sexta-feira, 9 de setembro de 2016




Homenagem a Agostinho Lourenço
26 de Agosto de 1934
Na mesa Tenente Coronel João Luís de Moura,
o Ministro do Interior Capitão Gomes Pereira e
o homenageado

Capitão Agostinho Lourenço

                
Agostinho Lourenço com Carneiro Pacheco na
Avenida Barbosa do Bocage quando do atentado a Salazar
4 de Julho de 1937
  Da revista Visão
O anjo negro de Salazar
17.07.2016

Não existem entrevistas dele, raríssimas são as referências nos arquivos dos jornais, inexistentes os estudos de investigação académica e quase não se dava conta das suas movimentações. E no entanto, ele movia-se. E bem. Tanto no plano nacional, como no estrangeiro, próximo da Scotland Yard, sem perder as ligações, em simultâneo, à Alemanha nazi. Ambíguo, sisudo, discreto, metido consigo, dizia-se que “quando passava a porta da polícia deixava o coração lá fora”. Era ele o temível homem-sombra nos mais sórdidos corredores do poder. O capitão Agostinho Lourenço, diretor da polícia política que antecedeu a PIDE, permaneceria no seu posto durante mais de 25 anos – nunca nenhum outro dirigente máximo se haveria de manter neste cargo por tanto tempo – e terá traçado as linhas gerais da conduta da polícia política, os métodos científicos de tortura, as linhas base de atuação, a delineação dos opositores a quem dar caça, morte ou prisão, a montagem do sistema prisional político, no continente ou em Angra e dos campos de concentração nas colónias, a coordenação da rede de mil e tal agentes e de ainda mais informadores... Existe a mão dele por detrás disto tudo. Era ele o cérebro da PIDE. Depois de reformado – entre 1956 e 1960 – foi o único português a chefiar a Interpol. E assim como apareceu, viveu, agiu na sombra, também morreu. Sumiu-se... Na morte, tal como na vida, entre as brumas do secretismo e da reserva. Apenas um insignificante anúncio, no DN, participava o seu óbito em 1964. Sem mais.
No fundo, explica Jacinto Godinho, jornalista, autor da série da RTP2, A Pide Antes da Pide, Lourenço seria uma personagem, reduzida às nossas devidas proporções, de relevo semelhante ao de um Hoover (o primeiro diretor do FBI) ou de um Göring (fundador da Gestapo). Por isso, estranha que não tenha havido mais curiosidade histórica acerca da sua longa passagem pelos antecedentes da PIDE (que surge formalmente e com este nome em 22 de outubro de 1945).
É certo que o capitão não era um operacional, não comparecia nos interrogatórios, nem nas sessões de tortura mas, continua, “tornou-se no arquiteto, naquele que delineava as grandes operações de força do regime contra as forças oposicionistas”. Dono dos mais altos segredos do Estado, “todas as semanas se encontrava com Salazar”. Era, aliás, dos raros vultos governativos, que, sem ser ministro, reunia com o presidente do Conselho.
O mais poderoso homem do Estado Novo, o anjo negro de Salazar, homem quase sem rosto até aqui (Jacinto Godinho revela imagens inéditas na série), não deixou memórias, nem bibliografia relevante. Praticamente não deixou rasto. Mas já lá estava, em 31, no seu posto policial quando Salazar chegou à Presidência do Conselho, em 32.
Curiosamente entre as suas raras aparições públicas, contam-se as das festas de Natal dos funcionários e do conselho de administração da famosa Papelaria Fernandes lisboeta, propriedade da família.
Relações ambíguas Agostinho Lourenço (fardado) numa cerimónia republicana, em 1931, com o médico maçónico Rámon La Féria (de óculos), que, anos mais tarde, mandou prender
Relações ambíguas Agostinho Lourenço (fardado) numa cerimónia republicana, em 1931, com o médico maçónico Rámon La Féria (de óculos), que, anos mais tarde, mandou prender


Sidonista, nazi, pró-franquista e anglófilo

De Agostinho Lourenço sabe-se apenas que nasceu em Lisboa, mas de famílias da Beira Interior, filho de um monárquico, irmão de um general. Em 1908 frequentou a Escola de Guerra de formação de oficiais do exército português. Tornou-se tenente de infantaria no contingente de Tancos. Integrou o corpo expedicionário da Primeira Guerra Mundial e embarcou para França, em 1917, enquanto instrutor de tiro. Volta de licença e aqui dá-se, talvez, o primeiro episódio misterioso do seu percurso. Instado a regressar ao seu posto em França, evita estranhamente o retorno às trincheiras e escapa à mortandade (muitos milhares de mortos, feridos e desaparecidos entre as tropas portuguesas) na Batalha de La Lys, a 9 de abril de 1918. Porque não terá sido forçado a regressar?, questiona-se Jacinto Godinho. Este pode ser o primeiro de muitos indícios do seu grande poder. Ou dos meios influentes em que se movia.
Próximo do ditador Sidónio Pais, tornou-se governador civil de Leiria. Aproxima-se a sua primeira experiência policial ao serviço de um ditador. Chamava-se Polícia Preventiva esta que é considerada precursora da PIDE e responsável por mais de 5 mil presos políticos. Sidónio é assassinado em 1918 por membros da Carbonária. Em dezembro de 1926, Lourenço reaparece, entra para comissário da PSP e dirige a esquadra do Matadouro, em Picoas.
Torna-se, em 1928, diretor da Polícia de Trânsito e, em 1931, já era máximo responsável pela proteção pessoal de importantes vultos internacionais de visita ao País, entre eles o Príncipe de Gales ou os Príncipes do Japão. E até 1933 manteve-se como diretor da Polícia Internacional. Conseguiu, no entanto, manter uma ambivalência que lhe terá trazido bastantes trunfos e muita proteção. Ao mesmo tempo acusado de ser germanófilo, com ligações à Alemanha Nazi (ganhou uma condecoração do governo alemão, em 1941), era um homem de confiança da Scotland Yard e preservou as relações com os serviços secretos ingleses. Durante a Guerra Civil Espanhola, privava mais com o general Franco do que o próprio Salazar. E a polícia que dirigia perseguia ferozmente os comunistas, anarquistas e socialistas espanhóis que aqui se refugiavam.
Desta figura da Inteligência portuguesa sabe-se, pois, muito pouco – apenas resta alguma espuma. Suspeita-se que o próprio tenha contribuído em vida para o apagamento das suas pegadas e, assim, da sua posteridade.
Outro episódio equívoco, aquando do atentado a Salazar, a 4 de julho de 1937. Este cumpria o seu ritual da missa do domingo, e no percurso, uma bomba rebentou a poucos metros do carro do ditador, nas Avenidas Novas, em Lisboa. Salazar escapa por um triz, os explosivos não deflagraram como se previa por uma falha técnica e a PVDE chegou ao local pouco tempo depois. Nessa ocasião Agostinho Lourenço não só comparece como faz questão de ser visto, de se deixar fotografar junto do local do crime. As pistas seguidas para chegar aos autores do atentados eram totalmente descabidas. A PVDE centrou-se num boné supostamente caído, com uma etiqueta de um estabelecimento em Alcântara e a polícia ocupa-se em espiolhar todas as lojas das redondezas, faz apreensões e prisões que em nada batem certo com os testemunhos. Lourenço quer mostrar trabalho, humilhado pela presença de agentes de Mussolini chamados para ajudar a desvendar o atentado. Prendem-se inocentes à pressa – os culpados continuarão, por algum tempo, à solta. Abre-se um inquérito, Agostinho Lourenço pode ter o seu posto tremido. Mas nem ele põe o lugar à disposição, nem é demitido face ao flagrante falhanço. Resiste, intocável. Até à autoridade de Salazar. Mais uma vez aqui ter-se-ão movido as altas influências do misterioso capitão.
Num documento da Maçonaria, assinado por Egas Moniz, comprova-se que Agostinho Lourenço terá sido membro de uma loja maçónica, em 1914. As mesmas figuras que comparecem com ele, como o médico Ramon Nonato La Féria, na ocasião de uma cerimónia maçónica, testemunhada pelo jornal O Século, em 1931, serão perseguidas pela polícia que ele dirige, meia dezena de anos depois.

A mesma PIDE, nomes diferentes

Na série (cujos episódios se prolongam até finais do mês), Jacinto Godinho entrevistou ex-inspetores da PIDE e muitas vítimas dela, presos políticos, torturados, mantidos nos calabouços durante décadas… Apercebeu-se de que a maior parte dos agentes da PIDE conseguiu diluir-se – não só na sociedade, como nas suas próprias famílias. As penas foram muito leves, muitos fugiram, houve condenações por crime de associação criminosa, mas por crime de tortura ninguém foi julgado. Quando fez o documentário Os Últimos Dias a PIDE (exibido em 25 de Abril), deparou-se com muitos ex-inspetores que até ficavam aliviados quando eram presos ou levados pela tropa: sentiam-se mais protegidos de eventuais linchamentos. Que nunca chegaram a acontecer. Presos políticos testemunham encontros e reconhecimentos. Mas viraram a cara para o outro lado… E a vida continuou como se nada se tivesse passado.
Constituída por várias fações militares, a PIDE tinha ora um pendor mais conservador, mais monárquico ou fascista. E se as siglas PIDE (Policia Internacional e de Defesa do Estado) eram um eufemismo para as PVDE (Polícia e Vigilância e Defesa do Estado), já estas tentavam “cosmetizar” a anterior PDPS (Polícia de Defesa Política e Social), cada uma tentando apagar, ou pelo menos disfarçar, a má fama da antecessora. Até ao marcelismo que tentou convencer, com muita dificuldade, que a PIDE se tinha tornado numa mera direção-geral (DGS, Direção Geral de Segurança) No fundo, foi sempre a mesma polícia (de 1926 a 1974), mantendo-se as mesmas formas de atuação, os mesmos métodos de tortura e prisões sem julgamento, albergadas até nas mesmas sedes – ou nas traseiras do São Carlos (atual PSP) ou na sinistra António Maria Cardoso (hoje um condomínio de luxo). Mudavam apenas os nomes, as siglas e até os agentes permaneciam os mesmos, ao longo de décadas – apenas tinham de alterar o cartão de funcionário público…
O primeiro episódio da série funcionou, explica o autor, como uma espécie de prefácio. Remonta aos tempos da monarquia. O rei Dom Carlos, tem a protegê-lo – não com muito sucesso, como se sabe – contra a Carbonária, a Polícia Preventiva, considerada a primeira polícia política da era moderna. Que, em nome do respeito pela ordem e tranquilidade pública, dá caça aos republicanos. Até Aquilino Ribeiro é preso por duas vezes. Mas por uma questão de genealogia, explica Jacinto Godinho, vai muito mais lá atrás na História, até aos tempos da Inquisição. A cultura do medo e da delação começa a injetar-se na mentalidade coletiva. E isso ajuda a explicar como foi possível construir-se um país com o medo em cada rosto, em cada esquina um informador.

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