, por isso, o jazz-band foi quem salvou a Europa:
O jazz band, natural da América, emigrou para a Europa, como já tinha emigrado o Tango. O que a Europa tem, atualmente, de mais europeu, é, portanto americano.
E, entretanto, é curioso: a América, que vibra toda no ritmo do jazz-band, quase não dá pelo jazz-band. A Europa envelheceu, teve um abaixamento de voz com as emoções da guerra. A Europa lembrava um soprano lírico em decadência.
Foi a América que lhe valeu, que lhe injetou, nas veias murchas, a vida artificial do jazz-band. Por sua vez a Europa ensinou à América as virtudes desse remédio, deu-lhe relevo, aperfeiçoou-o. A América, minhas Senhoras e meus Senhores, é o momento da Europa. Simplesmente o que na América é vulgar, natural, quotidiano, na Europa é artificial, escandaloso, apoteótico... Na América, o jazz-band tem um ritmo de marcha. Na Europa é um hino (Ferro, 1924:68).
Mas o jazz-band tinha, no fundo, a sua origem em África, pelo que a Europa, a arte moderna e a “nova humanidade” também lhe deviam muito:
O jazz-band é o arco voltaico do Universo. As ruas tumultuosas, estrídulas, dissonantes, são os jazz-bands das cidades. As cidades são os jazz-bands das nações. As nações são os jazz-bands do mundo. O mundo é o jazz-band do Criador. O jazz-band é o dogma da nossa Hora. Nós vivemos em jazz-band. Sofremos em jazz-band. Amamos em jazz-band.
Nas almas, nos corpos, nos livros, nas estátuas, nas casas, nas telas — há negros em batuque, suados e furiosos, negros em vermelho, negros em labareda. O momento é um negro. O jazz-band é o xadrez da Hora. Jazz-branco; band-negro. Corpos alvos — bailando; corpos de ébano — tocando. O jazz-band é o ex-líbris do Século. Que as vossas almas bailem ao ritmo deste jazz-band de brancos mascarrados pelo carvão das minhas palavras...
[Nova interrupção do jazz-band]12
A influência da arte negra sobre a arte moderna torna-se indiscutível. A arte moderna é a síntese. Os negros, tiveram sempre o instinto da síntese. Os negros ficaram na infância — para ficarem na verdade. A criança é a abreviatura da Natureza. As crianças, os doidos e os negros são os rascunhos da Humanidade, as teses que Deus desenvolveu e complicou. Não há escultura de Rodin que tenha a verdade dum manipanso.
Uma escultura de Rodin é a expressão máxima. Um manipanso é a expressão mínima. A verdade está no esboço da obra — não está na obra. Obra acabada é obra morta (Ferro, 1924:69-72).
Para além da América e da arte negra, havia que considerar a influência dos bailados russos:
Toda a nossa Época baila russo!
Não triunfou o bolchevismo das ideias, mas triunfou o bolchevismo das formas... Diaghilew, Nijinski, Massine são os Lenines do Ritmo. O que é a Rússia senão um grande bailado, um bailado sinistro, um bailado vermelho? Benditos sejam os Bailados Russos que nos libertaram de nós próprios, que puseram o mundo em cada um de nós, que unificaram a Arte, que deram, à minha pena, movimentos de Karsavina. A maior vitória dos Bailados Russos foi a de transformar os estados desunidos da Arte num grande Império, um império maior do que a terra porque é do tamanho do Sonho... Nos Bailados Russos, a Cor é gémea da Dança, da Música, da Atitude... É impossível separar essas irmãs gémeas, como é impossível separar as cores de uma bandeira, os versos de um soneto, os compassos de uma melodia, as imagens dos olhos... Para que a arte fizesse frente à vida era necessário que ela estivesse unificada como a vida está. Os Bailados Russos são a constituição política da Arte, constituição em que o primeiro artigo proíbe a estabilidade e ordena a evolução contínua... O jazz-band, essa Dança de S. Vito, é, portanto, uma das muitas consequências dos Bailados Russos. O jazz-band é o Bailado Russo da Música (Ferro, 1924:75-77).
No contexto dos paradoxos de Ferro, a humanidade caminhava, pois, para um renascimento que seria tanto maior quanto se verificasse um processo de “artificialização”. Por isso, o homem e a mulher, através do jazz-band, caminhavam para uma “nova humanidade”:
Quando Deus concebeu o Homem, quando concebeu a Mulher, não foi para que eles se resignassem à forma que lhes dera, não foi para que eles ficassem humanos. Os pais colocam os filhos, na Vida, e deixam-nos seguir o seu caminho certos de que os filhos tornando-se pais, por sua vez, lhes seguem o exemplo... Da mesma forma, Deus teria desejado que os seus filhos, o Homem e a Mulher, seguissem o seu caminho, desumanizando-se, tornando-se deuses como o Pai... O Homem e a Mulher, porém, não compreenderam assim. Ficaram-se no preconceito da Humanidade, atrasados, inferiores, indignos de Deus... Começam, finalmente, a libertar-se, a artificializar-se, a ser deuses... A Idade Jazz-Band é a Idade precursora desse renascimento, a Idade em que o corpo humano é um baralho de cartas que se parte, ao fim do jogo, para dar outra vez. Bendita seja a nossa Época, Época em que todos nós trazemos o Sol a tilintar nos corações, como uma libra numa bolsa de prata. Época em que esta conferência, minhas Senhoras e meus Senhores, só pode terminar com a pancada de um bombo!
[Dito e feito. A pancada dum bombo foi o ponto final da conferência].13
Foi, pois, esta a mensagem modernista e futurista que António Ferro transmitiu ao Brasil no ano da sua Semana de Arte Moderna de São Paulo. E, em 5 de Dezembro de 1922, despediu-se dos paulistas numa conferência proferida outra vez no Teatro Municipal, que foi apresentada pelo escritor modernista Menotti del Picchia. O tema era A arte de bem morrer, texto que foi publicado no Rio em 1923, com capa de Almada Negreiros.14
Como sempre, é um texto paradoxal, que foi representado de forma espetacular. Ferro começa por dizer que “a Vida é o curso superior da Morte” e, por isso, durante a vida deveria “aprender-se a morrer”. Desta forma, apresentou exemplos múltiplos da “arte de bem morrer”, para terminar desta forma teatral:
Chego ao fim. Antes, porém, eu quero falar-vos da morte mais bela, da morte que seria a mais bela se alguém tivesse a coragem de afrontá-la... Suponham um poeta moderno, um poeta decadente, um alcoólico dos sentidos, blasé, cansado da vida como duma mulher perversa. Suponham mesmo que esse poeta era eu. Para morrer, para morrer como um soldado no seu posto, esse poeta suicidar-se-ia com uma conferência que se chamaria “A Arte de Bem Morrer” e cujo ponto final seria um tiro de pistola. Morrer, morrer de negro, morrer perante o público, frente a frente com a vida moderna, saber que a sua morte, pela teatralidade, arrancaria, ao menos, um grito de pavor e de sentimento!
Morrer, com a morte mais bela, ao fim de um compte-rendu de mortes gloriosas, de mortes vivas!... Como eu gostava de ser esse homem, minhas Senhoras e meus Senhores... como eu gostava de vos ter dito esta conferência, de vos sorrir e de me retirar — para sempre!...
Lentamente, num smorzando, eu olhar-vos-ia, com os meus olhos amolecidos, quase líquidos, todos de branco, como um lenço, a acenar-vos o último adeus... Os meus dedos, pajens da minha realeza, arrancariam da minha algibeira, como um cetro, a pistola redentora. E, antes que houvesse em vós a percepção do meu gesto, eu levaria a arma à boca, como um veneno, tiraria o gatilho e tombaria ensanguentado, como uma frase, como a minha última frase — escrita a vermelho... Seria muito belo. Simplesmente, minhas Senhoras e meus Senhores, o Brasil é um poema, e eu quero decorá-lo, antes de morrer, para o recitar a Deus. Fica, portanto, adiada minha morte (Ferro, 1987:185-186).
Termina aqui a viagem de Ferro e o encontro com poetas modernistas e outros poetas de várias tendências. Para além dos que fomos referindo, Graça Aranha, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego… Ainda no Brasil será publicado um livro de crónicas intitulado Batalha de flores.15
A concluir
Portanto, a viagem ao Brasil de António Ferro ainda não se insere na visita do homem da propaganda do Estado Novo, como virá a suceder mais tarde. É sim a viagem de um intelectual modernista que, como outros, se integra na vanguarda estética que caracterizou a mensagem intelectual de direita à procura de uma “estética nova”, como de um “Estado Novo”, vanguarda estética que vinha a formar-se, numa concepção de “geração nova”, também nas tendências literárias de alguns republicanos cansados de uma “cultura burguesa” (Simões, 1911). Por isso, e tal sucedeu no Brasil, essa estética nova também concitará o interesse de intelectuais de esquerda, como em Portugal igualmente atrairá esse tipo de escritores, nomeadamente na revista Presença, aonde ocasionalmente acorrerá um antissemita, Mário Saa, mas por onde passarão escritores como João Gaspar Simões, Edmundo Bettencourt ou Miguel Torga.
De outro tipo é a viagem oficial da “República” de António José de Almeida que, no entanto, do ponto de vista da estética da escrita e do discurso, com as suas figuras de estilo, as suas ambiguidades e os seus paradoxos, não deixava de se afirmar numa sensibilidade modernista. Talvez por isso tenha atraído António Ferro, que procurava insistentemente um líder, que nunca poderia ter sido, no entanto, um republicano da cepa de António José de Almeida. Mas um dado egotismo do presidente e certo populismo não deixava de ser sensível ao escritor do manifesto modernista Nós (1921), publicado na revista Klaxon (1922), órgão da Semana de Arte Moderna de S. Paulo, que abominava as concepções burguesas da cultura e da política, que todavia oficialmente, mais do que pessoalmente, António José de Almeida também representou.
 
 
Referências:
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LEAL, Ernesto Castro. Nação e nacionalismo: a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-1938). Lisboa: Edições Cosmos, 1999.
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