“Falta-lhe a liberdade.
Só essa dor lhe dói.
Mas só por ela há-de
Não ser o ser que foi.”
Do poema “Canção” escrito a 30 de Dezembro de 1939 na Cadeia do Aljube
(in Diário – I , 4ª edição revista – Coimbra 1957)
Entre muitos outros intelectuais que passaram pela cadeia do Aljube durante o regime do Estado Novo, encontra-se Miguel Torga aí encarcerado no início de Dezembro de 1939, por tres meses.
Do livro “Miguel Torga – Fotobiografia” de Clara Rocha
“1939 …
Edita “O Quarto Dia” d’ A Criação do Mundo, um dos poucos testemunhos sobre a Guerra Civil de Espanha que em Portugal foram produzidos a partir de uma vivência in loco e publicados durante o conflito. A descrição crua de uma Espanha devastada pela luta fratricida e dominada pleo franquismo, e também uma Itália arrebatada pelos discursos de Mussolini, leva Miguel Torga às cadeias de Salazar. O livro é imediatamente apreendido, e o autor é preso em Leiria, e depois levado para o Aljube.(sublinhado nosso)
… É também na cadeia do Aljube que compõe, a 1 de Janeiro de 1940, um dos seus mais conhecidos poemas de resistência, “Ariane”. “
Fim de citação
Exactamente um mês depois, a 1 de Fevereiro, escreve “Claridade”. Mas já antes escrevera “Exortação”, ainda na cadeia de Leiria, e, também no Aljube, “Lembrança”, Pietà” e “Canção”, em datas anteriores aos já citados.
Lisboa, Cadeia do Aljube, 1 de Fevereiro (1940)
CLARIDADE
Clareou.
Vieram pombas e sol,
e, de mistura com Sonho,
pousou tudo num telhado…
(Eu, destas grades, a ver,
desconfiado.)
Depois,
uma rapariga loira,
(era loira)
num mirante,
estendeu roupa num cordel:
Roupa branca, remendada,
que se via
que era de gente lavada,
e só por isso aquecia…
(in Diário – I , 4ª edição revista – Coimbra 1957)
Para quem esteve na cadeia do Aljube, este poema tem um significado muito especial, pois Torga mais do que nos dar uma ideia da visão que se tinha através das grades, transmite-nos uma ideia precisa do que é o tempo dos presos com pequenos gestos do dia-a-dia a serem motivo de uma apreciação cuidada e a terem um significado e uma representação inusitadas ao nível dos sentimentos: “…Roupa branca, remendada, que se via que era de gente lavada, e só por isso aquecia…”
Esta visão, no entanto, não era possível a partir dos chamados “curros”, provavelmente ainda não construídos naquela data. Estes só possibilitavam a visão da parede da Sé e, mesmo assim, era preciso que o postigo da porta interior, estivesse aberto. Não há unanimidade quanto à medida correcta dos “curros”, pois parece que não teriam todos exactamente as mesmas medidas. A descrição do padre angolano Joaquim da Rocha Pinto de Andrade, citada por Irene Pimentel, é bastante ilucidativa e corresponde perfeitamente à memória que tenho dos tempos que ali passei.
Diz ele que esteve preso «numa enxovia estreitíssima, de um metro de largura por dois de comprimento, onde a luz e o ar entravam por um postigo de 15 x 20 cm., filtrados através de duas férreas portas, postigo, aliás permanentemente fechado». A «tarimba que lhe servia de cama era apenas provida de um enxergão sebento, duro como pedra, sendo proibido usar lençóis. «Sentado na tarimba, os joelhos roçavam a parede», isto tudo na penumbra.
Isto significa que só ali cabia uma pessoa e apertada. Ora a designação de “curros” deriva da sua semelhança com os curros das praças de touros onde o espaço é à justa para um animal. As medidas citadas por Pinto de Andrade devem ser as mais próximas da realidade.
Mas se estas condições falam, só por si, da violência física do encarceramento, torna-se essencial acrescentar as condições de vivência no seu interior que constituíam uma verdadeira tortura psicológica. Desde logo o total isolamento do exterior, muitas vezes nem a luz do sol se vislumbrava, e o total despojo de qualquer bem pessoal, mesmo de um relógio. Como tudo nos era retirado à entrada, incluindo os atacadores e o cinto, nos poucos passos que davamos tinhamos de segurar as calças com as mãos. As visitas de familiares eram raras e escrever-lhes só uma vez por semana, quando autorizado. Mas aquilo que mais nos torturava era a ansiedade da chamada à António Maria Cardoso para interrogatórios, sempre que sentiamos o portão de grades do corredor a abrir-se, os passos do guarda a caminho do “curro” onde estava o companheiro que vinham chamar e o fechar dos postigos abertos à medida que avançava. Até que parava e se ouvia por todo o corredor esta frase terrível, “Prepare-se para ir à sede”, ou “lá acima”, ou “à António Maria Cardoso”, como se houvesse alguma preparação a fazer. E de imediato um turbilhão de ideias e nomes prespassavam pela cabeça. Quem será? Será Fulano? Também estará preso? Alguns faziam perguntas estúpidas aos guardas só para que se ouvisse a sua voz e pudessem ser identificados. E esta tortura durava dias e dias, semanas e semanas seguidas, mesmo meses, até que chegava a nossa vez.
E outro e mais duro suplício começava.
“Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar a âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro”
Do poema “Ariane” escrito a 1 de Janeiro de 1940 na Cadeia do Aljube
(in Diário – I , 4ª edição revista – Coimbra 1957)

(Com a colaboração de Margarida Sousa Reis, publicado no Diário de Notícias)