quinta-feira, 24 de outubro de 2013
















XII
A ACADEMIA E O ENSINO UNIVERSITÁRIO

«A Academia está para a Universidade como o povo para as instituições. É no seu seio que principalmente se geram e se elaboram as redentoras reformas. E eu de todo o coração aplaudo a pacífica revolução democrática que os alunos da nossa Universidade este ano empreenderam, esboçando na vida académica a república fraternal, que é hoje a aspiração profunda, ardente e inelutável da alma livre e heroica do povo português.»

“Recepção aos Novatos”, in A Universidade de Coimbra, 2.ª ed., Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.

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«O programa do governo académico é evidentemente a instrução.
A Academia tem de difundir no seu seio esta instrução que só as Universidades exclusivamente possuem a virtude de ministrar, a livre instrução geral que tanta plasticidade e agudeza dá ao engenho dos seus alunos.»

«O que assim mutuamente se aprende nessa feliz quadra da vida em que se está sempre ansiando por saber tudo! Eu, a literatura, bebia-a todos os dias na Castália dos parnasianos da Folha, no gabinete do nosso popular [Gonçalves] Crespo, que, por sinal, tinha o requintado escrúpulo artístico de sujeitar os seus versos novos a serem lidos de alto logo à primeira por um profano como eu. O quarto de [Guerra] Junqueiro, hoje pontífice máximo das letras, era também um tabernáculo da minha particular devoção. Foi lá que, um Inverno, que a geada caía em flocos cá fora, nós mal sentimos os seus rigores, abraçados pelas chamas o teatro de Hugo. E, assim como para Victor Hugo tive Junqueiro, ainda pude ter António Cândido para Castelar. José Frederico Laranja lia-me em Platão e em Xenofonte os diálogos de Sócrates, averbando-me de sofista, quando eu irreverentemente objectasse. E era ele também que, palpitante de esperanças redentoras, me recitava o verbo cordial do socialismo tanto no positivista Saint-Simon como no utópico Fourier. Proudhon, ouvi-o ainda antes, sobretudo nos trechos mais contundentes, a Marçal Pacheco, que, dizendo-se o vingador duma série infinita de proletários espoliados, seus ascendentes, afiava as armas de polemista para o áspero strugle for life. Com Alves da Veiga discuti gravíssimos problemas filosóficos e sociais. E eu mesmo ajudei várias vezes insignes jurisconsultos futuros, em conjuntura de acto de exame, a argumentarem os seus pontos; até, para meu eterno desvanecimento, corria entre eles com apreço ousada interpretação heterodoxa do artigo do código civil em que eu, rebelde naturalista, me abalançara a dissentir do consagrado comentário do Sr. José Dias Ferreira. Aqui têm como entrei pelo direito, e, quase diria, como já então me preparava para as revoltas republicanas.
Esta comunhão intelectual da academia faz-se por toda a parte, mesmo ao ar livre, às vezes até melhor. Correia Barata, o talentoso propagandista do darwinismo, demonstrava-nos a origem simiana do homem, dependurado, à noite, dos galhos das árvores da alameda da Universidade. E para este choque e transmissão de ideias contribuem todos os alunos, desde os médicos mais materializantes até aos mais sobrenaturalistas teólogos. Advertirei mesmo: os teólogos são preciosos. Esgrimindo com eles, com a sua pertinaz escolástica, vão os outros temperando a razão para rebater todos os assaltos da heresia.


Ao meu curso, fez-nos um incalculável bem a companhia de António Maria de Sena, que vinha para as ciências naturais, já bacharel em teologia, ao tempo do formidável dialéctico P. Albino, apercebido portanto com todos os petrechos para a atacar.
As leituras, palestras e distracções da mocidade influem por toda a vida; e só elas explicam certos aspectos picantes da idade madura.»

«Por vezes sucede que estas influências recíprocas de Faculdade para Faculdade, duns para outros estudos, não se limitam a dar enlevo e horizonte à especialização da aula, tornam-se predominantes, são elas que estimulam e acalentam no aluno a sua verdadeira especialidade, que desenvolvem e fazem vingar a sua vocação original. A aula então passa para o segundo plano, quando mesmo não desaparece. Vejam Teixeira de Queirós. Estudante laureado pelos seus professores; mas o principal do seu labor académico foi a Comédia do Campo, que ele timidamente submetia ao julgamento magistral de João Penha. Multipliquem-lha pelo seu curso de medicina, e terão em gérmen o Bento Moreno todo. Exemplo da segunda espécie, o contista Alberto Braga, que nunca deu uma falta nas suas aulas livres, donde saiu com brilhantes informações de conversador, e que com igual regularidade perdeu todos os anos nas aulas oficiais, sem embargo de toques de cabra e de bedéis.»

«Grande escola a vida académica! Ela supre as lacunas do ensino oficial. As suas faculdades não são só as mais frequentadas, produzem. Quando se diz escola de Coimbra, é quase sempre dela que se fala. Ela é sobretudo uma iniciação moral, uma escola de Governo livre. Mas cada geração nova que vem sentar-se nas bancadas escolares, não se segrega por isso da sociedade, da nação.
Tem logo a representar-lha os seus mestres. A Academia de Coimbra é uma colónia que a metrópole portuguesa confia à direcção do corpo docente. Zele, pois, a sua autonomia; mas não leve o ciúme da sua independência até ao excesso de olhar com desconfiança e hostilidade o professor, a autoridade representante da mãe pátria. Ser livre não é ser esquivo e fugaz. Não se deixem arrastar por um anarquismo paradoxal, que não é senão dissociação, atomismo. O sentido léxico do termo confunde. A sociedade não caminha para a abolição do Governo. Desde o tribunal arbitral entre o patrão e o operário até ao tribunal arbitral entre as nações, é por toda a parte a mesma aspiração, a mesma ânsia de justiça, de Governo. Não se trata de suprimir a autoridade, mas o arbítrio pessoal. Implantar o Governo directo comum de todos só é anarquismo, porque é acabar com a usurpação do Governo exclusivo dum ou de alguns. Só esse anarquismo queiramos, que só esse é legítimo.
Não renunciem nunca às franquias do seu pensamento. Sejam briosos com os seus professores, não os cortejem, não os adulem; mas não os evitem, não suspeitem em cada um deles sempre o déspota intratável. Bem sei que a separação entre o professor e o aluno vem tradicionalmente do velho dogmatismo catedrático, mas os tempos mudaram e com os tempos os professores, hoje mesmo alguns com rostos tão imberbes que lhes falta o físico para tais prosápias autoritárias; e, se essa separação excepcionalmente persiste, não a agrave, não a encarnice por sua parte o aluno! Quantas vezes ainda com o estudante que se forma, se forma o inimigo da Universidade! Não pode ser, não deve ser mais assim!»

«O mal, na Universidade como no país, não provém tanto dos homens como do regime. Urge reformar radicalmente a legislação do ensino universitário. Mas reformas, inovações, mal se podem fazer, nem quase se compreendem, sem o dispêndio ardente do sangue impetuoso da mocidade. Cooperem para elas os alunos com os professores. E, se os professores se não apressarem a reclamá-las e promovê-las, incitem-nos, acoroçoem-nos os alunos com todo o ardor da sua fé e do seu entusiasmo. Foi a nossa mocidade académica, foram até os seus teólogos, que, não há muito tempo, saindo à estacada, repeliram a tentativa feita em cortes para a invasão legal da igreja católica lusitana por diplomas de teologia passados em Roma. E foi em ela, em massa, e quase só ela, que, recentemente, pela minha voz, na conferência que a seu convite fiz no Instituto de Coimbra, protestou contra a injúria ditatorial e contra a farragem pretensiosa da última reforma universitária. Honra lhe seja!
Nada do que importa à Universidade, é estranho e pode ser indiferente aos seus alunos; e o seu estatuto dos estudos diz-lhes directamente respeito. Reformas há mesmo por que ninguém mais competente para representar do que eles. Uma lhes apontarei. Qual é o que se não sentirá vexado na sua dignidade pelo preceito legal que lhe põe todos os dias defronte, policialmente, a velar pela exactidão do seu estudo, de interrogatório desembainhado o seu professor? Pois este exame contínuo, impertinente, sempre suspenso sobre a sua cabeça, sobre a honradez e a delicadeza da sua consciência, não lhes pesa e não os irrita como uma suspeição e uma afronta? Não se revoltem por isso contra a aula e contra o professor; mas reclamem energicamente a reforma da lei. Afirmem com altivez aos nossos governantes que não estão aqui para fazer um curso estratégico de ociosidade em guerra acesa com os seus mestres, que sabem muito bem que estão para estudar, para colaborar intimamente com eles pelo progresso da ciência e da nação. Uma Universidade não é precisamente uma escola de correcção de vadios.
O povo académico tem afinal sempre ao seu dispor um último recurso contra os regulamentos e rituais importunos e deprimentes: é não os cumprir. E está claro que usa dele. Até abusa, o que não admira, porque desse recurso é realmente muitas vezes difícil usar bem. Eu não lho posso aconselhar e aplaudir cegamente; contudo, não posso tão pouco reprovar-lho redondamente, em princípio. Há uma desobediência legítima. Mal da lei escrita, se ela briga com a lei moral! E há um inalienável direito soberano de legislatura, que pertence a toda a gente.»

«Meus senhores! Os estudantes da Academia de Coimbra não são só membros da cidade universitária, são também cidadãos da nação. Têm deveres para com ela, para com todos os seus concidadãos, a começar logo por aqueles que, nesta hospitaleira Coimbra, aqui ao pé labutam para os ajudar diuturnamente nas suas lides. São solidários com a pátria. São seus soldados!
Têm deveres mesmo muito grandes, porque são ricos. Ainda os que não são ricos de dinheiro, possuem a mocidade e o vigor, os talentos e a instrução, inestimáveis bens. Não os dissipem! Não convertam essas forças de vida em armas de ataque contra ninguém, e – cautela! – não maltratem, não pisem nunca com elas os humildes, os fracos! Não abusem dos atractivos da sua gentileza; não atraiçoem a confiança que inspirem nos seus contratos; não espalhem em volta de si os aristocráticos desdéns intelectuais de quem se julga, por direito divino, senhor das ideias, do saber. Nada de despotismo! Nem a paixão do estudo levem até ao olvido sequer dos outros, sobretudo dos que por seu amor mais trabalham e penam. Formem-se, não se alienem! Saber é, antes de mais nada, saber amar.»

“A Academia de Coimbra”, in A Academia de Coimbra, Coimbra, Typographia França Amado, 1906; tb. in: A Universidade de Coimbra, 2.ª ed,. Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.



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