Professor Norberto Cunha, Coordenador
Científico do Museu Bernardino Machado
Com a conferência de hoje
do Professor Fernando Catroga, que vai falar-nos sobre os fundamentos
filosóficos da maçonaria, do maçonismo, fechamos a primeira parte do ciclo de
conferências sobre a Maçonaria, que vai ser retomado em Setembro. Só queria
dizer algumas palavras sobre o Prof. Fernando Catroga, não muitas. Só queriam
que soubessem que o Prof. Fernando Catroga é uma das referências da nossa
cultura portuguesa contemporânea pela sua originalidade, escreveu imensas obras,
imensos trabalhos, desde Voltaire à secularização, o republicanismo, sobre a
historiografia, a teoria da história. São trabalhos que valem a pena ler e
revisitar, não só pela frescura intelectual, até pelo prazer de o lermos, porque
quando o lemos temos sempre algumas perplexidades, são trabalhos que suscitam
problemas, interrogações, e, por isso, tornam-se particularmente interessantes.
Penso que isso se deve a uma matriz filosófica da sua escrita; e entre todos os
livros que escreveu, trouxe este, que se chama "Entre Deuses e Césares:
secularização, laicidade e religião civil". É um livro interessantíssimo, do
melhor que se publicou neste país nos últimos anos, e tudo o que o Prof.
Fernando Catroga escreve deve-se ao seu pensamento original e ter uma visão
muito sui géneris, muito própria deste país e da nossa cultura. Por isso, é um
privilégio para este Museu, e para esta autarquia, tê-lo entre nós, nunca se
escusando aos nossos convites.
Professor Fernando
Catroga
É com muito gosto que mais uma vez aqui estou, nesta
casa, é uma colaboração que já tem anos, e queria felicitar o Museu pelas suas
múltiplas iniciativas e por ter trazido este tema, mas a mais sabendo que não
foi a reboque da repentina atualidade que ele ganhou entre nós, já que já estava
planificado. Às vezes são as coisas que vêm ter connosco, embora seja muito
difícil convencer os outros de que foi o cruzamento das linhas do
acaso.
Com o convite do Prof. Norberto Cunha, percebi a razão do mesmo,
devido aos meus trabalhos sobre a Maçonaria, que ultimamente não me tenho
dedicado muito. Não sou maçon, julgo que é importante dizer isso. Digo isto, e
não tendo nada contra a Maçonaria, para sabermos o lugar de onde falo e para
também justificar a perspetiva que aqui vou privilegiar. É uma perspetiva que,
talvez a expressão mais correta, seja o conceito externalista, mesmo quando
possa convocar afirmações, ou documentos, em que esta dimensão externa se
repercute no interior da Maçonaria, particularmente, e, precisando um pouco
melhor, no maçonismo, sem entrar numa querela que me parece que faz muitas
confusões a presuntismos ou a anti-presuntismos, saber quem é que está primeiro,
isto é, se foi a maçonaria que produziu as coisas, ou se havia conjunturas que
devem ser mobilizadas para explicar como é que a configuração de uma nova
sociabilidade, a partir de um certo momento, vai perfilhar princípios, ideias e
valores, que vai organizar-se como uma sociedade ritual, e que vai estar, de
facto, num dos grandes momentos que nós podemos chamar de os momentos inaugurais
da modernidade ocidental.
Não vou falar da Maçonaria portuguesa, não vou
falar dos ritos maçónicos (sou um leigo nesta questão), não vou falar também das
origens míticas da Maçonaria; e, por isso, falo da Maçonaria moderna,
precisamente com esta ideia: a transmutação, que na linguagem da evolução neste
tipo de organizações se costumam designar, e já ouviram falar noutras
conferências, da passagem de uma Maçonaria operativa para uma Maçonaria
especulativa. Sendo especulativa, é preciso saber o que é que eles entendiam por
isso, sobre o que é que especulavam e quais eram os seus fundamentos e quais as
finalidades dessa especulação e qual era a novidade quando confrontada com as
chamadas dimensões corporativas de organização das profissões, como a dos
pedreiros, que trabalhavam a pedra propriamente dita, e que vão agora decidir
incorporar mais como metáfora numa nova Maçonaria, no que diz respeito à sua
origem social, recrutamento, até aos dias de hoje. Assim, vou falar
essencialmente desta Maçonaria especulativa, que vai ter o nome de
franco-maçonaria. Ao contrário do que se pensa, não é porque ela vem de França,
é, pelo contrário, o termo, a definição da palavra que parece designar uma
espécie de assunção metafórica da Maçonaria operativa, no sentido de que dentro
das lojas o homem, quando é iniciado, é como a pedra bruta, que precisa de ser
trabalhada, de ser lapidada, e agora, neste novo horizonte, pressupondo a ideia
de que deve ser uma espécie de ascensão, a caminho do auto-aperfeiçoamento, à
luz dos princípios que remetem, quer queiramos quer não, para um fundo
filosófico.
Não venho aqui defender que a Maçonaria é uma filosofia, mas há
definições, até estatuárias dos grandes orientes, que defendem a Maçonaria,
principalmente no século XIX, como uma associação filosófica, filantrópica, uma
associação que visa, em última análise, o aperfeiçoamento dos seus membros, com
o motor do aperfeiçoamento de uma outra identidade que é típica da conjuntura em
que emergiu a Maçonaria especulativa, e que, de facto, está bem longe da
dimensão das chamadas maçonarias operativas, cuja identidade chama-se
"Humanidade". Chama-se "Humanidade" ou chama-se "Homem", definido numa
perspetiva e há luz de uma certa dinâmica que, em última análise, para que
possamos fazer depois o lançamento daqueles conceitos, fazer uma espécie de
gramática de conceitos, que acabam por ser fundacionais dum percurso que não
sendo uma filosofia, incitam a filosofar, e que está centrado em algumas ideias
e alguns valores que, afinal, os fundadores acabam por bebê-los nos grandes
movimentos de transformação mental que a Europa sofreu, particularmente a partir
das guerras religiosas, da guerra dos 30 anos, enfim, todo o séculoXVII e o
século XVIII, o impacto de novas filosofias, quer de carácter empirista, quer de
carácter racionalista, na sua conjugação, o impacto da revolução científica
moderna, particularmente com Newton, e, no fundo, a emergência de novos
conceitos sobre o fundamento da política, do conceito de soberania, e a
emergência também, de novas atitudes em relação ou as relações entre a sociedade
política e o religioso, que vai colocar na ordem do dia, por exemplo, a ideia da
tolerância, a tolerância civil. isto para dizer que este trabalho de esculpir a
matéria a partir da pedra bruta e que vai carpintar, do ponto de vista
metafórico, a Maçonaria especulativa, pressupõe quanto a mim fundamentos
exteriores à própria Maçonaria, para que nós depois possamos também perceber,
por exemplo, o próprio texto fundacional desta Maçonaria especulativa. Refiro-me
às Constituições de Andersen, de 1723, que irei aqui ler duas ou três partes, e
que irei comentar talvez de uma forma heterodoxa, que julgo que é uma das
matrizes dessa modernidade que vem de Locke e dos seus discípulos, a questão e o
exercício do livre-pensamento, conceito que vai, aliás, depois influenciar toda
a Maçonaria.
Esta mutação, ou esta emergência de uma Maçonaria
especulativa, está muito ligada à cultura britânica. Para alguns terá começado
na Escócia, mas é evidente que é, sobretudo, em Inglaterra, e dentro da
Inglaterra em Londres, que ela vai, de certo modo, instituir-se com a Loja de
referência das chamadas maçonarias regulares, caso da Grande Loja de Londres
(1717) e que depois, de facto, vai crescer: em 1725 já tinha 23 lojas e, em
1733, contava já com 126 lojas. E vai ter duas figuras preponderantes, que eram
duas figuras religiosas, protestantes, um James Andersen, e que em colaboração
com um inglês, filho de perseguidos religiosos franceses, que vão dar feição
original, digamos, constitucional, a esta Maçonaria especulativa. Este
descendente de filhos franceses que não é muito falado, Désaguliers, amigo de
Newton, ele próprio um grande cientista, membro da Sociedade Real, onde se
reuniam os grandes sábios, ligado á física experimental, e, simultaneamente,
teólogo e um grande apologista da nova ordem, de tal modo que a propagação da
Maçonaria em outras regiões da Europa se deve ao seu ativismo. Podemos dizer que
foram estes os dois pais fundadores da Maçonaria especulativa, que tem, de
facto, como pátria, a Inglaterra. É daí que ela depois se vai irradiar numa
longa história, que vai ter as suas heterodoxias, que vai ter as suas divisões,
mas que vai passar por Hamburgo (1727), Madrid (1728) - estou a falar das
primeiras lojas -, Gibraltar (1729), Paris (1732) e Lisboa. Continua-se a
discutir se a primeira loja constituída por britânicos é de 1727, mas pelo menos
há alguma notícia dessa loja, segundo o registo da Inquisição, como sendo a Loja
dos Hereges Mercadores, e que depois se regularizou, segundo notícia na Grande
Loja de Londres, estando ligada muito esta às comunidades estrangeiras,
sobretudo ligadas ao comércio, e que vão, enfim, dar origens a lojas como O
Grande oriente Lusitano, a qual, com alguma estabilidade, e com o impacto dos
oficiais britânicos nas guerras, nos finais do século XVIII e depois nas
invasões napoleónicas, que essa Maçonaria se consolida em Portugal e que cada
vez mais incorpora portugueses, ou então surgem por iniciativa de portugueses,
sendo lojas estritamente nacionais.
O impulso britânico marcou muito esta
génese por razões que se prendem essencialmente com o desenvolvimento de um
pensamento de carácter científico-experimental muito forte e que vai culminar
com a nova visão do universo, chamada a visão mecanicista do universo, que é
dada pela nova descoberta de Newton. Newton era um crente que tinha grandes
dúvidas, por exemplo, do conceito da Santíssima Trindade, e esta ideia, que foi
muito cultivada e que esteve muito subjacente ao pensamento europeu, sobretudo
com o impacto das guerras religiosas, a maior de todas a Guerra dos Trinta Anos,
mas depois também a guerra civil na Inglaterra entre os Tudors e a Casa de
Hannover, as emigrações para a América, os grandes debates sobre a possibilidade
uma paz civil e quais são os limites que se devem pôr ao religioso para que o
político possa garantir a prossecução do bem-comum, sobretudo, quando se
convocava Deus, um Deus que era um Deus teísta, isto é, um Deus antropomórfico,
um Deus do Cristianismo, um Deus interventivo, mas que com as várias leituras
que começaram a ser feitas, e com os cismos do próprio Cristianismo, aquilo que
deveria ser o fundamento da verdade, Deus uno e indivisível, passou a ser motivo
de discórdia e a impossibilidade da paz civil nas comunidades politicamente
organizadas. E, por isso, o debate sobre a tolerância, a partir de determinado
momento, a tolerância que era em alguns teólogos uma tolerância religiosa,
afinal, as religiões do livro deveriam tolerar-se umas às outras. Ora, o que
acontece de novo, nesta contenda, que vai levar à emergência de uma série de
ensaios marcantes, ainda hoje no pensamento ocidental, é a conotação que é dada
à tolerância, e que tem a sua melhor expressão num refugiado, naquilo que era a
pátria de todos os heterodoxos deste período, fossem católicos, huguenotes,
anglicanos, na Holanda. É precisamente na Holanda que, estou a referir-me a
Locke, que as suas célebres "Cartas sobre a Tolerância" devem ser lidas e
articuladas com os seus ensaios políticos e com a sua teoria do conhecimento, de
carácter empirista, interessando-nos aqui o uso do conceito da tolerância, para
questão a tolerância civil, e que, de certo modo, vinculando algo que depois
Voltaire, no seu ensaio sobre a Tolerância, uns anos depois, vai retomar, e que
é, afinal, a necessidade de uma reorganização do político e do espiritual, de
maneira a que a sociedade política possa ser garante da paz civil e, para isso,
era preciso que o religioso refluísse para a esfera do privado, ou para a esfera
do direito associativo para prática da crença, em suma, encontramos em Locke,
pela primeira vez, e de uma maneira sistematizada, a defesa da necessidade da
separação da Igreja do Estado. Em termos conceptuais, dizemos que isso é uma
conjuntura onde se assiste ao fenómeno da secularização: vamos assistir à
secularização da natureza, isto é, cada vez mais se reivindica a autonomia do
entendimento humano, porque se acredita na autossuficiência da razão, ou que se
acredita pela combinatória entre a razão e o mundo dos sentidos, o mundo da
experiência, o homem consegue perceber a legalidade, as leis do próprio
universo, esta crença de que o homem pode, no fundo, chegar às leis científicas,
pode ter um saber totalmente seu sobre a natureza, a expressão é de Francis
Bacon no seu "Organon", tendo esta conjuntura, como pano de fundo, uma mudança
nas elites intelectuais e muitos deles ligados à prática científica, aquilo que
nós na linguagem técnica chamámos de Deísmo. O que é o Deísmo? O conceito de
Deísmo é um conceito que tem a ver com o significado de religião natural. A
crença de que o homem se basta a si próprio, é porque o homem é um ser
naturalmente religioso e polissémico, é o modo como ele manifesta essa sua
necessidade, embora se aceitasse que o Cristianismo tinha sido ou seria a forma
superior de expressar essa necessidade, isso significa que o Cristianismo não
poderia ser o exclusivo do monopólio da verdade. Mais: o seu estatuto, o
Cristianismo como religião revelada, mas revelada por Deus a homens que por sua
vez escreveram a revelação, o próprio livro deveria ser objeto científico. A
natureza é um livro que está escrito em linguagem matemática, diz-nos Galileu;
mas esta conjuntura também vai dizer algo, e que começa com Espinosa: os
próprios livros religiosos, afinal, são históricos, na medida em que foram
feitos pelos homens e, portanto, é necessária a historicidade, a través de um
método histórico-filológico; e tudo isto conjugado com outros fatores, ficava
bem, sobretudo no pensamento anglo-saxónico, com repercussões imediatas em
França, com fundo de Deísmo, não do Teísmo, porque o Deus criador do Teísmo é o
Deus-pessoa, o Deus do Deísmo é mais um Deus-geómetra, é o Supremo Arquiteto do
Universo, é o Deus que é logos, razão, e se é razão criou o homem à sua imagem e
semelhança, e logo o homem também é à sua maneira Deus na terra, e a razão do
homem consegue compreender a racionalidade que Deus inevitavelmente tinha que
inscrever na ordem das coisas, como é o caso do princípio da razão suficiente de
Leibniz, não só das coisas, mas da própria história. Há uma razão na História
que a razão do homem pode compreender. E pergunta-se: e Deus não intervém na
natureza, no terreno da história? Sim, o Deus da crença popular, o Deus das
religiões, o Deus do Teísmo ainda acredita nisso. Só que o Deus do Deísmo é um
Deus criador do universo, do homem, mas é um Deus indiferente em relação ao
universo e ao homem, como quem diz, é o Deus que escreveu uma ordem das coisas,
o homem à sua imagem e semelhança e, portanto, o homem tem em si a capacidade
para compreender as coisas, porque elas têm uma lógica, elas têm uma
racionalidade, sendo necessária a sua compreensão. E quando se pergunta que Deus
é este, sem dúvida que, aparentemente, vê-se o Deus da religião do livro, mas já
não é o Deus das igrejas, é o Deus que aceitou a sua transcendência e a sua
indiferença ao mundo, é um Deus, de certo modo, da religião natural, que diz os
modos diferentes de celebrar o sagrado. Em última análise, exprime-se este
princípio unitário que está para além das religiões feitas propriamente ditas e
que são da ordem da natureza. Deísmo, mecanicismo e outros conceitos, são chaves
para que nós possamos entender o documento fundador da Maçonaria
especulativa.
Aliás, as Constituições de Andersen, já o dissemos, foi um
produto de conjunto, entre Andersen e Désaguilers, imbuídas de Deísmo e que as
maçonarias irregulares que depois irão aparecer irão constituí-las como
documentos de referência. O que vou tentar fazer agora é uma análise
internalista e vou procurar fazer um exercício hermenêutico daquilo que está
dito, o seu significado, mas o seu significado epocal, sem cair em anacronismos.
O que é que verdadeiramente queremos dizer quando esta Constituição foi escrita?
Diz ela: "Um maçon é obrigado pela sua condição a obedecer à lei moral; e se
compreender corretamente a arte, nunca será uma teu estúpido, nem um libertino
irreligioso". Mas, embora nos tempos antigos, os maçons fossem obrigados em cada
país, a serem da religião desse país, ou nação qualquer que ela fosse, julga-se
agora mais adequado obriga-los apenas àquela religião na qual todos os homens
concordam, deixando a cada um as suas convicções próprias, isto é, a sempre
homens bons e leais, honrados e honestos, quaisquer que sejam as denominações ou
crenças que os possam distinguir. Por consequência, a Maçonaria converte-se no
centro de união e no meio de conciliar uma amizade verdadeira em pessoas que
podiam permanecer sempre distanciadas. O que é que aqui se vê? Uma referência ao
horizonte das guerras religiosas, uma referência muito clara a um velho
princípio que vem já da Idade Média e que depois teve várias traduções: a sua
dimensão teológica, fora da igreja não há salvação e na sua dedução teológica
política, a cada reino a sua religião: "Os súbditos têm que ter a religião do
Rei", ou ainda algo que ficou consagrado no Tratado de Vestefália, quando houve
grandes movimentos de populações de maneira a procurar uma teórica homogeneidade
entre as religiões e o político, e que os franceses foram os paladinos desta
consignação na fórmula "Une Foi, Un Roi, Une Loi". Bem, para não falarmos dos
países do sul da Europa, onde o olho da Inquisição funcionava; e, por isso, esta
Maçonaria especulativa, ela quer ser um lugar de pluralismo religioso, mas
demarca-se simultaneamente do "ateu estúpido" ou do "libertino irreligioso" (e
isto vai colocar a questão, tempos depois, se os ateus ou não devem ser
incluídos na Maçonaria). É que a virtude da literatura sobre a tolerância do
século XVII e mesmo no século XVIII, tem uma abertura tal de tolerância civil em
relação às religiões, sendo uma tolerância que pressupõe um intolerante, ou uma
intolerância fundamental (Locke), enquanto que um outro, perseguido e que estava
em Amsterdão, Pierre Bell, vai contestar, dizendo, o ateu deve ser tolerante em
relação ao ateu, assim como em relação aos católicos, aos papistas, porque
obedecem ao Papa, logo não têm autodeterminação, e o ateu deve ser intolerante
porque o ateu não acredita na essência de Deus e na imortalidade da alma, não
pode dar garantias pelo fundamento da responsabilidade ética para sua própria
ação; e porquê? Porque não tem medo do juízo final. Por isso, esta referência ao
"ateu estúpido" relaciona-se muito com aquilo que vão ser as premissas desta
Maçonaria especulativa, sob o ponto de vista metafísico. Primeiro: a evocação do
Supremo Arquiteto do Universo, um Deus que é um Deus de todas as religiões, a
exclusão dos ateus, precisamente porque o ateu não se sabia comportar, obedecer
à lei moral porque não tinha mediação do juízo final para as suas ações. De
qualquer modo, Já nesta conjuntura, Pierre Bell é o primeiro a dizer "sim", já
que o ateu pode ser eticamente tão responsável como o crente, porque "conheço
ateus que só fazem o bem e conheço crentes que só fazem o mal". Esta ideia de
que o caminhar para uma sociedade que, em última análise, o princípio de
homogeneidade do religioso com o político, que era uma condição metafísica que
vinha da Idade Média, segundo a qual se acreditava que uma sociedade
religiosamente pluralista iria prejudicar aqueles crentes na ressurreição final
dos corpos, dessa dimensão coletivista; e, por isso, a ideia da homogeneidade do
político e do religioso tinha justificação teológica e que ela se vai traduzir
de facto nestes princípios e que é uma das bases das guerras religiosas no
século XVIII.
Vejamos outro passo das Constituições de Andersen: "Um
pedreiro é um súbdito tranquilo do poder civil, onde quer que resida o trabalho,
e nunca deve promiscuir-se em planos e conspirações contra a paz e o bem-estar
da Nação, nem contrapor-se indevidamente para com os magistrados inferiores.
Porque, como a Maçonaria tem sempre sido prejudicada pela guerra, a infusão de
sangue e a desordem, assim os antigos reis e princípios dispuseram a encorajar
os artífices por causa da sua tranquilidade e lealdade, por meio das quais
respondiam na prática às cabilações dos adversários e concorriam para a honra da
fraternidade, sempre florescente em tempo de paz."
Esta ideia de que nas
lojas não se deve discutir política, mas sim discutir princípios que ajudem a
elevação espiritual dos seus membros, isto está, de facto, na letra e no
espírito nas Constituições de Andersen. Em suma, a Maçonaria especulativa, uma
das faces daquele grande movimento da história das ideias que designamos por
Iluminismo, estando em causa uma visão antropocêntrica do mundo, uma visão onde
o teocêntrico, mesmo que esteja pressuposto, fica cada vez mais distante como
critério invocar das ações práticas, ou mesmo do pensamento. Aliás, quando Kant
responde á pergunta o que é o Iluminismo, responde que á a passagem da
menoridade para a maioridade do homem, isto é, quando o homem faz um bom uso da
sua razão, não obedecendo a algo que seja exterior aos imperativos da sua
racionalidade, estando aqui o problema de uma moral autónoma, que se demarca de
uma moral heterónoma, estando esta sujeita ao sujeito da autoridade. Por outro
lado, a ideia de que a livre discussão pautada por critérios racionais traz a
luz, ilumina. Insto inscreve-se na velha tradição do pensamento ocidental da
metáfora da luz, que a Maçonaria vai incorporar precisamente agora com estas
mediações, mas também vai incorporar uma outra faceta, que é a ritualística, a
ideia de que uma sociedade iniciática que acaba por reproduzir não só a metáfora
da morte e da ressurreição, mas, no fundo, toda uma velha tradição da cultura
ocidental, que talvez a alegoria da caverna de Platão seja o exemplo mais típico
da escuridão, havendo a necessidade de fazer uma ascese, uma ascese por degraus,
para que cada vez mais, através da luz, o homem se transformando a si próprio,
transforma o mundo que o rodeia.
Assim, a Maçonaria, do ponto de vista
aos condicionamentos, toca, no conjunto daquelas correntes defensoras de uma
visão mais antropocêntrica do mundo, crendo, não numa independência do homem em
relação a Deus, porque não se trata ainda nem sequer de um quadro agnóstico,
muito menos ateu, mas na ideia de que o homem através da capacidade do
entendimento, na linguagem anglo-saxónica, através da razão, desde que não
esteja coacto, isto é, que deixe que o pensamento seja livre, ele consegue
verdades demonstradas pela ciência, consegue verdades deduzidas, através da
racionalidade, e, portanto, consegue criar conhecimentos e são conhecimentos que
podem ser postos ao serviço do aperfeiçoamento do próprio homem. Há quase uma
dimensão mística na Maçonaria e ela vai nascer sob o impacto das ciências
experimentais e, de qualquer modo, os seus fundadores vão produzir mecanismos
mais ligados à reinvenção do passado que parece que vão entrar em contradição
com a componente iluminista, projetando a ideia de pensadores-livres, estando
patente aquilo a que nós podemos chamar de cultura liberal. A questão dos
valores, como a do livre-exame e outros valores que vão estar consignados na
cultura iluminista, e, também em alguns maçons de matriz anglo-saxónica, nos
Estados Unidos, com a emergência das declarações, nomeadamente na Virgínia, dos
direitos do homem, onde nós vamos encontrar consignados esta visão
antropomórfica, baseada numa ideia de que há uma natureza humana que só por si é
o paradigma mais unificante de que o próprio Deus das religiões propriamente
ditas, porque este Deus tinha dado origem a guerras, e acreditava-se que como a
natureza humana, a partir da inferência daquilo que lhe é natural, que lhe é
essencial, como fonte inspiradora dos direitos positivos, das normas de uma
moral autónoma, talvez a paz entre os homens fosse mais possível de garantir do
que, afinal pela garantia que era da pelo peso dominante do religioso em relação
ao político. E é por isso que a Maçonaria vai ser sensível a algo que surge
nesta época, muito ligado ao princípio da tolerância, numa visão otimista sobre
o homem, na capacidade do próprio homem ir-se aperfeiçoando, na metáfora do
trabalho do pedreiro, e a ideia de que há uma natureza humana, havendo um
desfasamento entre aquilo que é da ordem da natureza humana, com os seus
aprioris definitivos, sendo colocada como fonte de inspiração das próprias
constituições, mas ela própria como ação do homem, porque afinal o homem pode
fazer-se a si mesmo, no sentido de que quanto mais ele se realizar
historicamente daquilo que é da sua natureza, quanto mais ele conseguir
racionalizar a ordem social, a ordem política, etc., mais humano se pode
concretizar. Este otimismo antropológico vai ser expresso, por exemplo, numa
espécie de utopia, uma utopia humanitarista, que se traduz, por exemplo, no
projeto da paz perpétua, na possibilidade de um dia o homem conseguir controlar
propriamente o seu destino, a guerra, mesmo existindo o conflito, ela era
arbitrária (Abade Saint-Pierre), sobretudo Kant, fazem disto, afinal, a
inscrição de uma visão otimista do homem, que tem como raiz o seu
antropocentrismo, expressando um dos valores muito fortes da Maçonaria, que é a
sua dimensão ao serviço da humanidade, e é preciso aqui dizer que a humanidade,
esta expressão a "Humanidade" na cultura ocidental só passou a ser substantivo
abstrato praticamente no século XVIII. É claro que se pode dizer que os
históricos já falavam de uma espécie da identidade da natureza humana, ou que o
Cristianismo, ao contrário do Judaísmo, já quis ser uma religião universal, só
que o que agora se diz é que o homem é um ser auto-suficiente, filho de um Deus
que já não intervém, órfão, não o traz pela mão. O homem é que é o responsável
pelo seu próprio destino e, portanto, a aventura humana que tem o concreto, o
particular, ao contrário do que se pensa, o Iluminismo não defendeu a
homogeneidade, vai defender uma humanidade como uma espécie de identidade
autossuficiente que tem como situações em espaços e tempos concretos, mas que se
vai realizando em devir, a ideia de progresso, e da perfectibilidade humana. A
plena realização só se pode dar em que a parte seja inserida num todo; e, por
isso, o século XVIII, o maçonismo vai ser muito claro, vai ter uma
palavra-chave, o cosmopolitismo, diferente dos nossos dias. Termo que começa a
aparecer para no fundo dizer que os pressupostos do otimismo do homem se
realizem no particular, a uma escala universal, que deve caminhar para a
construção de um plano da cosmópolis e daí o sonho de uma república universal.
Ora, as maçonarias não vão querer ter nacionalistas, defende a sua dimensão
cosmopolita. Por outro lado, pergunta-se, como é que estes valores se irão
concretizar, e que, em última análise, poderiam funcionar como uma espécie de
guia, de uma agenda de especulação filosófica, inerente a uma sociedade de
pensadores; mas a Maçonaria não quis ser, nem quer ser, uma sociedade de
pensadores. Pelo contrário, foi uma associação que nasceu para transformar os
seus membros de modo a que estes pudessem transformar o seu próprio meio, em
termos que fossem alternativos àquilo que para eles era um fracasso da
apologética das religiões e, em particular, o Cristianismo. E, por isso, nós
hoje lemos praticamente nas Constituições do Oriente também a definição de que a
Maçonaria é uma associação filantrópica e quando se diz isto, é porque ela é
filantrópica (nos primórdios o que existia era a caridade, não havia sociedade
de socorros-mútuo), e é indiscutível que a comunidade maçónica nasce para uma
auto-protecção dos seus membros, e, portanto, muitas vezes confunde-se esse
conceito exterior à própria Maçonaria, aparecendo com ênfase, aplicando-se
também em ralação ao mundo exterior. Porquê? Porque a filantropia significa a
amizade desinteressada pela espécie humana em toda a sua extensão. É
precisamente no século XVIII que a palavra filantropia aparece e é divulgada. Um
outro termo que tem ênfase nesta conjuntura, é o termo beneficência,
precisamente porque é um termo que se contrapõe ao termo caridade, prova de que
estávamos suficientemente numa sociedade secularizada em relação aos próprios
valores, porque beneficência é fazer o bem, e a palavra foi inventada pelo
primeiro grande teórico da paz perpétua, Abade de Saint-Pierre. Mal de nós
sabíamos o futuro deste conceito, que depois vai ser aplicado a sociedades que
surgem para esses propósitos. No fundo, é esta a gramática dos conceitos
fundamentais, que influenciariam a Maçonaria, e incorporados no próprio texto da
Maçonaria, mas que esta Maçonaria especulativa, na sua fase inaugural, vai dar a
sua elaboração própria e, mais, vai enquadrá-la numa dimensão ritualística onde
há um outro tipo de cultura que parece que está em contradição com esta, tendo
sido Désaguliers que incorporou essa faceta, com a Cabala. Não há, aliás, um
Iluminismo puro, existe sempre uma dimensão sombra e de mistério, e para muitos
historiadores, este tipo de Maçonaria, ainda antes de ser politizada no Século
XIX e no século XX, os seus sucessos devesse ao facto de ter incorporado nos
seus debates nas suas sessões, nos seus pressupostos de carácter, chamemos
assim, mais iluministas, esta dimensão ritualística-simbólica. Aqui está o seu
segredo, porque há o cultivo de algo oculto, e sendo misterioso acaba por ser
atrativo. E daí esta pergunta muito polémica: em última análise, não será a
Maçonaria uma religião? Aqui sigo um autor meu preferido, George Gustorf, que
responde que sim. Mas que religião é essa? No fundo, pressupõe um Deus que é
indiferente, frio, um Deus geómetra, é arquiteto, que planifica. Assim Deus terá
feito o mundo. Mas a Maçonaria diz-nos que a razão não é auto-suficiente, só o é
numa certa perspetiva, e ela precisa do símbolo, do rito, ela precisa da
sensibilidade, da liturgia. E terá sido esta mistura, que no fundo é uma
religião que não é uma religião, é uma religião que possibilita a coexistência e
a coabitação de todas as religiões, excluíam os ateus, incluindo os católicos. A
Maçonaria, aparecendo como uma sociedade de espiritualização dos seus membros,
recoberta pelo seu secretismo, quando muito uma sociedade discreta, e, com esta
dimensão, contra algumas das suas premissas possivelmente intelectualistas, a
Maçonaria tinha o que as religiões não tinham, a crença da existência de uma
divindade, como através dos seus graus e dos seus ritos, possibilitava uma
carreira aberta, uma espécie de sacerdócio democrático em termos de loja, que de
certo modo funcionava como embrião das sociedades em via de democratização,
porque a discussão era livre, fomentava-se a argumentação, a retórica e, por
outro lado, também, através dos empenhamentos do estudo, dos rituais, todos
podiam ascender a todos os lugares, inclusive a lugares supremos. É neste
sentido que há algo de religioso, uma religião secularizada, um sagrado não
clerical, diz-nos Gusdorf, um sacerdócio secularizado.
Em suma,
independentemente das histórias da Maçonaria, a história da Maçonaria também é a
história das suas dissidências, das suas heterodoxias, das suas ligações ao
mundo profano, os seus compromissos, do seu não comprimento dos seus próprios
princípios, mas também dos seus próprios cumprimentos. Acasalando as matrizes
fundamentais da modernidade, à volta dos conceitos fundamentais, deísmo, visão
mecanicista do mundo, a edificação da humanidade, cosmopolitismo, filantropia, o
antropocentrismo, beneficência, julgo que são valores chaves para explicar o
maçonismo.
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