Com um abraço apertado de gratidão para o Amadeu Gonçalves
Em 17 de Abril de 1879 Bernardino Machado é nomeado Lente Catedrático da Universidade de Coimbra |
A ACADEMIA DE COIMBRA[1]
A Academia de
Coimbra foi sempre avançada. E hoje, pesar da sedução dos sucessivos feriados e
das intimidades à pranchada e a tiro pelos processos da Rússia autocrática, o
facto é é, justiça se lhe faça, que ninguém pode em verdade dizer que ela seja
monárquica. Nem lhe estava na natureza! Mas, salvo raras intermitências, em que
por momentos relampejou de novo a sua antiga ombridade – e ninguém mãos do que
eu lho deve reconhecer –, o que ela nos últimos tempos sentimentalmente tem
sido, é de um apagado indiferentismo às sugestões valorosas da vida social.
Quantos dos
seus membros se tirariam galhardamente da forte entalação em que se viu
Gonçalves Crespo – como ele então me escrevia e já o contou Teixeira de Queirós
– estando a banhos em Aljustrel, o pároco da freguesia, que o hospedara n
residência, lhe pediu instantemente para a sua gazeta oposicionista um artigo
de fundo teso! De fundo! Se ele ignorava profundamente os emaranhados negócios
da governança, ao ponto de nem saber sequer quem eram os revoltantes estadistas
que tanto irritavam a opinião pública na pessoa do bizarro anfitrião e belicoso
pastor de almas! Mas Crespo era Crespo; e saiu-se do apuro com uma brava
catilinária, do meio de cujas ardentes prosopopeias esfusiava repetidamente,
como um estribilho de morte, esta apóstrofe solene: Mais moralidade, senhor
ministro do reino! O entusiasmo faccioso do abade ia amolgando com um abraço
excessivamente apertado s costelas do seu flamante neófito político.
É certo que a
indiferença da academia não é apática. Raros são felizmente os exemplares como
certo quintanista que, aqui há poucos anos, assegurava com a mais ingénua
inocência a sua risonha confiança no futuro, porque de dois tios que
ditosamente possuía, um influente regenerador, outro trunfo progressista,
qualquer deles com certeza o havia de nomear administrador do concelho, logo
após a sua formatura. Raros terão este calibre. E, se não faltam rapazes que,
durante o seu curso universitário, de cerviz abatida, se preocupam demais com o
diploma e com a carreira e de menos com os princípios e com a causa pública,
alguns mesmo, já em tão tenros anos, aspirantes oficiais a ministros,
esboçando, ou antes, caricaturando, até nas maneiras e no penteado, os altos
dignatários a cuja imagem se vão compondo gravemente, esses tais, por muito que
acentuem um tipo antipático e odioso de bacharel, não passam, ainda assim, duma
diminuta minoria. A maior parte dos indiferentes são-no por distracção da
idade. A cada geração nova, a alma enflora-se de todas as virtudes atávicas da
nossa gente com uma efervescência tumultuária: a camaradagem, o amor, o prazer
de viver arrebatam-na. E nada mais encantador do que o lirismo juvenil! Mas,
ai! em Coimbra, longe dos pais, longe das irmãs, em meio de tantas solicitações
degradantes, que de vezes o amor se não corrompe e dissolve no prostíbulo, a
camaradagem no jogo e o prazer na embriaguez!
Que precisa,
pois, a nossa mocidade académica? Dar às suas generosas paixões toda a elevação
moral. E, para isso, primeiro disciplinar-se, governar-se.
Uma única
forma de governo lhe convém. A experiência comparada das instituições há muito
que está feita em Coimbra.
Aí têm, lado a lado, a monarquia dos estudantes governados
por um professor ou por um clérigo, e a república presidida por um veterano
eleito. Qual dos dois regimes é a ordem, o estudo? Respondam os fastos
académicos. São lendárias, tradicionais, ainda dos nossos dias, as insurreições
dentro das monarquias. Sempre que o monarca tenta coarctar a liberdade,
aferrolhando à noite a porta da casa, guerra à ditadura! o povo, amotinado,
reivindica os seus direitos de personalidade, saltando pelas janelas. Depois, é
uma emigração constante das monarquias para as repúblicas. Os grandes, os
famosos centros de cavaco e discussão foram sempre absolutamente livres. A
república é a vida, a alegria, a paz, e ainda, por mais que pareça inverosímil
em rapazes, a economia, a subordinação. Entre os meus contemporâneos, houve ministros
da fazenda académica que conquistaram brilhantes reputações financeiras. O
pouco que se gastava, por exemplo, numa república de amigos meus da rua da
Trindade, de que aliás eram comensais alguns dos melhores e mais pantagruélicos
estômagos da academia, tornou-se tão prodigioso, que só o explicávamos pelas
artes mágicas da velha servente sr.ª Teresa, que eu, anos depois, visitando
Coimbra e o hospital da Universidade, fui encontrar, quase expirante, sobre a
sua enxerga, com a mesma serenidade, o mesmo doce sorriso celestial, com que
punha na mesa mais um talher para a ceia, à minha chegada a casa de seus anos.
Santa mulher! Ali sozinha! esquecida! E a república académica já tem feito
também as suas provas de que garante igualmente, com a liberdade, a autoridade.
Só mesmo com ela há verdadeiro governo de força. Discute-se, mas obedece-se.
Lembro-me de quando às vivas reclamações do meu companheiro Carlos Lobo de
Ávila, que pretendia café todos os dias ao jantar – e note-se que ele tinha,
por si, como presumirão, um forte partido, e já então manifestava um grande
talento para captar os próprios adversários – ,eu, que, como governo, devia
aplicar a lei, respondia da cabeceira da mesa, severamente: Só às quintas e
domingos! E ele, resignado… ia tomá-lo lá fora. Mais tarde, quando quis fazer
outro tanto, como ministro da nação, deitou-me o mesmo Carlos Lobo de Ávila
abaixo do poder. Vejam a diferença!
O programa do
governo académico é evidentemente a instrução.
A academia tem
de difundir no seu seio esta instrução que só as Universidade exclusivamente
possuem a virtude de ministrar, a livre instrução geral que tanta plasticidade
e agudeza dá ao engenho dos seus alunos. Noutras escolas superiores pode o
estudante formar-se proficientemente também em qualquer especialidade, mas esta
radiosa fecundação intelectual falta-lhes; e por isso há muito que pugno pela
integração dos estudos na Universidade de Coimbra e pela reunião dos altos
estudos de Lisboa e do Porto em centros universitários.
O que assim
mutuamente se aprende nessa feliz quadra da vida em que se está sempre ansiando
por saber tudo! Eu, a literatura, bebia-a todos os dias na Castália dos
parnasianos da Folha, no gabinete do
nosso popular Crespo, que, por sinal, tinha o requintado escrúpulo artístico de
sujeitar os seus versos novos a serem lidos de alto logo à primeira por um
profano como eu. O quarto de Junqueiro, hoje pontífice máximo das letras, era
também um tabernáculo da minha particular devoção. Foi lá que, um Inverno, que
a geada caía em flocos cá fora, nós mal sentimos os seus rigores, abraçados
pelas chamas o teatro de Hugo. E, assim como para Victor Hugo tive Junqueiro,
ainda pude ter António Cândido para Castelar. José Frederico Laranja lia-me em
Platão e em Xenofonte os diálogos de Sócrates, averbando-me de sofista, quando
eu irreverentemente objectasse. E era ele também que, palpitante de esperanças
redentoras, me recitava o verbo cordial do socialismo tanto no positivista
Saint Simon como no utópico Fourier. Proudhon, ouvi-o ainda antes, sobretudo
nos trechos mais contundentes, a Marçal Pacheco, que, dizendo-se o vingador
duma série infinita de proletários espoliados, seus ascendentes, afiava as
armas de polemista para o áspero strugle
for life. Com Alves da Veiga discuti gravíssimos problemas filosóficos e
sociais. E eu mesmo ajudei várias vezes insignes jurisconsultos futuros, em
conjuntura de ato de exame, a argumentarem os seus pontos; até, para meu eterno
desvanecimento, corria entre eles com apreço ousada interpretação heterodoxa do
artigo do código civil em que eu, rebelde naturalista, me abalançara a
dissentir do consagrado comentário do sr. José Dias Ferreira. Aqui têm como
entrei pelo direito, e, quase diria, como já então me preparava para as
revoltas republicanas.
Esta comunhão
intelectual da academia faz-se por toda a parte, mesmo ao ar livre, às vezes
até melhor. Correia Barata, o talentoso propagandista do darwinismo,
demonstrava-nos a origem simiana do homem, dependurado, à noite, dos galhos das
árvores da alameda da Universidade. E para este choque e transmissão de ideias
contribuem todos os alunos, desde os médicos mais materializantes até aos mais
sobrenaturalistas teólogos. Advertirei mesmo: os teólogos são preciosos.
Esgrimindo com eles, com a sua pertinaz escolástica, vão os outros temperando a
razão para rebater todos os assaltos da heresia. E é prudente não esquecer que
no fundo atávico do homem moderno, em meio da selva escura de sobrevivências
supersticiosas por ar~rancar, subsiste ainda hoje, sempre, mais ou menos, dentro
de cada um de nós, de silogismo engatilhado, um teólogo. Ao meu curso, fez-nos
um incalculável bem a companhia de António Maria de Sena, que vinha para as
ciências naturais, já bacharel em teologia, ao tempo do formidável dialéctico
P. Albino, apercebido portanto com todos os petrechos para a atacar.
As leituras,
palestras e distracções da mocidade influem por toda a vida; e só elas explicam
certos aspectos picantes da idade madura. O socialismo cósmico por que
ultimamente se manifestou o génio de Guerra Junqueiro, não me surpreendeu a
mim, com quem ela aqui trocara o seu exemplar – Da Inteligência – de Taine pela obra de Maury sobre as correntes
marítimas que eu possuía. Ao partir de Coimbra, formado, ele metia nos seus
baús mais volumes de leis físicas do que de leis humanas. Quem lê as páginas
florentinas de Augusto Fuschini, e o vê dissertando de arte e presidindo à
reconstrução da Sé de Lisboa, desconhece provavelmente que ele tinha sobre a
banca de José Falcão, de quem era companheiro de casa, ali aberto desde o tempo
de Antero de Quental, o Quinet, e que, ao passo que em estudante se aguerria
contra o conde de Ávila com o panfleto As
Conferências do casino e a Reacção, manuseava estudiosamente as memórias de
Mouzinho e de Murphy sobre a Batalha. Eduardo Alves de Sá, que, além do
causídico que todos sabem, pinta delicadamente – pai desse sonhador rapaz que,
ainda há pouco, atravessava a cidade, embuçado, levando misteriosamente sob a
capa o pincel e a paleta –, entretinha-se nas vésperas de feriado a folhear
embevecidamente as grandes edições ilustradas.
Até a linha, a
cor, a música da palavra estão geralmente denunciando o antigo universitário, o
filho desta nossa Universidade, que conjuntamente mantém as tradições e opera
as revoluções literárias. A elegância de dicção de Júlio de Vilhena é dum
incorrigível cultor das musas, que poetou impunemente nas barbas dos seus
lentes. A eloquência de Hintze Ribeiro ainda agora me soa um tanto à
predilecção da sua mocidade por Filinto Elísio.
Por vezes
sucede que estas influências recíprocas de Faculdade para Faculdade, duns para
outros estudos, não se limitam a dar enlevo e horizonte à especialização da
aula, tornam-se predominantes, são elas que estimulam e acalentam no aluno a
sua verdadeira especialidade, que desenvolvem e fazem vingar a sua vocação
original. A aula então passa para o segundo plano, quando mesmo não desaparece.
Vejam Teixeira de Queirós. Estudante laureado pelos seus professores; mas o
principal do seu labor académico foi a Comédia
do Campo, que ele timidamente submetia ao julgamento magistral de João
Penha. Multipliquem-lha pelo seu curso de medicina, e terão em gérmen o Bento
Moreno todo. Exemplo da segunda espécie, o contista Alberto Braga, que nunca
deu uma falta nas suas aulas livres, donde saiu com brilhantes informações de
conversador, e que com igual regularidade perdeu todos os anos nas aulas
oficiais, sem embargo de toques de cabra e de bedéis.
Um ramo de
instrução reclama instantemente os cuidados da academia. É a instrução
industrial geral que nos avigora para a acção – seja para um serviço comum,
seja para um arriscado lance –, a que se dá o nome de exercícios físicos, de
desportos. Os nossos rapazes necessitam de passear mais, de ir em excursões por
aí fora, a ver as nossas paisagens, a
visitar os nossos monumentos. E passem todos algumas horas da semana
pela arena da cerca de Sant`Ana, onde já consegui, em cada um dos últimos anos,
que um grupo de estudantes de mais iniciativa lhes desse o esforçado exemplo.
Estão na idade do movimento, dos arrojos: não a desaproveitem. Não basta para a
nossa dignidade humana erguermo-nos na atitude erecta, devemos sustentar-nos
nela. Exercitando a sua coragem nas lutas atléticas contra as forças físicas,
ir-se-ão enrijando para as outras. O servilismo covarde dos chamados dirigentes
em Portugal é em grande parte muscular. Se não fazem nada!
Uma instrução
assim, que é logo convivência, união, é profundamente educadora, humanista.
Cria esta religião de afectos que resiste a todas as colisões da vida entre
antigos condiscípulos e camaradas de aula, nivela ricos e pobres, ponde acima
da fortuna a intrepidez o desprendimento, e não dá só plasticidade e agudeza às
inteligências, dá tolerância e assimilação, irmana os homens pelos princípios,
pelo dever. Aprender a dar razão aos outros é aprender a repartir com eles o
poder. Quem sacrifica o individualismo egoísta duma ideia falsa, esse é capaz
de todos os mais sacrifícios. Ao contrário, as pessoas que não ouvem ninguém,
que não discutem e quebram as arestas das suas opiniões com ninguém, são sempre
uns déspotas. Por mais talento que eles tenham, desconfiem sempre dos
solitários orgulhosos que vagueiam na sombra absorvidos pela gestação dos seus
planos interiores. Quando vêm á sociedade, é, quase certo, para a acomoter.
As aulas
oficiais, como ainda as há (felizmente cada vez menos), com a sua opressão de
lições a dedo, em obediência ao programa fatal, sobrecarregam tanto os que na
mais louvável intenção se lhes dedicam, que os sequestram e isolam. Por isso
ainda alguns premiados, no seu forçoso afastamento, coitados! parecem, se muito
inteligentes, uns oligarcas, se pouco, uns escravos. E os cábulas são
frequentemente os estudantes mais amados, mais cotados. Se eles quisessem
estudar! proclamam admirativamente os condiscípulos. Pois estavam talvez
perdidos. Para resistir ao arcaico regime mental dessas aulas, estudando, horas
e horas, por dia, passivamente, só organizações privilegiadas. E os cábulas não
atraem somente, porque fazem o efeito de espíritos mais liberais, de seres mais
livres, mas muitos deles realmente porque o merecem, porque são eles os que
mais se dão. Deixou Coimbra no fim do derradeiro ano lectivo um, que ficou
célebre. Porquê? Pelas suas folias? Talvez ele próprio o pensasse, quando delas
fez crónica, levando as anedotas deste pequeno meio, onde nos sorrimos delas
inofensivamente, familiarmente, porque todos sabemos o estro inventivo donde
brotaram em desforço jovial de pesadas solenidades, lá para fora, para onde,
longe da fabulação originária, a maledicência pública pode fazer delas temas de
libelo para doestos e censuras a professores e a discípulos. Não! não foi pelas
suas folias que ele se notabilizou. Algumas doeram mesmo aos que mais lhe
queriam. Não! Foi pela sua efusiva emotividade, porque nunca se pertenceu só a
si e esteve sempre pronto a arranchar alegremente com todos que procuravam
mitigar com ele a sede de sociabilidade que nos devora sobretudo na juventude.
Foi por isso; e por isso muito lhe deve ser perdoado dos desmandos da sua boémia
académica. E, de resto, ainda que ele aparente que não, vê-se que aproveitou a
sua Universidade. O seu livro é a revelação dum prosador.
Meus amigos,
estreitem cada vez mais os seus vínculos morais. Devotem-se à sua Sociedade
filantrópico-académica, que é um título de honra para o seu coração;
acrescentem à assistência a previdência, constituindo uma cooperativa de
consumo e fundando um cofre de socorros mútuos para quando enfermos; e promovam
por todos os meios a recontrução do seu antigo solar, onde prossiga amplamente
o debate, quase de todo suspenso, que deve preceder a eleição dos seus corpos
gerentes, dos seus governantes.
Grande escola
a vida académcia! Ela supre as lacunas do ensino oficial. As suas faculdades
não são só as mais frequentadas, produzem. Quando se diz escola de Coimbra, é
quase sempre dela que se fala. Ela é sobretudo uma iniciação moral, uma escola
de governo livre. Mas cada geração nova que vem sentar-se nas bancadas
escolares, não se segrega por isso da sociedade, da nação.
Tem logo a
representar-lha os seus mestres. A academia de Coimbra é uma colónia que a
metrópole portuguesa confia à direcção do corpo docente. Zele, pois, a sua
autonomia; mas não leve o ciúme da sua independência até ao excesso de olhar
com desconfiança e hostilidade o professor, a autoridade representante da mãe
pátria. Ser livre não é ser esquivo e fugaz. Não se deixem arrastar por um
anarquismo paradoxal, que não é senão dissociação, atomismo. O sentido léxico
do termo confunde. A sociedade não caminha para a abolição do governo. Desde o
tribunal arbitral entre o patrão e o operário até ao tribunal arbitral entre as
nações, é por toda a parte a mesma aspiração, a mesma ânsia de justiça, de
governo. Não se trata de suprimir a autoridade, mas o arbítrio pessoal.
Implantar o governo directo comum de todos só é anarquismo, porque é acabar com
a usurpação do governo exclusivo dum ou de alguns. Só esse anarquismo
queiramos, que só esse é legítimo.
Não renunciem
nunca às franquias do seu pensamento. Sejam briosos com os seus professores,
não os cortejem, não os adulem; mas não os evitem, não suspeitem em cada um
deles sempre o déspota intratável. Bem sei que a separação entre o professor e
o aluno vem tradicionalmente do velho dogmatismo catedrático, mas os tempos
mudaram e com os tempos os professores, hoje mesmo alguns com rostos tão
imberbes que lhes falta o físico para tais prosápias autoritárias; e, se essa
separação excepcionalmente persiste, não a agrave, não a encarnice por sua
parte o aluno! Quantas vezes ainda com o estudante que se forma, se forma o
inimigo da Universidade! Não pode ser, não deve ser mais assim! Como os rapazes
se enganam e são injustos com os seus mestres, viu-se outro dia tragicamente,
tremendamente. Procurem-nos sem falso pudor de independência, vão para eles,
forcem candidamente a sua intimidade, falem-lhes, discutam com eles
desassombradamente como em casa com os seus pais e com os seus irmãos mais
velhos, desenruguem-lhes a rispidez, comuniquem-lhes a sua vida e o seu calor,
conquistem-nos.
Todo o
estudante havia de deixar na Universidade, a lembrá-lo e a atraí-lo para ela,
como um anel de noivado intelectual, as doiradas primícias das suas
lucubrações, sempre fúlgidas de esperança dos mais nobres destinos. A obra do
professor deve ser em grande parte a dos discípulos. Nem ele pode fazer melhor
publicação do que a dos seus talentos e aproveitamento. Contribua cada aluno
para essa obra com uma parcela, uma centelha, um reflexo do seu espírito, seja
com o que for, uma preparação, um desenho, uma observação, um ponto de vista,
uma frase, um dito original ou pitoresco qualquer. Tudo serve. Tudo deve o
professor entesoirar com o mesmo amor e o mesmo orgulho com que o pai anota e
exalta as louçanias dos seus filhos. O meu querido mestre de química, dr.
Albino Giraldes, reuniu assim ternamente na sua memória sobre isómeros a
colaboração de dois distintíssimos discípulos, Alfredo Lisboa e Rodrigues
Viana, ambos brasileiros, que foram dos melhores, mais inteligentes e
instruídos, mais modestos e dedicados, estudantes do meu tempo.
O mal, na
Universidade como no país, não provém tanto dos homens como do regime. Urge
reformar radicalmente a legislação do ensino universitário. Mas reformas,
inovações, mal se podem fazer, nem quase se compreendem, sem o dispêndio
ardente do sangue impetuoso da mocidade. Cooperem para elas os alunos com os
professores. E, se os professores se não apressarem a reclamá-las e
promovê-las, incitem-nos, acoroçoem-nos
os alunos com todo o ardor da sua fé e do seu entusiasmo. Foi a nossa
mocidade académica, foram até os seus teólogos, que, não há muito tempo, saindo
à estacada, repeliram a tentativa feita em cortes para a invasão legal da
igreja católica lusitana por diplomas de teologia passados em Roma. E foi em ela, em massa,
e quase só ela, que, recentemente, pela minha voz, na conferência que a seu
convite fiz no Instituto de Coimbra, protestou contra a injúria ditatorial e
contra a farragem pretenciosa da última reforma universitária. Honra lhe seja!
Nada do que
importa à Universidade, é estranho e pode ser indiferente aos seus alunos; e o
seu estatuto dos estudos diz-lhes directamente respeito. Reformas há mesmo por
que ninguém mais competente para representar do que eles. Uma lhes apontarei.
Qual é o que se não sentirá vexado na sua dignidade pelo preceito legal que lhe
põe todos os dias defronte, policialmente, a velar pela exactidão do seu
estudo, de interrogatório desembainhado o seu professor? Pois este exame
contínuo, impertinente, sempre suspenso sobre a sua cabeça, sobre a honradez e
a delicadeza da sua consciência, não lhes pesa e não os irrita como uma
suspeição e uma afronta? Não se revoltem por isso contra a aula e contra o
professor; mas reclamem energicamente a reforma da lei. Afirmem com altivez aos
nossos governantes que não estão aqui para fazer um curso estratégico de
ociosidade em guerra acesa com os seus mestres, que sabem muito bem que estão
para estudar, para colaborar intimamente com eles pelo progresso da ciência e
da nação. Uma Universidade não é precisamente uma escola de correcção de
vadios.
O povo
académico tem afinal sempre ao seu dispor um último recurso contra os
regulamentos e rituais importunos e deprimentes: é não os cumprir. E está claro
que usa dele. Até abusa, o que não admira, porque desse recurso é realmente
muitas vezes difícil usar bem. Eu não lho posso aconselhar e aplaudir
cegamente; contudo, não posso tão pouco reprovar-lho redondamente, em princípio. Há uma
desobediência legítima. Mal da lei escrita, se ela briga com a lei moral! E há
um inalienável direito soberano de legislatura, que pertence a toda a gente.
Quando uma lei é má, em regra não se substitui logo por outra, não são só os
parlamentos que a revogam, são quase sempre os costumes que antecipadamente a
vão dissolvendo, obliterando, derogando, de tal modo que, pouco a pouco, pelo
seu antagonismo com o espírito público, com a razão, não há já autoridade para
a aplicar sem violência, até sem ridículo. Temos assim abolidas de facto várias
disposições do nosso código penal, e outras leis e instituições vão assim
morrendo na alma da nação.
Por este meio
está a academia fazendo a execução do seu uniforme histórico. Já no meu tempo
se dava rebate contra ele pela exibição sediciosa de altos colarinhos
reluzentes e longos punhos brancos esticados; e havia muito que o traje do
estudante deixara de se confundir com o do padre ou o do seminarista. Não era
só outro ar, outra desenvoltura da capa e petulância do gorro; a própria batina
se modificara, abrindo-se rasgadamente de frente às exigências da civilização.
E hoje quantos ramos de violetas, quantas gravatas escarlates, quantos coletes
vistosos e mirabolantes não rompem aí em som de guerra, como gritos de protesto
e revolta, dentre as negras vestes! Que reitor, que conselho de decanos há-de
seriamente impor condenação por tais delitos? E o caso é muito mais grave do
que à primeira vista parece, porque se não trata apenas de meras infracções ao
rigor da pragmática; a própria existência do uniforme legal, a academia, de
cabeça descoberta e capa já dobrada sobre o ombro, põe em crise. Mas que fazer?
Como restabelecer o cumprimento e o prestígio da lei? O dr. Daniel de Matos e
os seus colegas da Faculdade de Medicina proscrevem-na em nome da higiene. A
moderna pedagogia refuta-a como um erro psicológico da velha escola mística
medieval, que, para concentrar o aluno nas profundezas da meditação, assim como
lhe tolhia os movimentos, obrigando-o a estar sentado e silencioso horas
seguidas nas aulas, assim também, para o desviar da sensações, tudo fechava e
ensombrava em volta dele, enegrecendo-lhe as carteiras e os bancos da aula e
vestindo-o de luto. Movimentos, sensações eram distracções perigosas do
espírito. Para pensar, o homem tinha de se amputar, de se mortificar. Quem
entende hoje assim a educação? Soa a reacção negra. Para um rapaz desenvolver a
sua inteligência, hoje entende-se necessário que exercite harmonicamente todas
as suas forças e faculdades. Estudar é viver. A aula deve ser como a vida,
activa e livre; e a capa e a batina é mortuária, não só nos apaga e rouba aos
olhos a luz do céu, mas ainda nos ata e envencilha os braços que queremos cada
vez mais desembaraçados para a nossa acção sobre a terra. Reforme-se, pois, o
traje académico! Não esqueçam, porém, na sua campanha demolidora, que o
passado, da indumentária que seja, tem foros ao culto e á piedade dos novos, e
que, no seu antigo uniforme corporativo, na dramatização romântica da capa e
batina, há linhas decorativas, há tradições a respeitar. E vejam se fazem a
reforma, sem até lá ferirem com as suas revindicações a estética e o coração
dos velhos como eu.
Meus senhores!
Os estudantes da Academia de Coimbra não são só membros da cidade
universitária, são também cidadãos da nação. Têm deveres para com ela, para com
todos os seus concidadãos, a começar logo por aqueles que, nesta hospitaleira
Coimbra, aqui ao pé labutam para os ajudar diuturnamente nas suas lides. São
solidários com a pátria. São seus soldados!
Têm deveres
mesmo muito grandes, porque são ricos. Ainda os que não são ricos de dinheiro,
possuem a mocidade e o vigor, os talentos e a instrução, inestimáveis bens. Não
os dissipem! Não convertam essas forças de vida em armas de ataque contra
ninguém, e, cautela! não maltratem, não pisem nunca com elas os humildes, os fracos!
Não abusem dos atractivos da sua gentileza; não atraiçoem a confiança que
inspirem nos seus contratos; não espalhem em volta de si os aristocráticos
desdéns intelectuais de quem se julga, por direito divino, senhor das ideias,
do saber. Nada de despotismo! Nem a paixão do estudo levem até ao olvido sequer
dos outros, sobretudo dos que por seu amor mais trabalham e penam. Formem-se,
não se alienem! Saber é, antes de mais nada, saber amar. O egoísmo da
felicidade espiritual, seja nesta vida, seja noutra, é sempre desumano, até
para com o próprio egoísta. Tornem-se dignos dos bens que possuem,
repartindo-os, desveladamente e modestamente, como uma obrigação, por todos os
necessitados. Dêem-lhes mais que tudo do seu pão do espírito, em conferências, em palestras, em leituras; e, quando não
puderem dar-lhes mais nada, dêem-lhes a sua alegria, o seu afecto, o seu
sorriso. É o que frequentemente ainda mais falta lhes faz. Há um direito dos
pobres que as novas gerações têm de proclamar desde as aulas pelos seus actos. Sursum corda!
E, quando,
pela experiência dos seus esforços, conhecerem e sentirem o que custa hoje
entre nós a cumprir o dever, e como tudo que individual ou mesmo
corporativamente se faça, dentro do actual regime, é tudo pouco e, a reveses,
ineficaz para acudir à enorme miséria, como ao nosso rijo povo, ao nosso
inteligente, activo e bom povo, hoje é difícil viver e quase impossível pensar,
trabalhar, amar, formulem nitidamente na sua consciência esta pergunta: Quem
são os autores, os culpados de tanta míngua e desconforto? Quem são os
criminosos? E, quando verificarem que a causa de todo o nosso desfalecimento e
ruína, o responsável de todos os nossos vexames e descrédito, de todas as
nossas angústias, é a reacção, a reacção clerical com a sua intolerância, a
reacção financeira com os seus monopólios, e a reacção cesarista com os seus
privilégios, oh! então poupem ainda os homens, que nem dos agravos à sociedade
é lícita a vindita, mas sejam intransigentes, implacáveis com as instituições,
e, tendo forcejado por cumprir todos os seus deveres, assumam com igual decisão
todos os seus direitos, façam como os estudantes russos, comecem também a ser
governantes – que, mesmo onde governam, não governam só ministros, deputados e
eleitores –, chamem aos seus centros e comícios o povo, vão às suas sociedades,
interpelem-no, ralhem filialmente com ele pelos seus desmedidos sacrifícios,
excitem-lhe, descarnem-lhe mesmo a sensibilidade moral, despertem-lhe,
inflamem-lhe os brios cívicos, e intimamente identificados com ele no mesmo
pensamento, nas mesmas aspirações redentoras, ponham-se à sua frente, com o
denodo simples com que Vasco de Quevedo há quatro anos expôs o peito à bala que
o varou, bradando com toda a veemência da indignação: Abaixo as tiranias! E o seu
vibrante grito patriótico irá ressoando heroicamente por todo o país, de
coração em coração, como uma esperança alada de rejuvenescimento, de dias
felizes, de ressurreição da liberdade, de salvação nacional.
Eis, meus
senhores, a nobre missão que eu jubilosamente atribuo ao Centro Académico
Republicano de Coimbra, almejando-lhe um êxito triunfal.
[1]
Bernardino Machado – A Academia de
Coimbra. Coimbra: Typographia França Amado, 1906.
Tb. In: A Universidade de Coimbra. 2.ª ed.
Lisboa: Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908, pp. 199-226.
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