terça-feira, 23 de setembro de 2014






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Centenário da República: O ensino e a 1ª República (conclusão)

Nº 1714 - Inverno 2010
Publicado em Dossier por: Luis Grosso Correia (autor)
 


Professores
A construção do Estado-Nação republicano e laico, combinada com a insuficiente instrução popular e a precária situação dos professores primários, exigia um novo modelo de formação do professorado de ensino primário. A formação de professores foi, desde os primeiros momentos, alvo da atenção por parte das autoridades republicanas: substituição dos directores das escolas normais de Lisboa, Porto e Coimbra, logo a seguir à revolução, e reorganização do sistema de formação inicial através do Decreto de 29 de Março de 1911. Esta reorganização teve, no entanto, de esperar oito anos pela sua implementação, tendo passado, entrementes, por diversos projectos aprovados e comissões nomeadas para a instalação das escolas normais primárias (em 1911 e 1916). Para a matrícula nas escolas normais primárias exigia-se a aprovação no ensino primário superior ou na quinta classe do ensino secundário-liceal, balizando-se a idade dos candidatos entre os quinze e os vinte e cinco anos. A formação compreendia o curso geral de quatro anos, com dezanove disciplinas (entre pedagógicas, científicas e culturais, teóricas e práticas), além de cursos especiais (jardinagem e horticultura para mulheres, trabalhos manuais e agrícolas, exercícios militares e natação para homens) e cursos complementares. Só a partir do ano lectivo de 1918/1919 é que estas escolas entraram em funcionamento de forma faseada: primeiro em Lisboa e, em 1919/1920, em Coimbra e no Porto, em regime de co-educação. Contudo, a legislação de 1914 já havia alterado a duração do curso do ensino normal primário projectado em 1911 (reduzindo-o para três anos) e retirando do plano de estudos as disciplinas de Francês e Inglês (Carvalho, 1986, 676-677). A reestruturação curricular empreendida em 1918/19 (que passaria a ter um peso maior das disciplinas de formação pedagógica, em moldes científicos e experimentais) e a adopção de novos programas de formação docente (publicados pelo Decreto 6203, de 7 de Novembro de 1919) trouxeram uma melhor fundamentação científica dos cursos normais primário. Os principais eixos orientadores do curso das novas escolas normais primárias eram os seguintes: focagem primordialmente profissional e um currículo de formação que mescla áreas de ciências da educação e de outras disciplinas formais (Higiene Escolar; Psicologia Geral e Experimental; Pedologia; Pedagogia; História da Instrução Popular; Legislação Escolar) com áreas de metodologia ou de disciplinas de aplicação (Educação Estética – Modelagem, Desenho, Trabalhos Manuais, Bordados, Cozinha e Música; Educação Intelectual – Português e Literatura, Matemáticas, Ciências Naturais, Agricultura e Geografia; e Educação Social – História da Civilização, Direito e Economia Social e Economia Doméstica).
Os primeiros jovens normalistas da República, formados a partir de 1918/19, só ficaram diplomados a partir de 1922-1923. Dos 2132 alunos admitidos às escolas normais, entre 1918 e 1926, somente 848 se diplomaram. Estes resultados podem ser considerados modestos quando comparados com os registados entre os cursos de formação (escolas normais e escolas de habilitação) implementados pela reforma de 1901 (que se manteve em vigor até 1921): 12.493 alunos admitidos e 9.228 diplomados (cf. Nóvoa, 1987, 652-683). Neste quadro, podemos afirmar que a formação dos apóstolos da República foi um projecto conseguido do ponto de vista curricular, embora tardiamente concretizado e retardado pela situação de desemprego dos professores verificada no início da década de 1920.
O quadro anexo ao Decreto de 29 de Março de 1911 previa um aumento dos vencimentos mensais dos professores primários para valores entre os 15$000 e os 25$000 réis. Dava-se, então, início à valorização e dignificação sócio-económica dos professores, visando “transformá-lo num émulo do magistrado ou do sacerdote, sobretudo, a nível concelhio e paroquial” (Marques, 1991, 529). Porém, a melhoria salarial dos professores primários foi muito mitigada se estabelecermos a sua comparação com outras profissões, a saber: em 1909, um professor no topo da carreira (primeira classe) tinha um rendimento diário equivalente ao de operário torneiro (644 réis); em 1914 o salário mensal de um professor da mesma categoria era idêntico ao de um “moço de escritório” (25$00 – em escudos); em 1919, o professor no topo da carreira auferia tanto como um tenente do Exército ou um 3º oficial da carreira administrativa (61$70); em 1925, o mesmo professor dispunha de um vencimento mensal equivalente ao de um sub-tenente do Exército (707$00). Não obstante a melhoria relativa da condição sócio-económica, da sua valorização profissional e do investimento retórico na sua imagem de actor da modernidade, associado ao mito da escola como motor de progresso, os professores do ensino primário ao longo da República não lograram destacar-se da condição proletária a que o seu nível salarial os remetia (cf. Nóvoa, 1987, 617-628).
A centralidade (ou sacralização) da profissão docente para a afirmação cultural da República, a imagem do professor como um arquétipo de virtudes cívicas e a retórica pedagogista, tendencialmente escolanovista, dissimulavam a dimensão marcadamente ideológica, política e funcionalo-administrativa que passou a ser exigida à profissão docente a partir da publicação do Decreto nº 236, de 22 de Novembro de 1913. Por este decreto, todos os funcionários dependentes do Ministério da Instrução Pública (criado pela Lei de 7 de Julho de 1913) estavam obrigados a assinar uma declaração de fidelidade à Pátria, à República e à Constituição1. Acentuava-se, deste modo, a funcionarização do professorado e a sua disponibilização formal para apoiar a afirmação do novo regime político.
Investimento público e rede escolar
Os princípios da obrigatoriedade e gratuitidade do ensino primário elementar (até 1919) ou geral (1919-1926) representariam, do ponto de vista logístico e administrativo, uma maior concentração de recursos humanos e materiais e, do ponto de vista financeiro, um maior investimento por parte do Estado no sector da educação. Assim, se em 1910 a despesa pública em educação representava 4,29% do total da despesa pública, em 1921 essa taxa elevar-se-á a 7,32%, chegando a um máximo de 9,00 nos anos de 1924 e 1926 (Figura 2).

 
 
 
 
A análise do investimento público em educação feita, por Ana Bela Nunes, na longa duração (1852-1993), evidenciará a I República como um período de crescimento ímpar, especialmente a partir do ano de 1921. Aliás, as taxas médias da despesa pública em educação da I República serão mantidas, com algumas ligeiras oscilações, pelos regimes ditatoriais e do Estado Novo que lhe sucederam.
Não obstante os princípios orientadores e a política de investimento público, a rede oficial de estabelecimentos de ensino primário sempre se mostrou aquém das necessidades do sistema educativo, tanto em número de edifícios como na qualidade das suas condições pedagógicas e higiénicas (Quadro 3).
Quadro 3: Escolas primárias do ensino elementar (até 1919) e do ensino geral de iniciativa oficial em Portugal, 1905-1927.


Em 1909/10 essa rede comportava 5552 estabelecimentos de ensino, 6412 em 1911/12 e 7126 (dos quais 469 estavam fechados) em 1925/26. No último ano lectivo da República, o número de estabelecimentos de ensino primário a funcionar de facto elevava-se a 6975 unidades, se se contar com as 318 escolas móveis de iniciativa oficial (Quadro 4).

A figura jurídica da escola móvel estava definida no Decreto de 29 de Março de 1911, o qual previa o seu funcionamento durante, pelo menos, dez meses por ano nas freguesias onde não se estabelecessem escolas fixas. A rede de escolas móveis de iniciativa estatal foi lançada, a partir de 1913/14, com a finalidade de obviar as dificuldades de penetração da rede escolar primária, comungando dos mesmos princípios, metodologias e formação do pessoal docente requeridos aos outros estabelecimentos de ensino fixos. A especificidade das escolas móveis residia no facto de a sua iniciativa, instalação e funcionamento ser de âmbito local, através das corporações administrativas ou de particulares, e de aceitar alunos de todas as idades (podendo organizar turmas e horários diferenciados em função dos públicos-alvo). No universo das 214.590 matrículas, na sua maioria de alunos do género masculino (entre 62 e 70%), registadas ao longo dos 17 anos de vida das escolas móveis, a esmagadora maioria dos 93.305 alunos aprovados (com a variação das taxas de aproveitamento entre os 27,3%, em 1913/14, e os 73,9%, em 1921/22), ficaram-se, a avaliar pelos resultados apurados entre 1913 e 1921, por uma escolaridade equivalente à primeira classe (provas de leitura, escrita e aritmética). Não obstante o facto de o número de escolas (variar entre 187 e 330) apontar para uma cobertura de nível nacional, os distritos que registaram uma maior incidência neste tipo de oferta escolar primária foram os de Lisboa, Faro, Guarda, Leiria, Coimbra e Aveiro (cf. Sampaio, 1969).
Desengano das realidades
A I República cumpriu as tarefas requeridas a um Estado-Nação, em processo de mudança de regime, com vista a reorganizar e regular o sistema educativo: “estatização” ou “alunização” das crianças através princípio da escolaridade obrigatória (dissimulado pelo imperativo de igualdade legal); secularização da educação; alocação de fundos e de meios financeiros; recrutamento, formação e certificação dos profissionais docentes e padronização curricular (cf. Green, 2008). Fê-lo, porém, na óptica de um projecto de “encarnação política de uma revolução cultural” (Catroga, 2010, 121), não cuidando, na óptica da sua operacionalização, da adesão social ao projecto escolar, da sua sincronia e interacção sistémica e da orientação para a consecução de resultados significativos.

As taxas de escolarização primária de crianças e jovens no período da República acompanham as dificuldades materiais e logísticas anteriormente referidas. Segundo uma estimativa ponderada por António Nóvoa, essas taxas seriam, aproximadamente, de 22% em 1900, 29% em 1910, 30% em 1920 e 38% em 1930. Estima-se que, no ultimo ano lectivo da República, a população em idade de frequentar a escolaridade obrigatória era de quase um milhão de crianças, das quais: um terço matriculou-se no ensino primário, 2,0% frequentou a 4ª classe e 0,2% apresentou-se às provas finais da 5ª classe (cf. Nóvoa, 1988, 37). Se se avaliar estes resultados educativos num sentido estatístico estrito, poder-se-á considerar que o princípio da escolaridade primária obrigatória, laica e gratuita, concebido como formação de base no quadro de uma arquitectura escolar que, no discurso das reformas educativas de 1911 e de 1919, se desejava mais participado e democrático, mostrava-se, assim, uma quimera social.
Não obstante a vívida crueza dos resultados educativos alcançados em matéria de ensino primário no período republicano, importará ressalvar que ela se inscreve na crónica desconexão entre a arquitectura legislativa e a praxis política, escolar e pedagógica que caracterizou o esforço da construção da escolaridade obrigatória em Portugal ao longo de todo o período da monarquia constitucional. A educação na I República inscreve-se, deste modo, mais num processo de continuidade histórica, aberto pelo Marquês de Pombal e reforçado pelo Liberalismo, do que num contexto revolucionário, de ruptura de políticas, atitudes e práticas. Importará, pois, invocar os resultados do estudo de Soysal e Strang sobre a construção da escola de massas em diferentes países europeus em finais do século XIX, para, desde logo, se compreender que o modelo da construção da escola de massas desenvolvido em Portugal se caracterizava, à semelhança de outros países da Europa meridional, embora de forma mais aguda, por uma construção iminentemente retórica (cf. Soysal e Strang, 1989) e por um perpétuo adiamento das medidas societais e/ou estatais conducentes à efectivação dos resultados previstos no hodierno discurso legal produzido. As autoridades republicanas, apesar da generosidade das leis e das propostas produzidas (a nível da alfabetização, ensino infantil, rede de estabelecimentos de educação pré-escolar, aumento da escolaridade obrigatória, formação e dignificação dos professores, melhoria salarial, rede escolar fixa e móvel, estudos pós-primários gratuitos, entre outros) não foram capazes, porém, de inverter a prevalência do modelo de construção retórica da educação há muito entranhado na praxis política em Portugal.
Referências bibliográficas:
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Carvalho, Rómulo (1986), História do ensino em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
CATROGA, Fernando (2010), O Republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de Outubro de 1910, 3ª ed., Alfragide: Casa das Letras.
CORREIA, Luís Grosso (1998), “Portugal pode ser, se nós quisermos, uma grande e próspera nação. O sistema educativo no Estado Novo”, Ler História, nº 35, p. 71-107.
GOMES, Joaquim Ferreira (1986), A Educação Infantil em Portugal. 2ª ed.. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica/Centro de Psicopedagogia de Coimbra.
GREEN, Andy (2008), “État et education” in Agnés van Zanten (org.), Dictionnaire de l’éducation, Paris: Presses Universitaires de France, p. 293-297
KANDEL, Isaac Léon (1926), “Introduction”, Educational Yearbook – 1926, p. vi-xv.
NÓVOA, António (1987), Le temps dês professeurs. Analyse sócio-historique de la profession enseignant au Portugal (XVIIIe-XXe siècle). 2 vols., Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica.
Idem (1988), “A República e a escola: das intenções generosas ao desengano das realidades”, Revista Portuguesa de Educação, Braga, nº 1, p. 29-60 (Universidade do Minho/CEEDC).
Nunes, Ana Bela (2003), “Government expenditure on education, economic growth and long waves: the case of Portugal”, Paedagogica Historica, Vol. 39, nº 5, p. 559-581.
NUÑEZ, Clara Eugénia (2003), “Literacy, schooling and economic modernization: a historian’s approach”, Paedagogica Historica, Vol. 39, nº 5, p. 535-558.
PINTASSILGO, Joaquim (1998), República e formação de cidadãos. A educação cívica nas escolas primárias da Primeira República portuguesa. Lisboa: Edições Colibri.
Proença, Maria Cândida (1998), “A República e a democratização do ensino” in Maria Cândida Proença (coord.) O sistema de ensino em Portugal. Séculos XIX – XX. Lisboa: Edições Colibri, p.47-70.
SAMPAIO, José Salvado (1969), “Escolas móveis (contribuição monográfica)”, Boletim bibliográfico e informativo, Lisboa, nº 9, p. 9-28 (Fundação Calouste Gulbenkian/Centro de Investigação Pedagógica).
Idem (1970), “Ensino primário superior (contribuição monográfica)”, Boletim bibliográfico e informativo, Lisboa, nº 10, p. 31-64 (Fundação Calouste Gulbenkian/Centro de Investigação Pedagógica).
Serrão, Joel; Marques, A. H. de Oliveira (dir.). Nova História de Portugal. Vol XI. Da Monarquia para a República (coord. de A. H. de Oliveira Marques). Lisboa: Editorial Presença, 1991.
Soysal, Yasemin N.; Strang, David (1989), “Construction of the first mass education systems in nineteenth-century Europe”, Sociology of Education, Vol. 62, nº 4, p. 277-288.
1 O texto dessa declaração rezava o seguinte: “Eu ... juro pela minha honra, como cidadão e como funcionário, que defenderei a Pátria e a República, consubstanciada na sua Constituição, e nas suas leis, e servirei com zêlo e fidelidade, cumprindo as ordens legais dos meus superiores, fazendo-me obedecer e respeitar dos meus subordinados, segundo a mais severa disciplina, observando os direitos e os deveres de cada um, e procurando por todos os meios ao meu alcance acrescentar a glória da Pátria e da República. E para firmeza de tudo assim o declaro”.





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