segunda-feira, 13 de julho de 2015



Com um abraço apertado de gratidão para o Amadeu Gonçalves

Em 17 de Abril de 1879
Bernardino Machado é nomeado
 Lente Catedrático
da Universidade de Coimbra

A ACADEMIA DE COIMBRA[1]



A Academia de Coimbra foi sempre avançada. E hoje, pesar da sedução dos sucessivos feriados e das intimidades à pranchada e a tiro pelos processos da Rússia autocrática, o facto é é, justiça se lhe faça, que ninguém pode em verdade dizer que ela seja monárquica. Nem lhe estava na natureza! Mas, salvo raras intermitências, em que por momentos relampejou de novo a sua antiga ombridade – e ninguém mãos do que eu lho deve reconhecer –, o que ela nos últimos tempos sentimentalmente tem sido, é de um apagado indiferentismo às sugestões valorosas da vida social.

Quantos dos seus membros se tirariam galhardamente da forte entalação em que se viu Gonçalves Crespo – como ele então me escrevia e já o contou Teixeira de Queirós – estando a banhos em Aljustrel, o pároco da freguesia, que o hospedara n residência, lhe pediu instantemente para a sua gazeta oposicionista um artigo de fundo teso! De fundo! Se ele ignorava profundamente os emaranhados negócios da governança, ao ponto de nem saber sequer quem eram os revoltantes estadistas que tanto irritavam a opinião pública na pessoa do bizarro anfitrião e belicoso pastor de almas! Mas Crespo era Crespo; e saiu-se do apuro com uma brava catilinária, do meio de cujas ardentes prosopopeias esfusiava repetidamente, como um estribilho de morte, esta apóstrofe solene: Mais moralidade, senhor ministro do reino! O entusiasmo faccioso do abade ia amolgando com um abraço excessivamente apertado s costelas do seu flamante neófito político.
É certo que a indiferença da academia não é apática. Raros são felizmente os exemplares como certo quintanista que, aqui há poucos anos, assegurava com a mais ingénua inocência a sua risonha confiança no futuro, porque de dois tios que ditosamente possuía, um influente regenerador, outro trunfo progressista, qualquer deles com certeza o havia de nomear administrador do concelho, logo após a sua formatura. Raros terão este calibre. E, se não faltam rapazes que, durante o seu curso universitário, de cerviz abatida, se preocupam demais com o diploma e com a carreira e de menos com os princípios e com a causa pública, alguns mesmo, já em tão tenros anos, aspirantes oficiais a ministros, esboçando, ou antes, caricaturando, até nas maneiras e no penteado, os altos dignatários a cuja imagem se vão compondo gravemente, esses tais, por muito que acentuem um tipo antipático e odioso de bacharel, não passam, ainda assim, duma diminuta minoria. A maior parte dos indiferentes são-no por distracção da idade. A cada geração nova, a alma enflora-se de todas as virtudes atávicas da nossa gente com uma efervescência tumultuária: a camaradagem, o amor, o prazer de viver arrebatam-na. E nada mais encantador do que o lirismo juvenil! Mas, ai! em Coimbra, longe dos pais, longe das irmãs, em meio de tantas solicitações degradantes, que de vezes o amor se não corrompe e dissolve no prostíbulo, a camaradagem no jogo e o prazer na embriaguez!

Que precisa, pois, a nossa mocidade académica? Dar às suas generosas paixões toda a elevação moral. E, para isso, primeiro disciplinar-se, governar-se.
Uma única forma de governo lhe convém. A experiência comparada das instituições há muito que está feita em Coimbra. Aí têm, lado a lado, a monarquia dos estudantes governados por um professor ou por um clérigo, e a república presidida por um veterano eleito. Qual dos dois regimes é a ordem, o estudo? Respondam os fastos académicos. São lendárias, tradicionais, ainda dos nossos dias, as insurreições dentro das monarquias. Sempre que o monarca tenta coarctar a liberdade, aferrolhando à noite a porta da casa, guerra à ditadura! o povo, amotinado, reivindica os seus direitos de personalidade, saltando pelas janelas. Depois, é uma emigração constante das monarquias para as repúblicas. Os grandes, os famosos centros de cavaco e discussão foram sempre absolutamente livres. A república é a vida, a alegria, a paz, e ainda, por mais que pareça inverosímil em rapazes, a economia, a subordinação. Entre os meus contemporâneos, houve ministros da fazenda académica que conquistaram brilhantes reputações financeiras. O pouco que se gastava, por exemplo, numa república de amigos meus da rua da Trindade, de que aliás eram comensais alguns dos melhores e mais pantagruélicos estômagos da academia, tornou-se tão prodigioso, que só o explicávamos pelas artes mágicas da velha servente sr.ª Teresa, que eu, anos depois, visitando Coimbra e o hospital da Universidade, fui encontrar, quase expirante, sobre a sua enxerga, com a mesma serenidade, o mesmo doce sorriso celestial, com que punha na mesa mais um talher para a ceia, à minha chegada a casa de seus anos. Santa mulher! Ali sozinha! esquecida! E a república académica já tem feito também as suas provas de que garante igualmente, com a liberdade, a autoridade. Só mesmo com ela há verdadeiro governo de força. Discute-se, mas obedece-se. Lembro-me de quando às vivas reclamações do meu companheiro Carlos Lobo de Ávila, que pretendia café todos os dias ao jantar – e note-se que ele tinha, por si, como presumirão, um forte partido, e já então manifestava um grande talento para captar os próprios adversários – ,eu, que, como governo, devia aplicar a lei, respondia da cabeceira da mesa, severamente: Só às quintas e domingos! E ele, resignado… ia tomá-lo lá fora. Mais tarde, quando quis fazer outro tanto, como ministro da nação, deitou-me o mesmo Carlos Lobo de Ávila abaixo do poder. Vejam a diferença!

O programa do governo académico é evidentemente a instrução.
A academia tem de difundir no seu seio esta instrução que só as Universidade exclusivamente possuem a virtude de ministrar, a livre instrução geral que tanta plasticidade e agudeza dá ao engenho dos seus alunos. Noutras escolas superiores pode o estudante formar-se proficientemente também em qualquer especialidade, mas esta radiosa fecundação intelectual falta-lhes; e por isso há muito que pugno pela integração dos estudos na Universidade de Coimbra e pela reunião dos altos estudos de Lisboa e do Porto em centros universitários.
O que assim mutuamente se aprende nessa feliz quadra da vida em que se está sempre ansiando por saber tudo! Eu, a literatura, bebia-a todos os dias na Castália dos parnasianos da Folha, no gabinete do nosso popular Crespo, que, por sinal, tinha o requintado escrúpulo artístico de sujeitar os seus versos novos a serem lidos de alto logo à primeira por um profano como eu. O quarto de Junqueiro, hoje pontífice máximo das letras, era também um tabernáculo da minha particular devoção. Foi lá que, um Inverno, que a geada caía em flocos cá fora, nós mal sentimos os seus rigores, abraçados pelas chamas o teatro de Hugo. E, assim como para Victor Hugo tive Junqueiro, ainda pude ter António Cândido para Castelar. José Frederico Laranja lia-me em Platão e em Xenofonte os diálogos de Sócrates, averbando-me de sofista, quando eu irreverentemente objectasse. E era ele também que, palpitante de esperanças redentoras, me recitava o verbo cordial do socialismo tanto no positivista Saint Simon como no utópico Fourier. Proudhon, ouvi-o ainda antes, sobretudo nos trechos mais contundentes, a Marçal Pacheco, que, dizendo-se o vingador duma série infinita de proletários espoliados, seus ascendentes, afiava as armas de polemista para o áspero strugle for life. Com Alves da Veiga discuti gravíssimos problemas filosóficos e sociais. E eu mesmo ajudei várias vezes insignes jurisconsultos futuros, em conjuntura de ato de exame, a argumentarem os seus pontos; até, para meu eterno desvanecimento, corria entre eles com apreço ousada interpretação heterodoxa do artigo do código civil em que eu, rebelde naturalista, me abalançara a dissentir do consagrado comentário do sr. José Dias Ferreira. Aqui têm como entrei pelo direito, e, quase diria, como já então me preparava para as revoltas republicanas.
Esta comunhão intelectual da academia faz-se por toda a parte, mesmo ao ar livre, às vezes até melhor. Correia Barata, o talentoso propagandista do darwinismo, demonstrava-nos a origem simiana do homem, dependurado, à noite, dos galhos das árvores da alameda da Universidade. E para este choque e transmissão de ideias contribuem todos os alunos, desde os médicos mais materializantes até aos mais sobrenaturalistas teólogos. Advertirei mesmo: os teólogos são preciosos. Esgrimindo com eles, com a sua pertinaz escolástica, vão os outros temperando a razão para rebater todos os assaltos da heresia. E é prudente não esquecer que no fundo atávico do homem moderno, em meio da selva escura de sobrevivências supersticiosas por ar~rancar, subsiste ainda hoje, sempre, mais ou menos, dentro de cada um de nós, de silogismo engatilhado, um teólogo. Ao meu curso, fez-nos um incalculável bem a companhia de António Maria de Sena, que vinha para as ciências naturais, já bacharel em teologia, ao tempo do formidável dialéctico P. Albino, apercebido portanto com todos os petrechos para a atacar.
As leituras, palestras e distracções da mocidade influem por toda a vida; e só elas explicam certos aspectos picantes da idade madura. O socialismo cósmico por que ultimamente se manifestou o génio de Guerra Junqueiro, não me surpreendeu a mim, com quem ela aqui trocara o seu exemplar – Da Inteligência – de Taine pela obra de Maury sobre as correntes marítimas que eu possuía. Ao partir de Coimbra, formado, ele metia nos seus baús mais volumes de leis físicas do que de leis humanas. Quem lê as páginas florentinas de Augusto Fuschini, e o vê dissertando de arte e presidindo à reconstrução da Sé de Lisboa, desconhece provavelmente que ele tinha sobre a banca de José Falcão, de quem era companheiro de casa, ali aberto desde o tempo de Antero de Quental, o Quinet, e que, ao passo que em estudante se aguerria contra o conde de Ávila com o panfleto As Conferências do casino e a Reacção, manuseava estudiosamente as memórias de Mouzinho e de Murphy sobre a Batalha. Eduardo Alves de Sá, que, além do causídico que todos sabem, pinta delicadamente – pai desse sonhador rapaz que, ainda há pouco, atravessava a cidade, embuçado, levando misteriosamente sob a capa o pincel e a paleta –, entretinha-se nas vésperas de feriado a folhear embevecidamente as grandes edições ilustradas.
Até a linha, a cor, a música da palavra estão geralmente denunciando o antigo universitário, o filho desta nossa Universidade, que conjuntamente mantém as tradições e opera as revoluções literárias. A elegância de dicção de Júlio de Vilhena é dum incorrigível cultor das musas, que poetou impunemente nas barbas dos seus lentes. A eloquência de Hintze Ribeiro ainda agora me soa um tanto à predilecção da sua mocidade por Filinto Elísio.
Por vezes sucede que estas influências recíprocas de Faculdade para Faculdade, duns para outros estudos, não se limitam a dar enlevo e horizonte à especialização da aula, tornam-se predominantes, são elas que estimulam e acalentam no aluno a sua verdadeira especialidade, que desenvolvem e fazem vingar a sua vocação original. A aula então passa para o segundo plano, quando mesmo não desaparece. Vejam Teixeira de Queirós. Estudante laureado pelos seus professores; mas o principal do seu labor académico foi a Comédia do Campo, que ele timidamente submetia ao julgamento magistral de João Penha. Multipliquem-lha pelo seu curso de medicina, e terão em gérmen o Bento Moreno todo. Exemplo da segunda espécie, o contista Alberto Braga, que nunca deu uma falta nas suas aulas livres, donde saiu com brilhantes informações de conversador, e que com igual regularidade perdeu todos os anos nas aulas oficiais, sem embargo de toques de cabra e de bedéis.
Um ramo de instrução reclama instantemente os cuidados da academia. É a instrução industrial geral que nos avigora para a acção – seja para um serviço comum, seja para um arriscado lance –, a que se dá o nome de exercícios físicos, de desportos. Os nossos rapazes necessitam de passear mais, de ir em excursões por aí fora, a ver as nossas paisagens, a  visitar os nossos monumentos. E passem todos algumas horas da semana pela arena da cerca de Sant`Ana, onde já consegui, em cada um dos últimos anos, que um grupo de estudantes de mais iniciativa lhes desse o esforçado exemplo. Estão na idade do movimento, dos arrojos: não a desaproveitem. Não basta para a nossa dignidade humana erguermo-nos na atitude erecta, devemos sustentar-nos nela. Exercitando a sua coragem nas lutas atléticas contra as forças físicas, ir-se-ão enrijando para as outras. O servilismo covarde dos chamados dirigentes em Portugal é em grande parte muscular. Se não fazem nada!

Uma instrução assim, que é logo convivência, união, é profundamente educadora, humanista. Cria esta religião de afectos que resiste a todas as colisões da vida entre antigos condiscípulos e camaradas de aula, nivela ricos e pobres, ponde acima da fortuna a intrepidez o desprendimento, e não dá só plasticidade e agudeza às inteligências, dá tolerância e assimilação, irmana os homens pelos princípios, pelo dever. Aprender a dar razão aos outros é aprender a repartir com eles o poder. Quem sacrifica o individualismo egoísta duma ideia falsa, esse é capaz de todos os mais sacrifícios. Ao contrário, as pessoas que não ouvem ninguém, que não discutem e quebram as arestas das suas opiniões com ninguém, são sempre uns déspotas. Por mais talento que eles tenham, desconfiem sempre dos solitários orgulhosos que vagueiam na sombra absorvidos pela gestação dos seus planos interiores. Quando vêm á sociedade, é, quase certo, para a acomoter.
As aulas oficiais, como ainda as há (felizmente cada vez menos), com a sua opressão de lições a dedo, em obediência ao programa fatal, sobrecarregam tanto os que na mais louvável intenção se lhes dedicam, que os sequestram e isolam. Por isso ainda alguns premiados, no seu forçoso afastamento, coitados! parecem, se muito inteligentes, uns oligarcas, se pouco, uns escravos. E os cábulas são frequentemente os estudantes mais amados, mais cotados. Se eles quisessem estudar! proclamam admirativamente os condiscípulos. Pois estavam talvez perdidos. Para resistir ao arcaico regime mental dessas aulas, estudando, horas e horas, por dia, passivamente, só organizações privilegiadas. E os cábulas não atraem somente, porque fazem o efeito de espíritos mais liberais, de seres mais livres, mas muitos deles realmente porque o merecem, porque são eles os que mais se dão. Deixou Coimbra no fim do derradeiro ano lectivo um, que ficou célebre. Porquê? Pelas suas folias? Talvez ele próprio o pensasse, quando delas fez crónica, levando as anedotas deste pequeno meio, onde nos sorrimos delas inofensivamente, familiarmente, porque todos sabemos o estro inventivo donde brotaram em desforço jovial de pesadas solenidades, lá para fora, para onde, longe da fabulação originária, a maledicência pública pode fazer delas temas de libelo para doestos e censuras a professores e a discípulos. Não! não foi pelas suas folias que ele se notabilizou. Algumas doeram mesmo aos que mais lhe queriam. Não! Foi pela sua efusiva emotividade, porque nunca se pertenceu só a si e esteve sempre pronto a arranchar alegremente com todos que procuravam mitigar com ele a sede de sociabilidade que nos devora sobretudo na juventude. Foi por isso; e por isso muito lhe deve ser perdoado dos desmandos da sua boémia académica. E, de resto, ainda que ele aparente que não, vê-se que aproveitou a sua Universidade. O seu livro é a revelação dum prosador.
Meus amigos, estreitem cada vez mais os seus vínculos morais. Devotem-se à sua Sociedade filantrópico-académica, que é um título de honra para o seu coração; acrescentem à assistência a previdência, constituindo uma cooperativa de consumo e fundando um cofre de socorros mútuos para quando enfermos; e promovam por todos os meios a recontrução do seu antigo solar, onde prossiga amplamente o debate, quase de todo suspenso, que deve preceder a eleição dos seus corpos gerentes, dos seus governantes.

Grande escola a vida académcia! Ela supre as lacunas do ensino oficial. As suas faculdades não são só as mais frequentadas, produzem. Quando se diz escola de Coimbra, é quase sempre dela que se fala. Ela é sobretudo uma iniciação moral, uma escola de governo livre. Mas cada geração nova que vem sentar-se nas bancadas escolares, não se segrega por isso da sociedade, da nação.
Tem logo a representar-lha os seus mestres. A academia de Coimbra é uma colónia que a metrópole portuguesa confia à direcção do corpo docente. Zele, pois, a sua autonomia; mas não leve o ciúme da sua independência até ao excesso de olhar com desconfiança e hostilidade o professor, a autoridade representante da mãe pátria. Ser livre não é ser esquivo e fugaz. Não se deixem arrastar por um anarquismo paradoxal, que não é senão dissociação, atomismo. O sentido léxico do termo confunde. A sociedade não caminha para a abolição do governo. Desde o tribunal arbitral entre o patrão e o operário até ao tribunal arbitral entre as nações, é por toda a parte a mesma aspiração, a mesma ânsia de justiça, de governo. Não se trata de suprimir a autoridade, mas o arbítrio pessoal. Implantar o governo directo comum de todos só é anarquismo, porque é acabar com a usurpação do governo exclusivo dum ou de alguns. Só esse anarquismo queiramos, que só esse é legítimo.
Não renunciem nunca às franquias do seu pensamento. Sejam briosos com os seus professores, não os cortejem, não os adulem; mas não os evitem, não suspeitem em cada um deles sempre o déspota intratável. Bem sei que a separação entre o professor e o aluno vem tradicionalmente do velho dogmatismo catedrático, mas os tempos mudaram e com os tempos os professores, hoje mesmo alguns com rostos tão imberbes que lhes falta o físico para tais prosápias autoritárias; e, se essa separação excepcionalmente persiste, não a agrave, não a encarnice por sua parte o aluno! Quantas vezes ainda com o estudante que se forma, se forma o inimigo da Universidade! Não pode ser, não deve ser mais assim! Como os rapazes se enganam e são injustos com os seus mestres, viu-se outro dia tragicamente, tremendamente. Procurem-nos sem falso pudor de independência, vão para eles, forcem candidamente a sua intimidade, falem-lhes, discutam com eles desassombradamente como em casa com os seus pais e com os seus irmãos mais velhos, desenruguem-lhes a rispidez, comuniquem-lhes a sua vida e o seu calor, conquistem-nos.
Todo o estudante havia de deixar na Universidade, a lembrá-lo e a atraí-lo para ela, como um anel de noivado intelectual, as doiradas primícias das suas lucubrações, sempre fúlgidas de esperança dos mais nobres destinos. A obra do professor deve ser em grande parte a dos discípulos. Nem ele pode fazer melhor publicação do que a dos seus talentos e aproveitamento. Contribua cada aluno para essa obra com uma parcela, uma centelha, um reflexo do seu espírito, seja com o que for, uma preparação, um desenho, uma observação, um ponto de vista, uma frase, um dito original ou pitoresco qualquer. Tudo serve. Tudo deve o professor entesoirar com o mesmo amor e o mesmo orgulho com que o pai anota e exalta as louçanias dos seus filhos. O meu querido mestre de química, dr. Albino Giraldes, reuniu assim ternamente na sua memória sobre isómeros a colaboração de dois distintíssimos discípulos, Alfredo Lisboa e Rodrigues Viana, ambos brasileiros, que foram dos melhores, mais inteligentes e instruídos, mais modestos e dedicados, estudantes do meu tempo.
O mal, na Universidade como no país, não provém tanto dos homens como do regime. Urge reformar radicalmente a legislação do ensino universitário. Mas reformas, inovações, mal se podem fazer, nem quase se compreendem, sem o dispêndio ardente do sangue impetuoso da mocidade. Cooperem para elas os alunos com os professores. E, se os professores se não apressarem a reclamá-las e promovê-las, incitem-nos, acoroçoem-nos  os alunos com todo o ardor da sua fé e do seu entusiasmo. Foi a nossa mocidade académica, foram até os seus teólogos, que, não há muito tempo, saindo à estacada, repeliram a tentativa feita em cortes para a invasão legal da igreja católica lusitana por diplomas de teologia passados em Roma. E foi em ela, em massa, e quase só ela, que, recentemente, pela minha voz, na conferência que a seu convite fiz no Instituto de Coimbra, protestou contra a injúria ditatorial e contra a farragem pretenciosa da última reforma universitária. Honra lhe seja!
Nada do que importa à Universidade, é estranho e pode ser indiferente aos seus alunos; e o seu estatuto dos estudos diz-lhes directamente respeito. Reformas há mesmo por que ninguém mais competente para representar do que eles. Uma lhes apontarei. Qual é o que se não sentirá vexado na sua dignidade pelo preceito legal que lhe põe todos os dias defronte, policialmente, a velar pela exactidão do seu estudo, de interrogatório desembainhado o seu professor? Pois este exame contínuo, impertinente, sempre suspenso sobre a sua cabeça, sobre a honradez e a delicadeza da sua consciência, não lhes pesa e não os irrita como uma suspeição e uma afronta? Não se revoltem por isso contra a aula e contra o professor; mas reclamem energicamente a reforma da lei. Afirmem com altivez aos nossos governantes que não estão aqui para fazer um curso estratégico de ociosidade em guerra acesa com os seus mestres, que sabem muito bem que estão para estudar, para colaborar intimamente com eles pelo progresso da ciência e da nação. Uma Universidade não é precisamente uma escola de correcção de vadios.
O povo académico tem afinal sempre ao seu dispor um último recurso contra os regulamentos e rituais importunos e deprimentes: é não os cumprir. E está claro que usa dele. Até abusa, o que não admira, porque desse recurso é realmente muitas vezes difícil usar bem. Eu não lho posso aconselhar e aplaudir cegamente; contudo, não posso tão pouco reprovar-lho redondamente, em princípio. Há uma desobediência legítima. Mal da lei escrita, se ela briga com a lei moral! E há um inalienável direito soberano de legislatura, que pertence a toda a gente. Quando uma lei é má, em regra não se substitui logo por outra, não são só os parlamentos que a revogam, são quase sempre os costumes que antecipadamente a vão dissolvendo, obliterando, derogando, de tal modo que, pouco a pouco, pelo seu antagonismo com o espírito público, com a razão, não há já autoridade para a aplicar sem violência, até sem ridículo. Temos assim abolidas de facto várias disposições do nosso código penal, e outras leis e instituições vão assim morrendo na alma da nação.
Por este meio está a academia fazendo a execução do seu uniforme histórico. Já no meu tempo se dava rebate contra ele pela exibição sediciosa de altos colarinhos reluzentes e longos punhos brancos esticados; e havia muito que o traje do estudante deixara de se confundir com o do padre ou o do seminarista. Não era só outro ar, outra desenvoltura da capa e petulância do gorro; a própria batina se modificara, abrindo-se rasgadamente de frente às exigências da civilização. E hoje quantos ramos de violetas, quantas gravatas escarlates, quantos coletes vistosos e mirabolantes não rompem aí em som de guerra, como gritos de protesto e revolta, dentre as negras vestes! Que reitor, que conselho de decanos há-de seriamente impor condenação por tais delitos? E o caso é muito mais grave do que à primeira vista parece, porque se não trata apenas de meras infracções ao rigor da pragmática; a própria existência do uniforme legal, a academia, de cabeça descoberta e capa já dobrada sobre o ombro, põe em crise. Mas que fazer? Como restabelecer o cumprimento e o prestígio da lei? O dr. Daniel de Matos e os seus colegas da Faculdade de Medicina proscrevem-na em nome da higiene. A moderna pedagogia refuta-a como um erro psicológico da velha escola mística medieval, que, para concentrar o aluno nas profundezas da meditação, assim como lhe tolhia os movimentos, obrigando-o a estar sentado e silencioso horas seguidas nas aulas, assim também, para o desviar da sensações, tudo fechava e ensombrava em volta dele, enegrecendo-lhe as carteiras e os bancos da aula e vestindo-o de luto. Movimentos, sensações eram distracções perigosas do espírito. Para pensar, o homem tinha de se amputar, de se mortificar. Quem entende hoje assim a educação? Soa a reacção negra. Para um rapaz desenvolver a sua inteligência, hoje entende-se necessário que exercite harmonicamente todas as suas forças e faculdades. Estudar é viver. A aula deve ser como a vida, activa e livre; e a capa e a batina é mortuária, não só nos apaga e rouba aos olhos a luz do céu, mas ainda nos ata e envencilha os braços que queremos cada vez mais desembaraçados para a nossa acção sobre a terra. Reforme-se, pois, o traje académico! Não esqueçam, porém, na sua campanha demolidora, que o passado, da indumentária que seja, tem foros ao culto e á piedade dos novos, e que, no seu antigo uniforme corporativo, na dramatização romântica da capa e batina, há linhas decorativas, há tradições a respeitar. E vejam se fazem a reforma, sem até lá ferirem com as suas revindicações a estética e o coração dos velhos como eu.

Meus senhores! Os estudantes da Academia de Coimbra não são só membros da cidade universitária, são também cidadãos da nação. Têm deveres para com ela, para com todos os seus concidadãos, a começar logo por aqueles que, nesta hospitaleira Coimbra, aqui ao pé labutam para os ajudar diuturnamente nas suas lides. São solidários com a pátria. São seus soldados!
Têm deveres mesmo muito grandes, porque são ricos. Ainda os que não são ricos de dinheiro, possuem a mocidade e o vigor, os talentos e a instrução, inestimáveis bens. Não os dissipem! Não convertam essas forças de vida em armas de ataque contra ninguém, e, cautela! não maltratem, não pisem nunca com elas os humildes, os fracos! Não abusem dos atractivos da sua gentileza; não atraiçoem a confiança que inspirem nos seus contratos; não espalhem em volta de si os aristocráticos desdéns intelectuais de quem se julga, por direito divino, senhor das ideias, do saber. Nada de despotismo! Nem a paixão do estudo levem até ao olvido sequer dos outros, sobretudo dos que por seu amor mais trabalham e penam. Formem-se, não se alienem! Saber é, antes de mais nada, saber amar. O egoísmo da felicidade espiritual, seja nesta vida, seja noutra, é sempre desumano, até para com o próprio egoísta. Tornem-se dignos dos bens que possuem, repartindo-os, desveladamente e modestamente, como uma obrigação, por todos os necessitados. Dêem-lhes mais que tudo do seu pão do espírito, em conferências, em palestras, em leituras; e, quando não puderem dar-lhes mais nada, dêem-lhes a sua alegria, o seu afecto, o seu sorriso. É o que frequentemente ainda mais falta lhes faz. Há um direito dos pobres que as novas gerações têm de proclamar desde as aulas pelos seus actos. Sursum corda!
E, quando, pela experiência dos seus esforços, conhecerem e sentirem o que custa hoje entre nós a cumprir o dever, e como tudo que individual ou mesmo corporativamente se faça, dentro do actual regime, é tudo pouco e, a reveses, ineficaz para acudir à enorme miséria, como ao nosso rijo povo, ao nosso inteligente, activo e bom povo, hoje é difícil viver e quase impossível pensar, trabalhar, amar, formulem nitidamente na sua consciência esta pergunta: Quem são os autores, os culpados de tanta míngua e desconforto? Quem são os criminosos? E, quando verificarem que a causa de todo o nosso desfalecimento e ruína, o responsável de todos os nossos vexames e descrédito, de todas as nossas angústias, é a reacção, a reacção clerical com a sua intolerância, a reacção financeira com os seus monopólios, e a reacção cesarista com os seus privilégios, oh! então poupem ainda os homens, que nem dos agravos à sociedade é lícita a vindita, mas sejam intransigentes, implacáveis com as instituições, e, tendo forcejado por cumprir todos os seus deveres, assumam com igual decisão todos os seus direitos, façam como os estudantes russos, comecem também a ser governantes – que, mesmo onde governam, não governam só ministros, deputados e eleitores –, chamem aos seus centros e comícios o povo, vão às suas sociedades, interpelem-no, ralhem filialmente com ele pelos seus desmedidos sacrifícios, excitem-lhe, descarnem-lhe mesmo a sensibilidade moral, despertem-lhe, inflamem-lhe os brios cívicos, e intimamente identificados com ele no mesmo pensamento, nas mesmas aspirações redentoras, ponham-se à sua frente, com o denodo simples com que Vasco de Quevedo há quatro anos expôs o peito à bala que o varou, bradando com toda a veemência da indignação: Abaixo as tiranias! E o seu vibrante grito patriótico irá ressoando heroicamente por todo o país, de coração em coração, como uma esperança alada de rejuvenescimento, de dias felizes, de ressurreição da liberdade, de salvação nacional.

Eis, meus senhores, a nobre missão que eu jubilosamente atribuo ao Centro Académico Republicano de Coimbra, almejando-lhe um êxito triunfal.




[1] Bernardino Machado – A Academia de Coimbra. Coimbra: Typographia França Amado, 1906.
Tb. In: A Universidade de Coimbra. 2.ª ed. Lisboa: Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908, pp. 199-226.
Discurso na presidência da inauguração do Centro Republicano de Coimbra em 28 de Janeiro de 1906.












                   


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