XII
A ACADEMIA E O ENSINO UNIVERSITÁRIO
«A Academia está para a Universidade
como o povo para as instituições. É no seu seio que principalmente se geram e
se elaboram as redentoras reformas. E eu de todo o coração aplaudo a pacífica
revolução democrática que os alunos da nossa Universidade este ano
empreenderam, esboçando na vida académica a república fraternal, que é hoje a
aspiração profunda, ardente e inelutável da alma livre e heroica do povo
português.»
“Recepção
aos Novatos”, in A Universidade de
Coimbra, 2.ª ed., Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.
·
«O programa do governo académico é evidentemente a
instrução.
A Academia tem de difundir no seu seio esta instrução
que só as Universidades exclusivamente possuem a virtude de ministrar, a livre
instrução geral que tanta plasticidade e agudeza dá ao engenho dos seus alunos.»
«O que assim mutuamente se aprende nessa feliz quadra
da vida em que se está sempre ansiando por saber tudo! Eu, a literatura,
bebia-a todos os dias na Castália dos parnasianos da Folha, no gabinete do nosso popular [Gonçalves] Crespo, que, por
sinal, tinha o requintado escrúpulo artístico de sujeitar os seus versos novos
a serem lidos de alto logo à primeira por um profano como eu. O quarto de [Guerra]
Junqueiro, hoje pontífice máximo das letras, era também um tabernáculo da minha
particular devoção. Foi lá que, um Inverno, que a geada caía em flocos cá fora,
nós mal sentimos os seus rigores, abraçados pelas chamas o teatro de Hugo. E,
assim como para Victor Hugo tive Junqueiro, ainda pude ter António Cândido para
Castelar. José Frederico Laranja lia-me em Platão e em Xenofonte os diálogos de
Sócrates, averbando-me de sofista, quando eu irreverentemente objectasse. E era
ele também que, palpitante de esperanças redentoras, me recitava o verbo
cordial do socialismo tanto no positivista Saint-Simon como no utópico Fourier.
Proudhon, ouvi-o ainda antes, sobretudo nos trechos mais contundentes, a Marçal
Pacheco, que, dizendo-se o vingador duma série infinita de proletários
espoliados, seus ascendentes, afiava as armas de polemista para o áspero strugle for life. Com Alves da Veiga
discuti gravíssimos problemas filosóficos e sociais. E eu mesmo ajudei várias
vezes insignes jurisconsultos futuros, em conjuntura de acto de exame, a
argumentarem os seus pontos; até, para meu eterno desvanecimento, corria entre
eles com apreço ousada interpretação heterodoxa do artigo do código civil em
que eu, rebelde naturalista, me abalançara a dissentir do consagrado comentário
do Sr. José Dias Ferreira. Aqui têm como entrei pelo direito, e, quase diria,
como já então me preparava para as revoltas republicanas.
Esta comunhão intelectual da academia faz-se por toda
a parte, mesmo ao ar livre, às vezes até melhor. Correia Barata, o talentoso
propagandista do darwinismo, demonstrava-nos a origem simiana do homem,
dependurado, à noite, dos galhos das árvores da alameda da Universidade. E para
este choque e transmissão de ideias contribuem todos os alunos, desde os
médicos mais materializantes até aos mais sobrenaturalistas teólogos.
Advertirei mesmo: os teólogos são preciosos. Esgrimindo com eles, com a sua
pertinaz escolástica, vão os outros temperando a razão para rebater todos os
assaltos da heresia.
Ao meu curso, fez-nos um incalculável bem a companhia
de António Maria de Sena, que vinha para as ciências naturais, já bacharel em
teologia, ao tempo do formidável dialéctico P. Albino, apercebido portanto com
todos os petrechos para a atacar.
As leituras, palestras e distracções da mocidade
influem por toda a vida; e só elas explicam certos aspectos picantes da idade
madura.»
«Por vezes sucede que estas influências recíprocas de
Faculdade para Faculdade, duns para outros estudos, não se limitam a dar enlevo
e horizonte à especialização da aula, tornam-se predominantes, são elas que
estimulam e acalentam no aluno a sua verdadeira especialidade, que desenvolvem
e fazem vingar a sua vocação original. A aula então passa para o segundo plano,
quando mesmo não desaparece. Vejam Teixeira de Queirós. Estudante laureado
pelos seus professores; mas o principal do seu labor académico foi a Comédia do Campo, que ele timidamente
submetia ao julgamento magistral de João Penha. Multipliquem-lha pelo seu curso
de medicina, e terão em gérmen o Bento Moreno todo. Exemplo da segunda espécie,
o contista Alberto Braga, que nunca deu uma falta nas suas aulas livres, donde
saiu com brilhantes informações de conversador, e que com igual regularidade
perdeu todos os anos nas aulas oficiais, sem embargo de toques de cabra e de
bedéis.»
«Grande escola a vida académica! Ela supre as lacunas
do ensino oficial. As suas faculdades não são só as mais frequentadas,
produzem. Quando se diz escola de Coimbra, é quase sempre dela que se fala. Ela
é sobretudo uma iniciação moral, uma escola de Governo livre. Mas cada geração
nova que vem sentar-se nas bancadas escolares, não se segrega por isso da
sociedade, da nação.
Tem logo a representar-lha os seus mestres. A Academia
de Coimbra é uma colónia que a metrópole portuguesa confia à direcção do corpo
docente. Zele, pois, a sua autonomia; mas não leve o ciúme da sua independência
até ao excesso de olhar com desconfiança e hostilidade o professor, a
autoridade representante da mãe pátria. Ser livre não é ser esquivo e fugaz.
Não se deixem arrastar por um anarquismo paradoxal, que não é senão
dissociação, atomismo. O sentido léxico do termo confunde. A sociedade não caminha
para a abolição do Governo. Desde o tribunal arbitral entre o patrão e o
operário até ao tribunal arbitral entre as nações, é por toda a parte a mesma
aspiração, a mesma ânsia de justiça, de Governo. Não se trata de suprimir a
autoridade, mas o arbítrio pessoal. Implantar o Governo directo comum de todos
só é anarquismo, porque é acabar com a usurpação do Governo exclusivo dum ou de
alguns. Só esse anarquismo queiramos, que só esse é legítimo.
Não renunciem nunca às franquias do seu pensamento.
Sejam briosos com os seus professores, não os cortejem, não os adulem; mas não
os evitem, não suspeitem em cada um deles sempre o déspota intratável. Bem sei
que a separação entre o professor e o aluno vem tradicionalmente do velho
dogmatismo catedrático, mas os tempos mudaram e com os tempos os professores,
hoje mesmo alguns com rostos tão imberbes que lhes falta o físico para tais
prosápias autoritárias; e, se essa separação excepcionalmente persiste, não a
agrave, não a encarnice por sua parte o aluno! Quantas vezes ainda com o
estudante que se forma, se forma o inimigo da Universidade! Não pode ser, não
deve ser mais assim!»
«O mal, na Universidade como no país, não provém tanto
dos homens como do regime. Urge reformar radicalmente a legislação do ensino
universitário. Mas reformas, inovações, mal se podem fazer, nem quase se
compreendem, sem o dispêndio ardente do sangue impetuoso da mocidade. Cooperem
para elas os alunos com os professores. E, se os professores se não apressarem
a reclamá-las e promovê-las, incitem-nos, acoroçoem-nos os alunos com todo o
ardor da sua fé e do seu entusiasmo. Foi a nossa mocidade académica, foram até
os seus teólogos, que, não há muito tempo, saindo à estacada, repeliram a
tentativa feita em cortes para a invasão legal da igreja católica lusitana por
diplomas de teologia passados em Roma. E foi em ela, em massa, e quase só ela,
que, recentemente, pela minha voz, na conferência que a seu convite fiz no
Instituto de Coimbra, protestou contra a injúria ditatorial e contra a farragem
pretensiosa da última reforma universitária. Honra lhe seja!
Nada do que importa à Universidade, é estranho e pode
ser indiferente aos seus alunos; e o seu estatuto dos estudos diz-lhes
directamente respeito. Reformas há mesmo por que ninguém mais competente para
representar do que eles. Uma lhes apontarei. Qual é o que se não sentirá vexado
na sua dignidade pelo preceito legal que lhe põe todos os dias defronte,
policialmente, a velar pela exactidão do seu estudo, de interrogatório
desembainhado o seu professor? Pois este exame contínuo, impertinente, sempre
suspenso sobre a sua cabeça, sobre a honradez e a delicadeza da sua
consciência, não lhes pesa e não os irrita como uma suspeição e uma afronta?
Não se revoltem por isso contra a aula e contra o professor; mas reclamem
energicamente a reforma da lei. Afirmem com altivez aos nossos governantes que
não estão aqui para fazer um curso estratégico de ociosidade em guerra acesa
com os seus mestres, que sabem muito bem que estão para estudar, para colaborar
intimamente com eles pelo progresso da ciência e da nação. Uma Universidade não
é precisamente uma escola de correcção de vadios.
O povo académico tem afinal sempre ao seu dispor um
último recurso contra os regulamentos e rituais importunos e deprimentes: é não
os cumprir. E está claro que usa dele. Até abusa, o que não admira, porque
desse recurso é realmente muitas vezes difícil usar bem. Eu não lho posso
aconselhar e aplaudir cegamente; contudo, não posso tão pouco reprovar-lho
redondamente, em princípio. Há uma desobediência legítima. Mal da lei escrita,
se ela briga com a lei moral! E há um inalienável direito soberano de
legislatura, que pertence a toda a gente.»
«Meus senhores! Os estudantes da Academia de Coimbra
não são só membros da cidade universitária, são também cidadãos da nação. Têm
deveres para com ela, para com todos os seus concidadãos, a começar logo por
aqueles que, nesta hospitaleira Coimbra, aqui ao pé labutam para os ajudar
diuturnamente nas suas lides. São solidários com a pátria. São seus soldados!
Têm deveres mesmo muito grandes, porque são ricos.
Ainda os que não são ricos de dinheiro, possuem a mocidade e o vigor, os
talentos e a instrução, inestimáveis bens. Não os dissipem! Não convertam essas
forças de vida em armas de ataque contra ninguém, e – cautela! – não maltratem,
não pisem nunca com elas os humildes, os fracos! Não abusem dos atractivos da
sua gentileza; não atraiçoem a confiança que inspirem nos seus contratos; não
espalhem em volta de si os aristocráticos desdéns intelectuais de quem se
julga, por direito divino, senhor das ideias, do saber. Nada de despotismo! Nem
a paixão do estudo levem até ao olvido sequer dos outros, sobretudo dos que por
seu amor mais trabalham e penam. Formem-se, não se alienem! Saber é, antes de
mais nada, saber amar.»
“A
Academia de Coimbra”, in A Academia de Coimbra, Coimbra,
Typographia França Amado, 1906; tb. in: A
Universidade de Coimbra, 2.ª ed,. Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino
Machado, 1908.
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