No entanto, como dizia Antero de Quental, quando a opção é sincera […] há sempre um entendimento possível. A minha opção não podia ser mais sincera, pelo que percebi que tinha de me entender com João Chagas, porque a sua vida e a sua obra eram (e são ainda) merecedoras de estudo aprofundado.
O Nobel José Saramago diz no seu livro “A Bagagem do Viajante” que nunca foi “afecto a essa vaidade necrófila que leva tanta gente a pesquisar o passado, buscando os ramos e os enxertos da árvore que nenhuma botânica menciona – a genealógica”. Entende Saramago que “cada um de nós é, acima de tudo, filho das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o tempo que cá anda”.
Ora, sem pretender discordar do nosso Nobel da Literatura, a verdade é que tentei ir à raiz da árvore genealógica de João Chagas. Sabendo que nascera no Brasil, empreendi contactos com as instituições brasileiras que se me afiguravam como as mais apropriadas para o efeito, até averiguar que os elementos que procurava se encontravam na Cúria do Rio de Janeiro.
Quando pensava que tinha descoberto o caminho para o passado brasileiro daquele que então já considerava como um dos grandes portugueses de sempre, esbarrei num outro problema. Os arquivos da Cúria estão organizados pelo primeiro nome, neste caso João, pelo que teria de investigar todos os nascidos de nome João do ano 1863.
Apercebendo-me da impossibilidade de obter a pretendida certidão de nascimento, tentei averiguar com a máxima exactidão, pelo menos, o dia do seu nascimento, uma vez que nos apontamentos publicados a seu respeito é possível encontrar as datas de 1, 2, 3 e 4 de Setembro de 1863. Optei pelo dia 1 de Setembro por diversas razões mas fundamentalmente porque é a data indicada por Alfredo de Mesquita, o autor que escreveu uma obra que, embora sintética e laudatória, é a mais completa sobre João Chagas.
Mas, na realidade, através das incursões genealógicas não consegui ir para além dos pais de João Chagas. Porém, com o desenvolvimento das investigações concluí que João Chagas não precisava, efectivamente, desses pergaminhos familiares. O nosso diplomata é um daqueles vultos do republicanismo que pode ser considerado um “filho das suas obras”.
Nascido no seio de uma família de emigrantes liberais, perdeu os pais quando ainda era criança, pelo que teve que defrontar-se com a vida sem amparo nem guia, nem conselhos. Por isso, desde cedo, sentiu necessidade de conferir a si próprio uma espécie de auto-tutela, que “não foi omissa nem de tino, nem de zêlo activo, nem de prudência severa”. Do exercício pontual, sem branduras nem deslizes, dessa tutoria enraizou-se na sua personalidade uma certa rispidez.
Na verdade, quando outros, aos 20 anos, eram caloiros em Coimbra, João Chagas iniciava-se no jornalismo e, servido por uma intuição pronta e clara, delineava ele mesmo o programa da educação do seu espírito. Afirmava-se, com naturalidade, como um ser secretamente inspirado, que persuadia sem discutir, pois invalidava a réplica com os seus argumentos.
Foi com essa mesma clareza que percebeu, aquando do Ultimato inglês de 11 de Janeiro de 1890, que a Monarquia estava agonizante. Ele que era um aristocrata, de origens liberais, tradicionalmente leais à Monarquia, um jornalista “relativamente indiferente à questão do regime político, quando não mesmo simpatizante das instituições monárquicas”, rompeu com a tradição familiar e deixou-se seduzir pelos ideais republicanos, vindo a situar-se entre os vultos que em artigos sucessivos publicados nos jornais A República, A Justiça Portugueza e A República Portugueza imputaram ao Trono todas as responsabilidades da intimação britânica, preparando o clima febril de que sairia a tentativa revolucionária do 31 de Janeiro de 1891.
Durante os últimos anos da Monarquia, João Chagas afirmou-se, portanto, como um jornalista conceituado, um panfletário agressivo, um implacável demolidor da Monarquia.
2. De jornalista a diplomata e governante
Após a implantação da República, em 5 de Outubro de 1910, foi o primeiro chefe de missão de 1.ª classe a ser nomeado para uma Legação de Portugal, no caso Paris.
Já na capital francesa, lia minuciosamente os jornais portugueses e franceses e seguia obstinadamente, e quase sempre com grande angústia, o que se passava na vida interna da República portuguesa e nos bastidores da política internacional, sobretudo o que se referia às nossas colónias. Chegou mesmo a procurar que Câmara Reys fizesse eco, entre nós, da situação internacional de Portugal e da necessidade de se fazer uma nova política e de todos colaborarem na sua definição e implementação.
João Chagas estava convencido de que a atitude da Inglaterra para com Portugal era de “expectação” e de que o nosso destino, como nação colonial, dependia apenas do que lhe mostrássemos que éramos capazes de fazer. O império colonial, cobiçado por várias nações estrangeiras, só podia ser salvaguardado se a República abrisse o país e as colónias.
Ciente de que a República despertara interesse nos meios financeiros da Europa, alertava que as nações estrangeiras esperavam de Portugal novas iniciativas, que viabilizassem o ressurgimento material do país e criassem um regime de porta aberta aos capitais estrangeiros. Como a República não dava esses sinais, o nosso ministro em Paris receava que as colónias se perdessem.
Durante os primeiros meses de actividade diplomática, João Chagas deu ainda especial atenção ao perigo de restauração monárquica em Portugal. É disso testemunha a correspondência frequente trocada entre Paris e Lisboa, designadamente entre João Chagas e Bernardino Machado, à época ministro dos Negócios Estrangeiros. Bernardino Machado estava determinado a averiguar o que faziam os conspiradores em território francês e o nosso diplomata mantinha-o permanentemente informado.
Bernardino Machado respondia às informações de João Chagas com novas indicações. Rogava-lhe que insistisse junto do governo francês e da Schneider, no sentido de Portugal conseguir adquirir um ou mais navios e diverso material de guerra. Havia uma enorme preocupação em apetrechar as forças militares portuguesas, no sentido de garantir a defesa das nossas fronteiras marítimas e terrestres. O risco de uma insurreição monárquica dominava grande parte dos seus espíritos.
O facto de ambos estarem atentos ao perigo de uma tentativa de restauração monárquica em Portugal fez com que a missão de João Chagas na Legação de Paris, decorrida até ser chamado, em finais de Agosto de 1911, a formar o primeiro Governo constitucional da República, se desenrolasse, essencialmente, em torno de duas questões principais: a vigilância dos conspiradores em território francês e as sucessivas tentativas de aquisição de material de guerra. João Chagas foi bem sucedido em ambas.
Entretanto, foi chamado a presidir ao primeiro Governo constitucional, porque o Presidente da República Manuel de Arriaga entendia, claramente para travar a influência crescente de Afonso Costa, que este primeiro ministério não deveria integrar elementos do Governo Provisório, antes devendo ser constituído “fora das dissidências e perturbações partidárias”. Ora, um governo de unidade republicana, que precisava do apoio das massas populares, só podia ser presidido por uma figura eminentemente popular que não estivesse comprometida com nenhuma das facções que germinavam no PRP. O perfil tinha as medidas de João Chagas.
Apesar de sentir que seria o maior sacrifício da sua vida, enviado extraordinário em Paris aceitou a nova missão, acreditando que podia impedir “por sua própria força e autoridade que as lutas internas do partido degenerassem numa guerra aberta” e que podia contribuir para a aceitação do regime republicano pela comunidade internacional.
Abandonou a diplomacia em Paris para assumir a presidência do Ministério, a 3 de Setembro de 1911, certo de que recebia uma pesada herança. Conhecia as dificuldades que iria encontrar para governar um país com oito séculos de tradição monárquica, uma República recente, uma classe política heterogénea, um PRP a dividir-se, uma situação económica catastrófica, um índice de analfabetismo assustador e um sério perigo de eventuais tentativas de restauração monárquica.
Perante a impossibilidade de formar um governo de concentração, devido à recusa de Afonso Costa, numa tentativa de conciliação nacional, constituiu um Ministério com personalidades das diferentes facções republicanas: camachistas, almeidistas, independentes (todos do Bloco) e até o adesivo, Diogo de Melo Leote, a quem entregou a pasta da Justiça; convidou Duarte Leite para as Finanças; Pimenta de Castro para a Guerra; João Duarte de Meneses para a Marinha; Augusto de Vasconcelos para os Negócios Estrangeiros; Sidónio Pais para o Fomento; e Celestino Pais de Almeida para a nova pasta das Colónias.
Sabia que contava com a oposição parlamentar do grupo maioritário do antigo PRP, mas, mesmo assim, era sua intenção pacificar a vida parlamentar da República e, com essa pacificação, governar o país com tranquilidade. No discurso de posse deixou claro que a sua maior preocupação seria a manutenção da unidade moral da família republicana.
No entanto, como mais tarde escreveu, em carta ao seu amigo Câmara Reys, quando tomou conta do governo, “não era possível um ministério de concentração. Estava ainda muito acesa a briga provocada pela desgraçada questão da presidência.
João Chagas fez o “sacrifício de aceitar o poder para ganhar tempo e facilitar, senão uma reconciliação impossível, o entendimento que veio a dar-se”. As duas facções – radical e moderada – eram, efectivamente, irreconciliáveis.
Quando, em plena comemoração do primeiro aniversário da implantação da República, ocorreu a primeira incursão monárquica no norte do país, o Ministério de João Chagas foi o alvo preferido dessas facções. Embora o pequeno grupo de guerrilheiros monárquicos, que entrou em Portugal pela Galiza, tenha sido forçado a retirar pelas tropas fiéis ao governo, esta primeira incursão teve uma implicação determinante no breve prosseguimento da governação.
O período de 70 dias durante o qual João Chagas se aguentou no governo (até 12 de Novembro) serviu para evidenciar a sua forma de governar e o seu desapego face ao poder.
Deste primeiro Ministério ficou a memória de um governo, no qual João Chagas foi “assistido por um antigo adepto do ditador deposto em Fevereiro de 1908 e dois futuros ditadores, o de Janeiro a Maio de 1915 e o de Dezembro de 1917 a Dezembro de 1918”, ou seja, os dois ditadores que viriam a subverter o regime republicano: o general Pimenta de Castro e o futuro major Sidónio Pais. É por isso que se defende que pode ser encarado como aquele que mais directa e coriaciamente combateu as três ditaduras que precederam a do 28 de Maio de 1926.
Deixando a política aos políticos, as facções aos facciosos, João Chagas entendeu que para bem servir a República deveria regressar à diplomacia em Paris. Mantendo o seu pensamento na política interna da República, vigiou pessoalmente e através do pessoal da Legação e de alguns dos cônsules em França, as movimentações dos conspiradores monárquicos em território francês. Esta vigilância apertada dos conspiradores não impediu, no entanto, a segunda incursão monárquica ocorrida a 9 de Julho de 1912 em Portugal e prontamente reprimida.
3. O mais radical intervencionista
Entretanto, em pleno Verão de 1914, quando a Europa entrou em guerra, uma guerra que todos julgavam breve mas que se prolongou por quatro anos, João Chagas, em Paris, confrontou-se, no dia em que a guerra eclodiu, com a “psicose da guerra”.
Era sábado, 1 de Agosto, Paris, “sussurrava como o mar”. Depois de um fim-de-semana em que a habitual “efervescência apaixonada, sucedeu ao exame de consciência, o rendez-vous surdo e instintivo da vida com a morte”, o nosso ministro em França foi surpreendido com um considerável número de portugueses que pediam o repatriamento e por outros tantos que procuravam saber a posição de Portugal face à guerra que se avizinhava ou apenas queriam instruções sobre o modo de agir num país estrangeiro em estado de guerra.
João Chagas tranquilizou, na medida possível, os portugueses. De seguida, recebeu Aquilino Ribeiro que se encontrava em Paris após uma deslocação prolongada à Alemanha. A posição de Portugal perante a guerra dominou o encontro entre o diplomata e o escritor nesse e nos dias seguintes.
Aquilino Ribeiro confrontou-o com a possibilidade de Portugal declarar a beligerância, se não a declarara ainda. João Chagas sossegou-o, mas, de seguida, sobressaltou-o quando lhe disse: “Portugal ainda não declarou a beligerância […] todavia, é urgente que a declare. É uma questão de decoro e de independência. Se quer viver, se quer ser alguém no concerto da Europa futura, apresse-se a entrar em guerra com o pouco que tem, com o pouco que puder dar, contra os Impérios Centrais”.
Entre os dois não havia qualquer possibilidade de consenso. Aquilino Ribeiro defendia a neutralidade absoluta. João Chagas assumia categoricamente a sua intenção: “De hoje em diante tomo a peito levar o meu país à guerra”. O escritor debateu-se interiormente para encontrar a causa “necessária”, em nome da qual se poderiam – e passo a citar - “despachar para o matadoiro os pobres, ignorantes e pacíficos labregos”.
Este episódio entre João Chagas e Aquilino Ribeiro, antes da eclosão da guerra e longe de Portugal, prefigura uma metáfora quase perfeita do que viria a ser a questão fundamental da atitude de Portugal perante a guerra: o consenso nacional nunca conseguido; a abertura de uma clivagem profunda nunca superada, que atravessou toda a sociedade portuguesa e opôs “guerristas” e “anti-guerristas”; uma polémica política violenta que atravessou a opinião pública, a instituição militar, os partidos e o próprio poder político.
A questão de intervir ou não na guerra, “o grande pomo da discórdia da primeira República”, colocou em confronto os intervencionistas (também designados aliadófilos/guerristas) e os anti-intervencionistas (também denominados anti-guerristas). Para os aliadófilos, a participação na guerra ao lado da Inglaterra “reanimaria a velha aliança e quebraria o isolamento de Portugal”.
Os principais defensores do intervencionismo eram os republicanos democráticos que constituiam a maior força política do país e dominavam o aparelho de Estado. Os anti-intervencionistas, defensores da neutralidade, eram, sobretudo, os monárquicos, os republicanos unionistas, alguns sectores do exército e a maioria do país “que se opunha naturalmente à participação num conflito cujas causas lhe escapavam”.
Mas por que queriam tanto os guerristas, entre os quais se destaca João Chagas, levar Portugal para o conflito na Europa? Não era, podemos afirmá-lo com certeza, um desejo sórdido. Era, antes, um desejo grandioso de ver Portugal e a República em pé de igualdade com as grandes nações europeias, em oposição à Espanha neutral.
Para a generalidade dos intervencionistas, como João Chagas, a decisão da guerra, tanto militar como política, aconteceria não em África mas na Europa, daí que defendesse a intervenção no teatro de operações europeu. Quanto ao perigo espanhol, o diplomata defendia que o equilíbrio ibérico deveria ser alterado de forma a tornar-se mais favorável à posição portuguesa.
Ora acompanhemos o seu raciocínio: a Espanha declarara-se neutral mas mantinha boas relações com a França, o que nos oferecia garantias de boa vizinhança mas diminuía o nosso papel diplomático em Paris. Portugal só poderia ultrapassar esta situação de inferioridade se declarasse a sua solidariedade à França, dado que este país precisava de confiar nos dois países ibéricos.
João Chagas desejava também que Portugal se tornasse o interlocutor privilegiado da França na Península. Só que o governo de Lisboa não entendeu até onde esta proposta poderia levar o país, nomeadamente em matéria colonial e europeia. Cegamente fiel à aliança inglesa, o governo da República não foi capaz de equacionar outras ‘alianças’, confiante que a sua solidariedade para com a Inglaterra já o aproximava da França.
A estas questões de política externa somam-se as razões de política interna. Não podemos esquecer que também em Portugal era necessário consolidar e legitimar o regime republicano para conseguir governar com estabilidade política. As incursões monárquicas de 1911 e 1912 tinham sido o sinal de que não fora possível integrar todos os portugueses na República e as constantes demissões e substituições governativas provavam que havia divisões internas e rivalidades entre os partidos que surgiram da divisão do PRP.
A estratégia intervencionista “assumia objectivos de ordem externa como a garantia da integridade colonial em África, a soberania nacional face à Espanha e a conquista do prestígio internacional do regime”. Mas “perseguia igualmente objectivos de ordem interna” e aproveitou a conjuntura internacional criada pela guerra, pois “só uma ameaça externa e uma intervenção militar na guerra em larga escala poderia justificar o sacrifício de todas as fracturas e facções internas em função do interesse e da unidade nacional”.
Para João Chagas, se Portugal se mantivesse neutral nada ganharia. Se, pelo contrário, declarasse a beligerância e entrasse na Guerra ao lado das potências aliadas, teria uma oportunidade única para exigir a recompensa quando chegasse o momento da paz. Mantendo uma neutralidade condicional, como defendia Freire de Andrade, o ministro dos Negócios Estrangeiros português de 1914, Portugal só alcançaria a vergonha e perderia a oportunidade de alcançar um lugar entre as grandes nações europeias.
Foi por estar indignado com esta ambiguidade que, em Setembro de 1914, decidiu deslocar-se a Lisboa e envolver-se pessoalmente numa teia de contactos diplomáticos, cujo teor ou as omissões das negociações nos desafiam a admitir, como muito provável, a hipótese de João Chagas ter sido um dos principais motores de arranque da intervenção de Portugal na Guerra, enfim, o mais radical belicista de 1914 como acentua Soares Martinez.
Senão vejamos: ao receber, a 1 de Setembro de 1914, a notícia de que o Presidente da República e o governo da França iam deixar Paris, dirigindo-se para Bordéus, onde seria instalada a capital francesa, tendo em conta o risco da cidade de Paris ser ocupada por tropas alemãs, João Chagas decidiu imediatamente seguir também para Bordéus. Daí, a 3 de Setembro, partiu para Lisboa, a fim de debater pessoalmente com Freire de Andrade, a posição de Portugal perante a Guerra.
Nestes primeiros dias de Setembro, sob o estatuto internacional de ambígua neutralidade, continuava em Portugal “a polémica entre radicais e moderados sobre a estratégia nacional perante a Guerra”. João Chagas não concretizara os seus intentos belicistas através das diligências diplomáticas efectuadas junto do ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo que estava decidido a não regressar ao seu posto em Paris se Portugal não definisse inequivocamente a sua política face à Guerra.
Chegado a Lisboa, dirigiu-se ao ministério dos Negócios Estrangeiros, a fim de conferenciar com Freire de Andrade, reiterando-lhe que pretendia que “o país tivesse uma situação clara, que era necessário definir por meio de instrumentos diplomáticos a posição do país. Freire de Andrade garantiu-lhe apenas que a situação portuguesa estava perfeitamente concertada com o governo inglês.
Vendo que o governo não definira uma orientação para a Guerra, limitando-se a seguir as instruções de Londres, João Chagas promoveu, a partir desse momento, em Lisboa, uma discreta campanha, uma acção diplomática paralela. Avistou-se duas vezes com o ministro inglês, Lancelot Carnegie, a quem, habilidosamente, acusou a pouca transparência da política inglesa para com Portugal e reuniu uma vez com o representante da França, M. Deaschner. Registou pormenorizadamente, no seu Diário, as conversações com Freire de Andrade (a 11 de Setembro) e as entrevistas com Lancelot Carnegie (a 11 e 12 de Setembro).
Sobre o encontro com o ministro da França, na tarde de 12 de Setembro, não anotou quaisquer pormenores, cingindo-se a referir que o embaixador francês o acolheu com “larga simpatia, encantado com Portugal e com os sentimentos de carinho pelo seu país”.
Notou que a sua fisionomia irradiava contentamento, pelo facto das notícias da França serem “cada vez melhores”, uma vez que “depois do seu arrogante avanço sobre Paris”, os alemães voltavam para trás em derrota. São aspectos pouco interessantes, exceptuando a retirada alemã, sobre uma reunião com o embaixador do país que, três dias depois, pediria auxílio a Portugal, motivando a nossa alteração de atitude perante a Guerra.
Perante a notícia de que o Conselho de ministros entendera que a atitude de ambígua neutralidade era a melhor, João Chagas estampou no seu Diário o seguinte comentário: “Não insisti, porque espero ainda acontecimentos que obrigarão talvez o Governo a modificá-la. Os meus esforços têm de ser pertinazes mas discretos”.
Afinal, que acontecimentos aguardava João Chagas? Uma revolução não era certamente, porquanto, quando se encontrava em Bordéus afiançou à Capital que já fizera “bastantes revoluções” e defendeu que Portugal precisava de ordem. A que acontecimentos, susceptíveis de modificarem a atitude de Lisboa se referia o plenipotenciário em França?
Acreditamos que João Chagas teria feito diligências diplomáticas junto do representante da França em Lisboa (eventualmente confidenciais, motivo pelo qual não as terá anotado no Diário) e esperava que os seus esforços desencadeassem os acontecimentos que obrigariam a uma mudança de atitude.
Uma vez que não era possível um consenso - pois “os radicais, tendencialmente francófilos, [procuravam] uma estratégia autónoma de afirmação nacional e participação paritária, no quadro da Entente; os moderados, claramente anglófilos, [procuravam] uma colaboração bilateral, discreta e oficiosa, com a Inglaterra” – o governo português foi surpreendido, a 15 de Setembro, com o pedido de auxílio francês.
João Chagas terá sido apanhado de surpresa? O que o levou, no dia do pedido francês, ao ministério dos Negócios Estrangeiros? Confrontado com o pedido de armamento e com a intenção portuguesa de auxiliar a França, desde que o armamento seguisse com “as tropas para o manejar”, João Chagas não comentou nem o pedido francês nem o auxílio português.
O mesmo Freire de Andrade que se disponibilizou a ceder as armas e os homens - e se Portugal o fizesse tornava-se beligerante – tardou na comunicação do pedido francês a Londres, indubitavelmente porque o ministro da Guerra, general Pereira de Eça, entendeu que, no exército, produziria a mais penosa impressão ir só artilharia e serem menos apreciadas as outras armas”. O governo inglês apoiava o envio de artilharia para a França e Portugal desejava que o pedido de auxílio fosse feito pela Inglaterra nos termos da aliança.
A exigência de Pereira de Eça transformou a hipótese de compra de armamento num pedido de auxílio, que se traduzia no empréstimo das peças de artilharia. O pedido francês “e a sequela diplomática que culmina com o pedido inglês constituiriam para Portugal a primeira possibilidade de alteração do seu estatuto internacional. Tornar-se-ão pretexto para luta entre as estratégias radical e moderada, ao nível da política interna e originarão a primeira tentativa de pôr fim à neutralidade e às primeiras hesitações da beligerância”.
Onde estava João Chagas enquanto esta situação se desenrolava? Regressara a França, convicto de que Portugal entraria, brevemente, em Guerra. Em que apoiava o embaixador, radicalmente intervencionista, esta convicção? Estamos em crer que a fé de João Chagas residiria no facto de ter acordado, com o ministro da França em Lisboa, a estratégia para a participação de Portugal na Guerra, a qual partiria do pedido de armamento ao governo da República portuguesa.
Entre o pedido de auxílio francês, a organização do Corpo Expedicionário Português, as negociações com a Inglaterra no âmbito da aliança e a entrada efectiva de Portugal na guerra decorreu cerca de um ano e meio. Portugal só se tornou beligerante, como é sabido, após a declaração de guerra da Alemanha. O nosso destino na guerra das trincheiras também já é sobejamente conhecido.
4. O intelectual fiel aos ideais maçónicos
Feita a Guerra, havia que fazer o rescaldo. Para Portugal, este rescaldo foi dramático, deixando registadas nos anais perdas humanas, materiais e morais. Para João Chagas só a Conferência da Paz nos podia salvar da tempestade trazida pela guerra. Assim, em Janeiro de 1919, Portugal entrou na Sala dos Espelhos do Palácio de Versalhes, como um dos 70 delegados das 32 nações vencedoras que, durante os meses seguintes, iriam redigir o Tratado de Paz.
Cheio de sonhos e de ilusões, Portugal entrou com um punhado de exigências e saiu quase de mãos a abanar. Salvámos a nossa integridade colonial. Mas foi tudo. Em Portugal, instaurou-se o clima propício para os eurocépticos defenderem o destino brasileiro e africano do país. Insatisfeitos com os resultados da Conferência da Paz, a economia destruída pela guerra e as perdas humanas presentes na memória, os portugueses defenderam então a não intromissão de Portugal na Sociedade das Nações.
João Chagas, mais uma vez, não receou ouvir a voz da sua consciência. Já integrara a Delegação Portuguesa à Conferência da Paz presidida por Afonso Costa e voltou a juntar-se-lhe na Sociedade das Nações. O entendimento do nosso diplomata em Paris era simples: tínhamos sido derrotados na guerra e esquecidos na Paz, por isso tínhamos a obrigação de ir à procura do prestígio entre as nações.
Mas também aí nos escapou a glória tão ambicionada por João Chagas para Portugal. Para a História, acabou por ficar a memória de um Portugal injustiçado (no momento da partilha dos benefícios de Guerra) mas, em certa medida, co-responsável por essa injustiça. Quer por ter avaliado incorrectamente a “correlação entre os objectivos e os meios”,
quer também por à “ambição e largueza de vistas” do projecto intervencionista de João Chagas (e de outros intervencionistas) não ter correspondido o sentimento de unidade nacional que Portugal deveria ter conquistado em face do perigo comum que se avizinhava com a Guerra.
João Chagas sobressai, como referiu Alfredo Pimenta, como “um historiador que tem a felicidade de se encontrar dentro da história e a interroga”. Um republicano para quem os partidos não interessavam e para quem, em primeiro lugar, estava a República, sinónimo de pátria e de nação.
João Chagas era um intelectual que ousou, mais que uma vez, procurar o aperfeiçoamento da República. Há nele uma espécie de diálogo a quatro - o jornalista, o escritor, o político e o diplomata. Deste diálogo sobressai o homem, fiel aos princípios maçónicos, sempre em busca da clarificação das linhas iniciáticas e da revelação dos segredos que permitiriam a Portugal agigantar-se e transcender.