Do jornal "O Mundo" - nº 3475 - de 4 de Julho de 1910
(Cedido amávelmente pelo Dr. Amadeu Gonçaves, a quem deixo um abraço de gratidão)
(Cedido amávelmente pelo Dr. Amadeu Gonçaves, a quem deixo um abraço de gratidão)
O estado da nação. Conflito do regime com o povo
Meus Senhores!
Quando haverá acalmação, paz, em Portugal? Foi a monarquia que, no reinado passado, levou a nação até á conspiração revolucionária e até ao regicídio! É ela que, no actual reinado, em vez de suprimir as causas que determinam a conspiração revolucionária e o regicídio, não tem feito senão agravá-las, Logo depois da tragédia de 1 de Fevereiro, eu disse: «As tréguas do terror, venha ele debaixo ou de cima, duram pouco». E, efectivamente, à medida que se recobram do seu pavor, os serventuários do poder, os que só pelo arbítrio do poder tinham valido e esperavam valer, foram-se arregimentando contra nós, movidos por uma única ideia: a vingança, a repressão.
Com o novo reinado, entramos em pleno período emocional, clerical, em que não há governo de princípios, nem mesmo de interesses, mas só de paixões. E o que são essas paixões, vê-se pelo exemplo do jovem chefe do Estado. Que é que o sugestiona? Será o desvairamento do seu amor filial que o leva a pôr-se à frente da campanha clerical? Ódio contra o povo, proclamando, como outro dia, em resposta a um brinde político de um oficial general do exército: «Representante da monarquia, estarei à frente dela, seja onde for», ao que o principal órgão do clericalismo na imprensa fazia este expressivo comentário: «E sua majestade podia acrescentar: contra os seus inimigos, quer se digam monárquicos, quer sejam republicanos?» Não! É seu confidente e seu executor o juiz de instrução criminal, um dos homens que, segundo é voz pública, mais animada aversão tiveram a seu pai, a quem, nem depois dele morto, poupou. São, pois, paixões individuais, egoístas, sem nobreza e sem desculpa alguma.
E este é, na realidade, o estado da nação: de um lado, um regime em que cada um dos seus membros luta só e exclusivamente pelas suas satisfações pessoais; do outro, um povo que luta também com paixão, mas abnegada e humanamente, pelo bem comum, pela felicidade das suas famílias e da sua Pátria. Recrudesce, pois, o conflito político do regime com o povo.
Pela acalmação. As violências da monarquia
É preciso que se saiba que não somos nós, republicanos, que reacendemos as hostilidades. Fizemos tudo pela acalmação. Lembram-se de que, já no reinado passado, nos esforçamos por trazer a luta partidária para o campo sereno dos princípios, da discussão. E, da minha parte, contribui, quanto pude, nesse sentido.
Em 31 de Dezembro de 1903, formulando a minha profissão de fé republicana no Ateneu Comercial de Lisboa, eu traçava nos seguintes termos um plano de campanha construtiva, pacificar:
O que é indispensável é organizar as forças vivas da nação portuguesa. Organize-as o Partido Republicano e a nação salvar-se-á. É preciso que o partido Republicano, continuando a ser um partido de oposição, faça mais do que o ataque, a demolição, que já está feita. (Já então estava feita!) Transforme-se num partido de governo. Se não puder tentar a eleição parlamentar, faça por vingar a municipal; se nem no governo do município puder intervir, faça por intervir no da paróquia. Não deixe ao abandono nenhum posto, por mínimo que seja, que possa ocupar. Faça, sobretudo, por amparar todas as justas reivindicações dos pobres, dos humildes. Seja um Partido Republicano profundamente socialista. Quando os republicanos, por toda esta sua campanha, se mostravam homens de governo, tenham como certo que a República estará feita em Portugal.
Depois, em 30 de Maio de 1904, de Coimbra, nas vésperas das eleições gerais de deputados, procurando vencer as repugnâncias de vários dirigentes do Partido Republicano de Lisboa e do Porto, eu abjurava-o a tomar o seu lugar de combate junto à urna. E o partido deu-me razão. Desde então, à medida que alargávamos a propaganda, íamo-nos organizando e, a cada jornada eleitoral, íamos vendo engrossar as nossas votações até conquistarmos representação no parlamento e nas corporações locais.
Vieram, porém, as violências progressistas da eleição da Arruda, mais conhecida pelas chapeladas da Azambuja, em 1905, e os acutilamentos regeneradores de 4 de Maio após a eleição do peral, em 1906, e, como o Tribunal de Verificação de Poderes sancionasse as chapeladas da Azambuja e não desse esperança de corrigir e castigar o peral, a corrente revolucionária do Partido Republicano ressurgiu. Logo, perante o tribunal, eu exclamei na peroração do meu discurso:
Ou a nação vê que pode contar com a justiça para progredir politicamente nas reivindicações das suas reformas liberais, ou, faltando-lhes esse último recurso legal, é de rever que para viver livre e honrada, ela se lance na Revolução.
Ainda depois disso, acentuei, no comício eleitoral de Lisboa de 10 de Dezembro de 1905, que nós queríamos uma campanha ordeira, que não éramos nós que intentávamos a Revolução, mas quem incessantemente a estava provocando com os seus desmandos eram os partidos monárquicos. E, no comício eleitoral de 22 de Abril de 1906, insisti na mesma afirmação:
Nós não somos um exército acampado dentro da nação, ameaçando esmagar, exterminando os nossos adversários. Todo o nosso empenho é reuni-los, liberalmente, fraternalmente connosco dentro da grande família republicana. Para o conseguir, laçaremos mão de todos os recursos legais, exercitaremos até ao último, até ao mínimo, os direitos que ainda nos deixaram.
Mesmo depois da Azambuja e do Peral, mesmo depois do 4 de Maio, eu, num intuito de pacificação, reclamava ainda do chefe do governo garantias para o exercício dos direitos de manifestação e de eleição.
O consulado de João Franco. Até ao regicídio
A monarquia não nos quis ouvir; veio João Franco e tudo foi de mal a pior. Ele começou por nos fazer a cena do Chico Teso, e eu adverti-o: «Cautela! Queremos combater legalmente e não nos deixam!» Expulsa-nos depois, brutalmente, dois dos nossos deputados do parlamento, tingindo-se do sangue do operário Oliveira Barros, fuzilado na manifestação que em honra deles fez o Porto, em 1 de Dezembro, e o Directório do Partido Republicano clamou ao país no seu manifesto:
Não vamos encarniçadamente para lutas sangrentas. A revolução que tudo anuncia para breve, tão necessária, até por decoro, ao saneamento da nossa vida política, não a fazemos só nós, republicanos, há-de fazê-la connosco, varonilmente, a nação inteira.
Sobrevém o cartel de guerra da ditadura e, com ele, o assassínio do negociante Braga e do estudante Arcanjo em 18 de Junho, no Rossio, em Lisboa: a corrente revolucionária cresce e precipita-se. E, desde que o despotismo do governo proíbe e impede toda a discussão e fiscalização dos seus excessos e abusos de poder, já não há nada que a detenha, e a obrigação imperiosa do Partido Republicano era então disciplinar essas forças de resistência e de luta. O Directório compreendeu-a e cumpriu-a.
Mas, lutamos sempre humanamente. Logo no advento de João Franco, receoso por ele, que era o autor da lei celerada de 13 de Fevereiro, eu, que mantinha ainda as minhas antigas relações particulares com ele, fui à estação do caminho-de-ferro em Coimbra dizer-lhe adeus, querendo assim significar por uma acto de evidência pública que o nosso combate aos adversários não devia nunca transformar-se em ataque pessoal contra ninguém. E, a respeito da pessoa do rei que disse eu, com apoio do partido? Já depois da Azambuja, disse:
Como havemos de implantar a República em Portugal? Devemos proclamá-la como outro dia a aclamamos-la em Loubet, sem violências, sem agravos a ninguém. Iam, lado a lado, um presidente da República e um chefe de monarquia e não injuriou o chefe da monarquia. É assim que intentamos a mudança de instituições.
E já D. Carlos marchava com João Franco para a reacção e eu fui ainda mais explícito:
Urge combater vivamente; mas não vamos combater, é claro, com injúrias, com violências. Não está isso no ânimo de nenhum de nós, não podia estar no meu. Para mim, a pátria é a grande família, e eu não corto nunca as minhas relações particulares por causa das minhas divergências políticas. Quero mesmo, eu, que fui ministro da nação e que tive, então, com o chefe de Estado relações pessoais, a liberdade, o direito pleno de o visitar amanhã, se alguma desgraça o ferir na sua família, sem despertar a suspeita de ninguém. É a minha soberania individual, de que não abdico.
E, quando o direito da ditadura chegou a atacar não só os nossos direitos políticos, mas também os nossos direitos civis, não deixando apelação sequer para os tribunais ordinários – através de todas as estimulações dos monárquicos governamentais, que zombetearam: então não se saem? dos monárquicos oposicionistas, que entranhavam; nem uma desfeita nas suas! – o Directório publicou a seguinte declaração categórica: “Drectório Republicano julga necessário, neste momento de tanta sobreexcitação aos ditadores, que o que ele, com o seu partido, quer, é suprimir as opressões e não os homens do regime…”
O regicídio. As acusações contra o Partido Republicano
Infelizmente, seis dias depois, deu-se o choque trágico em que morreram, de um lado o rei e o príncipe real, do outro, três populares. De quem fui a culpa?Não vamos encarniçadamente para lutas sangrentas. A revolução que tudo anuncia para breve, tão necessária, até por decoro, ao saneamento da nossa vida política, não a fazemos só nós, republicanos, há-de fazê-la connosco, varonilmente, a nação inteira.
Sobrevém o cartel de guerra da ditadura e, com ele, o assassínio do negociante Braga e do estudante Arcanjo em 18 de Junho, no Rossio, em Lisboa: a corrente revolucionária cresce e precipita-se. E, desde que o despotismo do governo proíbe e impede toda a discussão e fiscalização dos seus excessos e abusos de poder, já não há nada que a detenha, e a obrigação imperiosa do Partido Republicano era então disciplinar essas forças de resistência e de luta. O Directório compreendeu-a e cumpriu-a.
Mas, lutamos sempre humanamente. Logo no advento de João Franco, receoso por ele, que era o autor da lei celerada de 13 de Fevereiro, eu, que mantinha ainda as minhas antigas relações particulares com ele, fui à estação do caminho-de-ferro em Coimbra dizer-lhe adeus, querendo assim significar por uma acto de evidência pública que o nosso combate aos adversários não devia nunca transformar-se em ataque pessoal contra ninguém. E, a respeito da pessoa do rei que disse eu, com apoio do partido? Já depois da Azambuja, disse:
Como havemos de implantar a República em Portugal? Devemos proclamá-la como outro dia a aclamamos-la em Loubet, sem violências, sem agravos a ninguém. Iam, lado a lado, um presidente da República e um chefe de monarquia e não injuriou o chefe da monarquia. É assim que intentamos a mudança de instituições.
E já D. Carlos marchava com João Franco para a reacção e eu fui ainda mais explícito:
Urge combater vivamente; mas não vamos combater, é claro, com injúrias, com violências. Não está isso no ânimo de nenhum de nós, não podia estar no meu. Para mim, a pátria é a grande família, e eu não corto nunca as minhas relações particulares por causa das minhas divergências políticas. Quero mesmo, eu, que fui ministro da nação e que tive, então, com o chefe de Estado relações pessoais, a liberdade, o direito pleno de o visitar amanhã, se alguma desgraça o ferir na sua família, sem despertar a suspeita de ninguém. É a minha soberania individual, de que não abdico.
E, quando o direito da ditadura chegou a atacar não só os nossos direitos políticos, mas também os nossos direitos civis, não deixando apelação sequer para os tribunais ordinários – através de todas as estimulações dos monárquicos governamentais, que zombetearam: então não se saem? dos monárquicos oposicionistas, que entranhavam; nem uma desfeita nas suas! – o Directório publicou a seguinte declaração categórica: “Drectório Republicano julga necessário, neste momento de tanta sobreexcitação aos ditadores, que o que ele, com o seu partido, quer, é suprimir as opressões e não os homens do regime…”
O regicídio. As acusações contra o Partido Republicano
Do Partido Republicano, que, enquanto pôde, aconselhou a paz, e, quando já não pôde defender-se pacificamente, condenou todo o atentado; ou da monarquia, que foi irreprimivelmente num crescendo furioso até ás violências colectivas e individuais? Havia desvairados de parte a parte, mas o Partido Republicano procurou sempre conter os seus, enquanto que a monarquia deu toda a força do poder aos dela; e bem mais desculpável era o arrebatamento liberal dos republicanos do que a cegueira despótica dos monárquicos. O que o Partido Republicano não podia, como, imediatamente à tragédia, notei, era: quando a ditadura suprimiu todas as liberdades, deixando só a liberdade ao ódio, no desespero a que tantos chegaram, dentro de uma atmosfera política asfixiante, não sendo lícito a ninguém falar, com um espião em toda a parte ao nosso lado, era obstar a que aparecessem dentro da sociedade portuguesa alguns iluminados que, assim como o presidente do conselho se tinha julgado com a missão de oprimir por meio de todas as violências, se julgassem, eles também, com a missão oposta de libertar, fosse como fosse, a sua pátria de toda a tirania. E o desvairamento do regime foi até final; a sua polícia, que não soube prevenir o regicídio, reprimiu-o ferozmente, juntando o crime ao crime.
Houve cúmplices do regicídio? Tudo indica que ele não foi premeditado. O que é verosímil, é que vários conspiradores se agrupassem para a luta contra o primeiro ministro, mais odioso ainda ao coração do povo do que o rei que pretendia cobri-lo com o seu manto, porque parecia apostado a atraiçoar a todos para não dividir por ninguém o poder. Houve mesmo quem pensasse que João Franco, depois de subjugar o Partido Republicano, sentindo-se com força não hesitaria em passar por cima do próprio paço. Quando se falava em ditador, quando o seu retrato vinha a público, o ditador era sempre João Franco. Porque foi que os conspiradores o não visaram? Ignora-se. Mas compreende-se como não tendo ainda sobre ele descarregado a sua cólera, perante o quadro de um rei, que, ao acabar de assinar a ameaça de morte civil aos seus adversários, entrava na cidade, de carruagem descoberta, glorioso do seu feito, ovante, como querendo passar por cima do corpo do povo que abatia; compreende-se como a alucinação se apoderasse subitamente de espíritos já em extremo escandecidos pela chama ardente da revolta. Tudo leva a crer que, sob essa impressão fulminante, o regicídio fosse ali mesmo, de golpe, decidido entre os seus dois autores, sem tempo para se concertarem com mais ninguém.
Há quem nos acuse de seus cúmplices? Quem? O paço? Os monárquicos que fizeram ou que atacaram a ditadura? Não sei o que seja mais repugnante. Pode acusar-nos a família real, que nunca teve uma palavra, um gesto de dó e ternura pelo povo, quando os pretorianos da monarquia do reinado passado o massacravam? Podem acusar-nos os áulicos, que espalhavam levianamente ou insolentemente as frases deprimentes para a sociedade portuguesa que, com verdade ou sem ela, atribuíam ao rei?
Pode acusar-nos o bando franquista que, depois de condenar formalmente como um crime a ditadura, completou a concentração de todos os poderes na pessoa do rei, e imaginando toda a força insurreccional do povo concentrada também nas pessoas dos seus caudilhos, proclamou, como se tratasse de uma luta pessoal: suprimam-se as cabeças e o Partido Republicano desaparecerá! O que excitava no espírito público um pensamento recíproco de represália! Acabe-se com o rei e os seus ministérios e a monarquia tombará por terra. Pode, finalmente, acusar-nos o bando clerical, que aplaudia e encarniçava o bando franquista?
Ou acusam-nos os monárquicos que não só lutavam connosco contra a ditadura, acompanhando-nos nas nossas mais frementes contra-manifestações nas ruas, mas conquanto alguns republicanos iam em romagem piedosa aos covais de Buíça e Costa, se mostravam, em grande número, despiedosos para com a memória do rei D. Carlos, esquecendo-se do que eles próprios, pela sua co-.participação na política do engrandecimento do poder real, tinham propiciado o advento da ditadura? A causa do regicídio foi a mesma da insurreição, foi a ditadura, foi a política do engrandecimento do poder real contra o engrandecimento do poder popular.
Essa causa é que era indispensável ferir, extirpar. E, já que não havia sido eliminada de raiz implantando-se a República, o que se tornava de momento impossível pelo estado de imobilizante comoção, de enervamento, em que o imprevisto do regicídio prostrou a sociedade portuguesa, paralisando tanto os vencidos na sua resistência como os vencedores na sua arremetida, a ponto que não só o ditador se expatriava e os seus colegas se hominizavam, mas também a tensão revolucionária do espírito público afrouxava, e até em alguns temperamentos mais emocionáveis se quebrava, como se no lance a liberdade ficasse radicada para sempre profundamente entre nós e nada mais houvesse a fazer, já que a ditadura não fora, repito, eliminada de raiz pela implantação da República, que, ao menos, viesse a sê-lo progressivamente, entrando-se com o novo reinado num regime deveras liberal. Foi o que o Partido Republicano conciliadoramente aconselhou à monarquia.
No novo reinado. O 5 de Abril. A restauração do passado
Logo após o regicídio, numa entrevista com Vieira Correia, eu declarei:
Pôde dizer que, sendo-nos restituídos os nossos correligionários e as nossas liberdades, naturalmente a acalmação se produzirá. Reservando prudentemente as nossas forças que devemos ir aumentando sempre, voltaremos a desenvolver a nossa propaganda; e, ainda que nos leve mais algum tempo a implantar a República, daremos por bem empregado esse tempo para que a nossa vitória se alcance pacificamente.
No mês seguinte, escrevi:
Apresente o governo às cortes um projecto de lei eleitoral com o sufrágio universal e com todas as garantias de voto e um projecto de autonomia local, sem governadores civis nem administradores de concelho. A opinião lhe dará força para os fazer aprovar. Creio. Presidia depois imparcialmente às eleições, tanto gerais como locais. E vamos todos juntos para o nosso parlamento cooperar pela pacificação e pela prosperidade da Pátria.
Mesmo acto contínuo à chacina do 5 de Abril, apesar de toda a nossa indignação, falando das eleições com o correspondente do Matin, afirmei:
Nós, republicanos, queremos a paz. Neste momento, depois de havermos envidado todas as diligências, inclusivamente junto do representante do governo, para se restabelecer a ordem na cidade, aconselhamos e continuamos aconselhando a máxima serenidade ao povo. Nada de represálias! Possuímos testemunhos bastantes para chegarmos a um inquérito rigoroso sobre os últimos acontecimentos e devemos realizá-los. O Partido Republicano pode assim cabalmente que não é só um partido de programa e defesa da liberdade, mas também um partido de ordem capaz, pela sua iniciativa e autoridade, de contribuir para comentar e assegurar a tranquilidade pública. Concluindo o inquérito, entregue-se aos nossos deputados, que, em breves dias, vão defrontar-se com a monarquia no parlamento, para que eles apresentem à execração nacional todos os governantes, do maior ou menor, que estejam manchados com o sangue do povo. À questão dos adiantamentos tem de juntar-se na próxima sessão a questão dos fuzilamentos. E será rija e ardente a luta, mas luta parlamentar.
E, pouco depois, discursando no Centro de Belém, eu formulava do seguinte modo a plataforma que estava no espírito do Partido Republicano e que o Directório adoptou e, em seu nome, o deputado Afonso Costa propôs à monarquia:
Faça a monarquia, se pode ainda, um esforço patriótico e decida, se pela liberdade e pela paz. Que lhe exigimos para acreditarmos nela? Para o Partido Republicano cooperar na oposição com o poder – embora em paz armada, porque não pode dar a sua confiança à monarquia – mas não lhe reclama sequer e os progressistas já tantas vezes prometeram, contentar-se-ía com o que os conservadores já fizeram. Elimine todas as leis de excepção, dê-nos a lei de imprensa de Barjona, a lei administrativa de Sampaio, e a lei eleitoral e a lei constitucional de Fontes, e acreditaremos na sua sinceridade. Em desafio, a monarquia que o faça!
Voltamos à nossa propaganda e à nossa campanha eleitoral. E fomos nós próprios que nos encarregamos de dissipar o pânico dos monárquicos, acoroçoando-nos a efectuarem sem vãs apreensões as suas cerimónias oficiais. O que isso custou! Não estavam em si. Referindo-me ao rei, eu escrevi logo em 29 de Março:
Essa criança que está no trono não tem culpa de ser rei. A mim ela inspira-me mesmo simpatia porque me lembra os filhos do povo com uma carga à cabeça demasiadamente pesada para a sua idade. E os meus sinceros votos são porque essa criança que assim começa tão cedo a trabalhar seriamente pelos outros, se eduque tão bem que, no dia em que reconheça que não pode ser um bom rei, se mostre um perfeito cidadão.
Palavras que os jornais estrangeiros reproduziram. Não duvidei estender mesmo estando além da extrema do meu partido os meus cuidados para ajudar o carinho de Ferreira do Amaral a sossegar a família real a cada passo alarmada pelos terrores policiais. E o facto é que nenhumas represálias se praticaram nem contra os nossos adversários mais culposos. João Franco pôde voltar à sua pátria e os seus colegas, que andavam a monte, puderam descer ao povoado. E que fez por sua parte a monarquia? Como correspondeu a todos estes convites e a todas estas provas de boa vontade do Partido Republicano? Como recebeu o nosso programa de acalmação? Passado o momento de liberalismo e de justiça – que eu logo disse: «Oxalá o futuro não tenha de atribuir só ao seu pânico» – não tem procurado senão restaurar o passado monárquico, que originou a insurreição e o regicídio, vingança dos republicanos, como se eles é que fossem os culpados da nossa intranquilidade.
A monarquia regressou, em tudo, ao regime sinistro da monarquia velha
Politicamente, manteve contra a nação todas as leis de excepção, com o cortejo de quase todos os decretos ditatoriais e tem nomeado e demitido ministérios, discricionariamente, adiado repetidamente e dissolvido já por duas vezes, em dois anos, o parlamento, sobretudo para calar, a voz dos deputados do povo, oprimindo acintosamente e irritantemente as franquias das corporações locais independentes, especialmente da câmara municipal republicana da capital e falsificando como nunca o recenseamento eleitoral para, por toda a parte, mas, sobretudo, em Lisboa e Porto, escamotear o voto das massas democráticas. Voltamos completamente à burla governativa. Economicamente, temos tido de tudo, para nosso mal: grandes deficits, empréstimos suspeitos, subsídios de favor, aumento de lista civil, indemnizações a estrangeiros, derrocada do Crédito Predial. Os nossos governantes perseguem, pois, na sua obra de espoliação pública e particular. Militarmente, a monarquia nova à chacina tremenda de Lisboa, acrescentou as suas façanhas da Fogueira, Lousã e Braga, três centros principais dos seus bandos reaccionários. E, religiosamente, os clericais têm inflamado ódios ferinos contra a democracia e o Partido Republicano.
O novo reinado levou a sua perseguição ao Partido Republicano até ao recesso das secretarias, dos bandos, das casernas e das igrejas, que têm procurado transformar em baluartes monárquicos. Ainda outro dia foi transferido um soldado por parar ao pé da minha casa! Da própria magistratura a monarquia nova tem querido fazer armas de guerra contra os nossos direitos! E há-de estar no trono o filho do rei ditador, pedindo e exigindo para a sua saudade o respeito senão mesmo o enternecimento de monárquicos e republicanos, e há-de a vingança do regicídio chegar reaccionariamente até à execração das famílias e dos filhos dos que mais sofreram com a ditadura? E hão-de estar dando leis ao país, na câmara dos pares os áulicos do rei ditador e, na câmara dos deputados, os colegas do primeiro ministro ditador e hão-de progressistas e regeneradores, que connosco combateram a ditadura, a ser abraçados por um ou por outro dos dois ramos dos ditadores, os republicanos que tiveram coragem de ir na vanguarda dessa luta hão-de ser anatematizados instaurando-se tendenciosamente contra eles o processo difamatório do regicídio! Chamam a isto a nação clerical: «Dar ao país e ao mundo a reparação devida pelo bom-nome da pátria à consciência universal.» Mas não pode ser!
Naturalmente, em presença da nova reacção monárquica, o estado de inquietação da sociedade portuguesa renasceu. É um facto. As mesmas causas produziram iguais efeitos. Só a monarquia é que o não vê! E, transida de susto acumula ao processo do regicídio o processo das associações secretas. A liga monárquica prega a delação e as repressões, o rei executa-a e aplaude, e o juízo de instrução criminal, fiel imagem inquisitorial do regime, engana, suborna, tortura e intriga. É a inquisição do novo reinado.
Todos sabem os novos tormentos que têm sido infligidos à liberdade e à vida dos cidadãos e das famílias. O processo das associações secretas é a ameaça da prisão incomunicável que representa para muitos a fome e desespero no seu lar, suspensa constantemente sobre a cabeça do povo republicano para lançar entre eles o pânico, para o exautorar, fazendo julgar dele pelos que desfalecem, e para abrir uma separação entre eles e os seus dirigentes.
O reinado passado quis tirar ao povo os caudilhos; este reinado novo quer tirar aos caudilhos o povo. Como se fosse possível! Nada é capaz de quebrar a solidariedade moral do Partido Republicano com os mártires da liberdade e as vítimas do despotismo. Nada! Já lho protestei no congresso republicano ultimamente celebrado no Porto, e venho aqui de propósito para lha protestar neste Centro tão pungentivamente afrontado em muitos dos seus consócios.
A monarquia nova regressou em tudo ao regime sinistro da monarquia velha. Não só não revogou a sua obra liberticida, mas fez pior: aplica rancorosamente as suas leis. Como terminará isto? A monarquia não tinha senão um único meio eficaz de se defender da revolta popular, era governar bem. Aconselhamo-lo logo no seu início. E, enquanto ela persistir, faremos sempre ressoar patrioticamente o mesmo conselho, como um remorso nos seus ouvidos.
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