terça-feira, 12 de março de 2013






Com a devida vénia, transcrevemos um texto da Dra. Emília Tavares, conservadora e curadora para a área da Fotografia e Multimédia no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, em Lisboa.








Benoliel despedindo-se de Bernardino Machado  -  1917

“DISPARANDO” A REVOLUÇÃO

Emília Tavares

Visualizemos uma multidão, citadina, explosiva, envolvida, exultante, sequiosa desair à rua. Visualizemos Lisboa – a eterna capital - , não do reino apodrecido, mas duma nova res publica que exibia o moderno conceito de cidadão como o seu símbolo e motivação.
Por entre esta multidão de cidadãos circula também um novo habitante citadino, o foto-repórter. A fotografia encontra-se com a política, em plena Revolução Republicana, numa fase de crescimento e afirmação da imprensa ilustrada, num momento em que a imagem toma grande importância no significado da notícia, diálogo sem palavras, que vai submetendo a palavra escrita ao seu primado, à sua força comunicacional. Etapa muito importante no desenvolvimento do fotojornalismo nacional moderno, em que a banalidade noticiosa de hoje representa novidade no passado.
A construção dos mitos a que toda a história obriga, há muito que entronizou um destes foto-repórteres - Joshua Benoliel (1873-1932) - como o expoente máximo dos primórdios do fotojornalismo em Portugal e um dos principais fotógrafos da República. Benoliel que tinha sido um dos “fotógrafos da Casa Real”, nomeação atribuída só aqueles que se destacavam na nova arte da fotografia e que apresentavam excelência ao retratar a nobreza, será também o principal fotorepórter dos tempos da República.
Sorte a sua e a nossa, que política, fotografia e imprensa se tenham encontrado de forma tão frutuosa no início do século XX, tecendo um imenso retrato da sociedade e da época. Os jornais, agora ilustrados, (Illustração Portuguesa, O Ocidente ou Brasil-Portugal) tiveram uma grande expansão no início do século XX, mercê dos desenvolvimentos tipográficos que permitiram a impressão directa da fotografia na página do jornal, sem a mediação da gravura como acontecia até então. Este avanço tecnológico permitiu a inclusão da fotografia na notícia de forma cada vez mais realista e rigorosa, assumindo um papel editorial de relevo.
Mas nem só das fotografias de Benoliel se alimentaram as notícias ilustradas, também António Novais, Alberto Lima ou Arnaldo da Fonseca foram nomes de referência destes primeiros tempos do fotojornalismo moderno. Além de que a história da fotografia e das ideias faz-se para lá dos autores, integrando-os numa visão mais complexa e transversal do seu trabalho com todos os factores que nele  influíram e dele são reflexo.
Assim, percorrer as páginas dos principais jornais ilustrados deixa-nos essa visão duma sociedade em mudança, em que a cidade é habitada em massa pelos migrantes rurais na demanda de melhores condições de vida na capital. São estes novos habitantes da cidade que os dirigentes republicanos querem ao seu lado na fotografia. Enormes manchas humanas rodeiam os novos oradores republicanos, os novos rostos dum regime que se foi anunciando, enquanto alguns dos espaços públicos da cidade tornam-se referências de ocupação política, como o largo do Município, a Alameda ou a Avenida da Liberdade.
É através das fotografias publicadas que se vislumbra o desenho de uma nova geografia política e social, transferindo-se das residências privadas monárquicas para os espaços públicos citadinos republicanos.
Se a Monarquia, até ao Regicídio, surgia retratada em retratos oficiais ou nos eventos sociais da sua classe, como as caçadas em Vila Viçosa, após este acontecimento fracturante para a continuação do regime monárquico, ensaiará os passos da mediatização por via do fotojornalismo. A última família real, que tão entusiasticamente adoptara a fotografia como hobbie, perante o crescendo das imagens republicanas de comícios repletos de povo, passará também a ser fotografada nas ruas, visitando instituições públicas e sociais, marcando presença nas calamidades. O regime monárquico, na sua estratégia de sobrevivência política, contemplou também uma nova imagem pública que o rei D. Manuel II e a rainha D. Amélia perseguiram, procurando retratar-se numa relação mais directa com os banhos de multidão, numa competição que será perdida para o movimento republicano.
A ideologia jamais deixará de conviver com a imagem, e o princípio da história da propaganda política visual do século XX, encontra também neste período o seu início frutuoso e diversificado. Alguns dos principais rostos do ideário republicano, como Bernardino Machado, João Chagas, Afonso Costa, Alexandre Braga, José Relvas ou Augusto de Vasconcelos povoaram as páginas dos jornais de então, sobretudo em comícios de propaganda das ideias republicanas. De pé, em modestas e improvisadas tribunas, no meio da rua, rodeados por uma enorme massa humana, os líderes republicanos foram retratados no momento dos seus discursos, gestos inflamados, poses decididas, arquitectando a revolta e construindo o seu protagonismo mediático, através da evidência fotográfica.
Os protagonistas políticos da República ensaiavam, desde os tempos da Monarquia, os passos da sua mediatização, e o cenário que escolheram tem quase sempre como pano de fundo a multidão, quer seja nos comícios propagandistas, quer na hora da consagração e da tomada efectiva do poder.
O “banho de multidão” tornar-se-á a imagem política de marca republicana, inaugurando aqui um novo modelo de representação e propaganda.
A catadupa dos acontecimentos do ano de 1910 exigia foto-repórteres rápidos, notícias em cima do acontecimento. Os desenvolvimentos técnicos da fotografia, no início do século XX, iriam permitir acompanhar de forma mais imediata a realidade. Contudo, capacidade técnica dos equipamentos fotográficos não permitia efectuar mais do que meia dúzia de disparos de cada vez, sem que fosse necessário de novo mudar o chassi, regular a luz, carregar a máquina com novos clichés, as pesadas e frágeis placas em vidro 9x12 ou 13x18cm. A velocidade de “disparo” do fotorepórter não era de todo a que hoje conhecemos, as hipóteses da “boa foto” eram mais falíveis, exigindo um labor imenso.
Se o tempo histórico corria então veloz, o foto-repórter desdobrava-se em perícia técnica, desafiando as limitações da mesma, num afã de tudo fotografar, tornando-se o verdadeiro “caçador” do instantâneo, alguém que quase antecede o acontecimento. O foto-repórter faz também parte desse novo tempo da Modernidade, em que a percepção vai perdendo o seu recato e estilo contemplativo, a favor duma vida mais trepidante que acompanha uma nova época de progresso, traduzida em velocidade, a todos os níveis, desde a locomoção à comunicação.
A revista Illustraçao Portuguesa, de inspiração republicana, dominava o novo panorama da imprensa ilustrada, e no dia da Revolução publicava as imagens que contavam toda a história dos acontecimentos nas ruas. Mais em jeito de pose do que de instantâneo, o povo e os militares (outra Revolução mais tardia e tão
desejada, se representaria assim) eram os protagonistas principais. Entre o ar circunspecto e a celebração, grupos de homens desfilaram perante a câmara de Benoliel, também ele o herói repórter da Revolução Republicana, cujas imagens atravessariam fronteiras noticiando a mudança de regime, por exemplo, na prestigiada revista ilustrada francesa L’Illustration.
Para além dessa imagem de proximidade física e simbólica do poder com quem lhe está submetido, os novos chefes políticos ensaiam a modéstia, retratando-se no meio do povo, querendo demarcar-se de toda a história passada de domínio hierárquico monárquico.
O líder republicano que melhor protagonizou este encontro singelo com o povo foi, sem dúvida, o escritor, filósofo e ensaísta Teófilo Braga, o primeiro chefe de governo provisório da República (1911) e o segundo Presidente (1915). É já célebre a famosa reportagem de Benoliel sobre um dia na vida deste chefe de governo retratado no seu quotidiano simples, deslocando-se de eléctrico, cruzando-se com a gente humilde; imagem política cuja proximidade se vê reforçada nesse tributo ao seu desempenho político, em 1912, perdido no meio duma multidão, em jeito de prenúncio dum fim de vida solitário.
O caos que tantas vezes impera nas imagens citadinas destes tempos, em plena Revolução ou mesmo antes dela, será um dos argumentos do Estado Novo para desferir o ataque político contra a Primeira República. As massas vistas pela objectiva do fascismo serão de novo um cenário, mas desta feita ordenado, obediente, sem mácula de insubmissão, em que a hierarquia e o seu incontestável chefe, Oliveira Salazar, voltam a ter uma escala que se agiganta perante o povo.
Uma fotografia especial parece afirmar-se como o símbolo do fim da quimera republicana e também o fim de uma primeira época de desenvolvimento do poder da imagem: aquela em que Benoliel se despede do presidente Bernardino Machado, em 1917, aquando da sua destituição e exílio. Uma nova era de informação tinha sido inaugurada com o início da fotoreportagem, outra se desenhava, em contexto politico bem diverso, com outros meios e outros protagonistas.
Hoje, felizmente, pode discutir-se a interpretação da história, hoje sabemos mais sobre o modo como a sociedade da informação, mais visual que nunca, condiciona a apreensão da realidade, manipulando a nossa capacidade de interpretação dos factos. Hoje estamos mais avisados, mais cultos visualmente, ou deveríamos estar. A história das imagens e dos foto-repórteres da República é também a história do mediatismo político, e é um excelente ponto de partida para continuarmos a reflectir sobre o ainda actual poder da imagem na sociedade contemporânea.








1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente!
Abraços

L.