A análise do investimento público em educação feita, por Ana Bela Nunes, na longa duração (1852-1993), evidenciará a I República como um período de crescimento ímpar, especialmente a partir do ano de 1921. Aliás, as taxas médias da despesa pública em educação da I República serão mantidas, com algumas ligeiras oscilações, pelos regimes ditatoriais e do Estado Novo que lhe sucederam.
Não obstante os princípios orientadores e a política de investimento público, a rede oficial de estabelecimentos de ensino primário sempre se mostrou aquém das necessidades do sistema educativo, tanto em número de edifícios como na qualidade das suas condições pedagógicas e higiénicas (Quadro 3).
Quadro 3: Escolas primárias do ensino elementar (até 1919) e do ensino geral de iniciativa oficial em Portugal, 1905-1927.
Em 1909/10 essa rede comportava 5552 estabelecimentos de ensino, 6412 em 1911/12 e 7126 (dos quais 469 estavam fechados) em 1925/26. No último ano lectivo da República, o número de estabelecimentos de ensino primário a funcionar de facto elevava-se a 6975 unidades, se se contar com as 318 escolas móveis de iniciativa oficial (Quadro 4).
A figura jurídica da escola móvel estava definida no Decreto de 29 de Março de 1911, o qual previa o seu funcionamento durante, pelo menos, dez meses por ano nas freguesias onde não se estabelecessem escolas fixas. A rede de escolas móveis de iniciativa estatal foi lançada, a partir de 1913/14, com a finalidade de obviar as dificuldades de penetração da rede escolar primária, comungando dos mesmos princípios, metodologias e formação do pessoal docente requeridos aos outros estabelecimentos de ensino fixos. A especificidade das escolas móveis residia no facto de a sua iniciativa, instalação e funcionamento ser de âmbito local, através das corporações administrativas ou de particulares, e de aceitar alunos de todas as idades (podendo organizar turmas e horários diferenciados em função dos públicos-alvo). No universo das 214.590 matrículas, na sua maioria de alunos do género masculino (entre 62 e 70%), registadas ao longo dos 17 anos de vida das escolas móveis, a esmagadora maioria dos 93.305 alunos aprovados (com a variação das taxas de aproveitamento entre os 27,3%, em 1913/14, e os 73,9%, em 1921/22), ficaram-se, a avaliar pelos resultados apurados entre 1913 e 1921, por uma escolaridade equivalente à primeira classe (provas de leitura, escrita e aritmética). Não obstante o facto de o número de escolas (variar entre 187 e 330) apontar para uma cobertura de nível nacional, os distritos que registaram uma maior incidência neste tipo de oferta escolar primária foram os de Lisboa, Faro, Guarda, Leiria, Coimbra e Aveiro (cf. Sampaio, 1969).
Desengano das realidades
A I República cumpriu as tarefas requeridas a um Estado-Nação, em processo de mudança de regime, com vista a reorganizar e regular o sistema educativo: “estatização” ou “alunização” das crianças através princípio da escolaridade obrigatória (dissimulado pelo imperativo de igualdade legal); secularização da educação; alocação de fundos e de meios financeiros; recrutamento, formação e certificação dos profissionais docentes e padronização curricular (cf. Green, 2008). Fê-lo, porém, na óptica de um projecto de “encarnação política de uma revolução cultural” (Catroga, 2010, 121), não cuidando, na óptica da sua operacionalização, da adesão social ao projecto escolar, da sua sincronia e interacção sistémica e da orientação para a consecução de resultados significativos.
As taxas de escolarização primária de crianças e jovens no período da República acompanham as dificuldades materiais e logísticas anteriormente referidas. Segundo uma estimativa ponderada por António Nóvoa, essas taxas seriam, aproximadamente, de 22% em 1900, 29% em 1910, 30% em 1920 e 38% em 1930. Estima-se que, no ultimo ano lectivo da República, a população em idade de frequentar a escolaridade obrigatória era de quase um milhão de crianças, das quais: um terço matriculou-se no ensino primário, 2,0% frequentou a 4ª classe e 0,2% apresentou-se às provas finais da 5ª classe (cf. Nóvoa, 1988, 37). Se se avaliar estes resultados educativos num sentido estatístico estrito, poder-se-á considerar que o princípio da escolaridade primária obrigatória, laica e gratuita, concebido como formação de base no quadro de uma arquitectura escolar que, no discurso das reformas educativas de 1911 e de 1919, se desejava mais participado e democrático, mostrava-se, assim, uma quimera social.
Não obstante a vívida crueza dos resultados educativos alcançados em matéria de ensino primário no período republicano, importará ressalvar que ela se inscreve na crónica desconexão entre a arquitectura legislativa e a praxis política, escolar e pedagógica que caracterizou o esforço da construção da escolaridade obrigatória em Portugal ao longo de todo o período da monarquia constitucional. A educação na I República inscreve-se, deste modo, mais num processo de continuidade histórica, aberto pelo Marquês de Pombal e reforçado pelo Liberalismo, do que num contexto revolucionário, de ruptura de políticas, atitudes e práticas. Importará, pois, invocar os resultados do estudo de Soysal e Strang sobre a construção da escola de massas em diferentes países europeus em finais do século XIX, para, desde logo, se compreender que o modelo da construção da escola de massas desenvolvido em Portugal se caracterizava, à semelhança de outros países da Europa meridional, embora de forma mais aguda, por uma construção iminentemente retórica (cf. Soysal e Strang, 1989) e por um perpétuo adiamento das medidas societais e/ou estatais conducentes à efectivação dos resultados previstos no hodierno discurso legal produzido. As autoridades republicanas, apesar da generosidade das leis e das propostas produzidas (a nível da alfabetização, ensino infantil, rede de estabelecimentos de educação pré-escolar, aumento da escolaridade obrigatória, formação e dignificação dos professores, melhoria salarial, rede escolar fixa e móvel, estudos pós-primários gratuitos, entre outros) não foram capazes, porém, de inverter a prevalência do modelo de construção retórica da educação há muito entranhado na praxis política em Portugal.
Referências bibliográficas:
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