Dr. Amadeu Gonçalves |
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Com a devida vénia, transcrevemos o artigo do Dr. Amadeu Gonçalves - A "Nova Alvorada": O espírito comemorativo republicano (1891-1899) - escrito no Boletim Cultural - Vila Nova de Famalicão - 6/7 - III - 2010/2012
A “NOVA
ALVORADA”:
O ESPÍRITO
COMEMORATIVO REPUBLICANO
(1891-1899)
Por Amadeu Gonçalves
É uma visão de
combate por uma certa visão do nosso Passado, eivada de certas ilusões do
século, mas atravessada por um intenso e nobre fervor patriótico, orientado para
o Futuro.
Eduardo Lourenço
A faceta do espírito
comemorativo esteve bem presente, por um lado, não só na organização do Partido
Republicano nas estruturas locais, como também, por outro lado, na propaganda
efectiva dos seus ideais pela imprensa, seja na política ou na de ordem
cultural, visando, acima de tudo, a elevação moral e cívica da sociedade
portuguesa. Se o espírito comemorativo republicano tem o seu início com o IV
Centenário de Os Lusíadas (1880), e
em outras celebrações posteriores nos finais do século XIX, no nosso caso
concreto, a revista famalicense vai precisamente incorporar esta genuína faceta
de propaganda republicana para, nas palavras de Eduardo Lourenço, entronizar
“no espírito colectivo esta ideia, sã e útil entre todas, de que o autêntico
amor da Pátria e da Liberdade não só se opõem, como se confundem.” Aqui está
bem patente a noção hegeliana do espírito do povo – Volksgeist – na qual a pessoa, nas suas características
ontológicas, não é absorvida por esse mesmo espírito colectivo, mas que o
assimila, partindo do princípio que tenha uma participação naquilo que a
ultrapassa, a exprime e a define: a família, a cultura e o povo, estando bem
patente a noção de liberdade pessoal.
Assim sendo, as
estruturas locais do Partido Republicano não fugiram a este duplo ideal: a
comemoração das figuras gradas não só da comunidade, no nosso caso em
particular a famalicense, como também de âmbito nacional e internacional.
Quando em Novembro de 1909 Bernardino Machado vem a V. N. de Famalicão proferir
a conferência no Centro Republicano (e com o seu próprio nome) com o título Têm Liberdade os Monárquicos em Portugal?[1],
(em 14 de Novembro) foi, precisamente, um acto não só de propaganda política,
como igualmente para os republicanos famalicenses homenagearem o republicano
conterrâneo Manuel Dias Gonçalves Cerejeira (1871-1899) – avô de Armando
Bacelar. Cerejeira, conhecido não só como republicano, mas igualmente como
poeta (Cinzas, 1896), teve sempre uma
intensa actividade política em favor do ideal republicano, quer em Braga como
estudante liceal, em Coimbra como estudante universitário e em Famalicão. Em Braga ,
começou a escrever nos jornais académicos A
Pátria e Canto Académico,
fundando a Alma Nova, de combate
anti-monárquico e anti-jesuítico, redigindo-o até à sua ida para Coimbra. Nesta
cidade foi um dos fundadores do Cenáculo, promovendo a homenagem a José Falcão
com a publicação da Cartilha do Povo
(editada na Tipografia Minerva e com uma subscrição pública em Famalicão),
tendo sido ainda em Coimbra um dos redactores do jornal Portugal. Em Famalicão escreveu no jornal O Porvir, de Sousa Fernandes, o órgão do Partido Republicano
famalicense, a sua mais do que famosa coluna Palavras Vermelhas (continuada com o mesmo título por dois republicanos,
Américo de Castro e Nuno Simões).
Aliás, Fernandes, na
abertura da sessão na homenagem a Cerejeira (segundo o Estrela do Minho de 21 de Novembro de 1909), pronuncia as seguintes
palavras, melhor, as seguintes ideias: “Acentua a importância dos Centros
Democráticos de propaganda e instrução. Organizando naquela vila um desses
núcleos, criava-se uma obra cuja utilidade não beneficiava apenas o Partido
Republicano, visto que ele concorria também para a instrução e a educação
cívica do povo.” E mais à frente: “Faz depois a apologia do credo republicano e
afirma a necessidade de instruir e de educar o povo, pelo jornal, pelo livro e
pela conferência.”
Nesta perspectiva, os
republicanos famalicenses de 1891 apostaram na divulgação das ideias
republicanas através do discurso cultural, sendo o seu veículo paradigmático a
revista. Não sem incidentes de percurso: como foi com o texto de Antero de
Quental Três Épocas Religiosas[2], suscitando tal artigo uma
Explicação[3] da redacção aos editoriais
do jornal portuense A Palavra,
estando para este jornal a Nova Alvorada
no índex sagrado porque atentava contra os princípios da Igreja, levantava um
sistema ímpio, pregava a rebelião dos homens e a dissolução da sociedade,
maçonizando-se.
A nova mentalidade
festiva era, então assim explicada por A. P. Magalhães e Almeida num texto com
o título Os Centenários Perante a
Filosofia:
A
História, é certo, já não é, como durante longo tempo foi considerada até ao
primeiro quartel do século que se vai findar uma mera resenha dos factos
curiosos, ou uma série de milagres dos homens. A teoria dos grandes homens
(Carlyle, Emerson) já deixou de construir um critério científico e hoje a
História é uma série de factos naturais ligados uns aos outros pela lei da
causalidade, cuja expressão sociológica é a lei da filiação histórica,
formulada pela intuição genial de A. Comte[4].
Esta lei da filiação
histórica comtiana proclama que o ser humano deve procurar leis e não causas,
já que todos os fenómenos, e cito Comte “se subordinam a leis naturais
invariáveis cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível são
o fim de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente inacessível
e vazia de sentido, para nós, a investigação daquilo a que se chama causas,
tanto primeiras como finais.”
A revista famalicense,
com o subtítulo “revista mensal, litteraria e scientifica”, e com alguma
indecisão titular no início (o n.º 1 chegou a ter três edições, retomando o
título da primeira revista famalicense literária A Alvorada (1885-1887), fundada por Joaquim de Azuaga, então chefe
da estação em Famalicão), vai congregar à sua volta ilustres colaboradores,
socialistas e republicanos, nomeadamente Teófilo Braga, Raul Brandão, Trindade
Coelho, João de Deus, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Joaquim de Araújo,
entre tantos outros, nacionais e internacionais, caso de Tommazzo Cannizzaro,
ou de Wilhelm Storck, os quais traduziriam para italiano e sueco alguns autores
e/ou escritores famalicenses, caso de Júlio Brandão. Dos famalicenses republicanos
destaca-se inquestionavelmente Sousa Fernandes e Sebastião de Carvalho, Eduardo
de Carvalho (que esteve quase a ser Ministro da Justiça no governo de
Bernardino Machado em 1914, conferindo-lhe os republicanos em 1920 o Grau de
Grande Oficial de S. Tiago de Espada por causa dos seus trabalhos jurídicos),
Júlio Brandão (José Ribeiro e Castro convidou-o para ministro, declinando,
contudo, o convite em 1915), etc. Mesmo um monárquico como José de Azevedo e
Menezes, figura grada da comunidade famalicense, pontificava na revista com os
seus estudos genealógicos e camilianos.
No editorial da revista
(n.º 1) podemos ler, a dado passo, o seguinte:
Pelos
costumes e pelas ideias, pelo esclarecimento da razão e justa moralidade das
aspirações, pelo sentimento do justo aplicado a tudo e a todos – por estes
agentes de ordem e civilização é que mais fácil e eficazmente se pode preparar
o espírito do povo para deliberar as reformas do seu organismo social e aplicar
ao seu meio as instituições que mais o engrandeçam e melhor penhor de
felicidade lhe sejam.
Neste contexto, para além
do espírito do povo hegeliano, e não sem uma indicação subtil ao utilitarismo
de Stuart Mill, um desses paradigmas para a renovação social e mental será o
espírito comemorativo. A revista famalicense vai imprimir ao longo dos seus
anos de existência essa mesma realidade (a qual será retomada no pós-25 de
Abril em Famalicão com o Ciclo de Homenagens[5] a ilustres figuras
famalicenses, caso de Bernardino Machado, Daniel Rodrigues, Bernardo Pindela,
Armando Bacelar, Lino Lima, Nuno Simões, Sousa Fernandes ou Alberto Sampaio, e
mesmo Ana Plácido, para não falarmos do sempre homenageado Camilo, o qual
congregou ao longo dos anos monárquicos e republicanos, assim como o próprio
Estado Novo, ou, mais recentemente, o Ciclo Gentes da Terra) à volta de
personalidades, perante os seus respectivos acontecimentos históricos, não só
portuguesas, como também estrangeiras: Camilo (no primeiro aniversário do seu
falecimento), Oliveira Martins (que por razões desconhecidas não teve um número
propriamente especial, apesar de ter sido noticiado, após o seu falecimento,
aparecendo os textos do referido n.º quase um ano depois, mais propriamente nos
números de Março, Abril e Maio de 1895), Jules Michelet (Centenário de
Nascimento), Vasco da Gama (IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo
para a Índia), o Infante D. Henrique (V Centenário de Nascimento) e que será
retomado nas comemorações henriquinas do Estado Novo, não passando despercebido
em Famalicão, Latino Coelho, Antero de Quental, o poeta-filósofo na designação
da revista (uma referência constante)[6], Sousa Martins, ou Santo
António (o qual também não ficou indiferente em 1895 em Famalicão. Também
encontramos na revista algumas notícias das figuras republicanas que então iam
desaparecendo, caso de Reis Dâmaso, perdendo o Partido Republicano, segundo a
revista, “um convicto e entusiasta correligionário” e habitual colaborador até
então (1895).
Nesta perspectiva, não
será sem alguma ingenuidade inicial perante as estruturas governamentais
monárquicas locais os dizeres de Fernandes, quando nos diz que “a revista não
tratará de política, na acanhada e fútil significação desta palavra; não
envolverá nas questões de interesses partidárias em que se esterilizem os
melhores dos nossos homens. / A sua missão mira apenas a esteira uminosa por
onde outros dos seus colegas se têm alçado à invejável posição de serem
prestáveis à instrução pública e à literatura pátria.” De facto, pelo que já
temos visto, alguma ingenuidade, mas não assim tão ignorante! De facto, logo no
início do editorial surge uma referência indirecta ao Ultimatum e ao 31 de Janeiro e, paralelamente, a um conteúdo
programático para a regeneração da sociedade portuguesa:
Na
hora angustiosa porque a pátria atravessa, gemendo simultaneamente sob o peso
afrontoso da vilania estrangeira e sob os erros acumulados dos seus governos
imprevidentes; neste momento histórico de sombrias apreensões para a gloriosa
nação portuguesa, ainda há pouco nobilitada por tantos e extraordinários
heroísmos e felicitada por tantas e ditosas conquistas de progresso, forçoso é
que os seus filhos menos egoístas e mais patriotas não deslembrem a justa nação
do dever e colaborar na medida das suas forças para a regeneração da sua nacionalidade,
trazendo á reforma dos costumes e ao aperfeiçoamento da instrução o contingente
mais ou menos valioso de que possam dispor.
O espírito do povo entre
a liberdade pessoal e a pátria, enquanto identidade colectiva, poderá ser visto
igualmente no primeiro número comemorativo da revista, dedicado a Camilo, num
texto assinado pela Redacção, entenda-se Fernandes, onde lemos que “o povo que
assim guarda e zela o seu glorioso património, nem é indigno duma existência
livre e independente nem se deixa espoliar dos seus vínculos nacionais com a
fraqueza dos povos corroídos pelo vício e insensibilizados pelo egoísmo, baldes
de brio e abatidos de ânimo”[7]. Conclui Fernandes com o
número que então a Nova Alvorada
publicou, perante o acolhimento da ideia e da colaboração dos escritores que
teve, foram estes factos que deram a “justa medida do espírito da nacionalidade
que ainda nos anima e da religião que ainda professamos pelas grandes
individualidades da nossa pátria.”
Só falta saber se, de
facto, Portugal se cumpriu pela instrução e pela educação, tendo como veículo
de divulgação a imprensa, o livro e a conferência.
Amadeu
Gonçalves
[1] In Pela Republica: 1908-1909 – II. Lisboa: Editor-Proprietario,
Bernardino Machado, 1910, pp. 673-697. Não deixa de ser curioso, que o próprio
Bernardino Machado acaba por realçar alguns famalicenses e políticos nacionais
que se então destacaram, todos convivendo na Casa da Vila, em “recepções e
banquetes políticos em casa de meus pais”. Cito: “Já houve em Portugal uma monarquia
liberal. Aqui em Vila Nova
de Famalicão, pulsou já fortemente a vida pública. Tínhamos oradores populares.
Neste concelho houve um de impressionante eloquência natural, Narciso dos
Carvalhais, tio do célebre poeta brasileiro, Casimiro de Abreu. Estou a vê-lo
passar fogosamente à testa dum magote de manifestantes, que soltavam vivas, e
Júlio Dinis, que se achava doente, a ares, neste mesmo edifício, onde era então
a estalagem da Eugénia, a boa Eugénia, vindo à janela e dando com ele, puxar
pela carteira e pelo lápis e pôr-se a desenhar-lhe a figura cortante e o gesto
intrépido, marcial. Nesse tempo os deputados davam conta do seu mandato aos
eleitores. Aqui veio repetidamente dar-lhes em recepções e banquetes políticos
em casa de meus pais Joaquim Januário de Sousa Torres e Almeida, notável
parlamentar, por todos então indigitado para ministro na primeira situação do
seu partido, que, duma dessas vezes, fui, dias depois, encontrar no Bom Jesus
do Monte a descansar das lides oratórias, lendo a História da Filosofia em
Portugal do Dr. Lopes Graça e a Poesia do Direito do Dr. Teófilo Braga […] /
Que saudades eu tenho desse tempo! A minha casa era um centro de actividade
política. Nela fiz a minha iniciação, sob os auspícios do nosso querido Torres,
de Castelões, que logo prognosticou generosamente que eu havia de ser ministro,
enganando-se só com a pasta. Raro era o dia em que eu não ouvisse meu pai dizer
para minha mãe: «Manda por mais um talher à mesa!» E não esqueço nunca que era
ela, minha mãe, quem, com a sua nobre figura, parecia querer comentar
ternamente a política liberal de meu pai, indo ela mesma abrir a porta ao
pobres para lhes dar, com a esmola a carinhosa consolação das suas palavras.”
(pp. 695-697).
[2] In Nova Alvorada, Ano 2, n.º 1 (1 Abr. 1892), pp. 117-118.
[3] In Nova Alvorada, Ano 2, n.º 2 (1 Maio 1892), pp. 127-128.
[4] … o espectáculo suscita naturalmente ao espírito esta
pergunta: qual a causa deste facto? Qual a significação filosófica destas
festas? Qual o motivo, secreto e íntimo, que determina este entusiasmo? Qual a
revolução da consciência humana que traduz esta manifestação tão expressiva, da
emotividade? […] A inteligência humana vai tendo, felizmente, cada vez mais
clara, no espírito como na natureza: o presente é a derivação lógica, a
consequência necessária do passado, e uma grande dívida, por saldar, de
sentimentos, de pensamentos, de interesses, nos prende aos homens de ontem,
factores irrefragáveis dos acontecimentos de hoje […] A velha fase da
psicologia está prestes a findar. Os símbolos poéticos que o génio místico das religiões e da
metafísica fundiu com tanto amor e tanta arte, caíram por terra quebrados,
desfeitos em pó… […] A estrutura do tipo moral e mental, legado pelos nossos
passados, por efeito da força dissolvente em si próprio contida, foi-se, pouco
a pouco, degenerando; e, na nova fase de psicologia, um dos estados mais
acentuadamente definidos, é o que provém da substituição das velhas fórmulas
tradicionais, quiméricas, sem significação, derivadas do símbolo católico, e
referindo a marcha da humanidade a causas hiper-físicas, a entidades
sobrenaturais, ao acaso, à Providência, pelas fórmulas positivas, precisas, de
um novo simbolismo em que o homem, contemplando o progresso do mais alto, num
golpe de vista mais profundo, relaciona a obra da civilização com os próprios
esforços humanos, consagrando a humanidade mesma na pessoa dos seus
representantes que mais a enobreceram e honraram (In Nova Alvorada, Ano 2, n.º 8, 12 Out. 1892, pp. 189-190).
[5] “Segunda República: o ciclo das
homenagens”, In Uma Aproximação Aos
Autores Famalicenses: catálogo da Exposição. Coord., Invest. e textos Artur
Sá da Costa, Amadeu Gonçalves. V. N. de Famalicão: Câmara Municipal, Biblioteca
Municipal Camilo Castelo Branco, 1998, pp. 97-116.
[6] A Nova
Alvorada foi por vezes honrada com a colaboração do egrégio poeta que tão
tragicamente vem de desaparecer de entre nós; ela aqui verte uma lágrima da
mais profunda saudade pelo ilustre companheiro que os fados adversos prostraram
a meio caminho da sua gloriosa jornada, assumindo desde já o compromisso de
honrar-lhe condignamente a memória, consagrando-lhe o seu próximo número (In
Nova Alvorada, Ano 1, n.º 6, 1 Out. 1891, p. 60; Ano 1, n.º 7, 1 Nov. 1897
[7] Podem os povos materialmente mais
ricos e poderosos do que nós vangloriarem-se da sua fortuna, desdenharem da
nossa pequenez a ferida pela sua grandeza atentarem insolentemente contra o
nosso património e contra a nossa independência. / Que esses povos se pavoneiem
e abusem muito embora da sua efémera fortuna para salvaguarda da autonomia e
glória da nacionalidade portuguesa basta 0o zelo que consagramos ao inventário
das nossas honrosas tradições e o culto que dispensamos aos nossos grandes
homens, aos compatrícios ilustres que enaltecem a nossa pátria (In Nova Alvorada, Ano 1, n.º 2, 1 Jun. 1891, p. 24).
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