terça-feira, 21 de dezembro de 2010










O PROJECTO PEDAGÓGICO DAS UNIVERSIDADES POPULARES NO PORTUGAL DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX. O EXEMPLO DA ACADEMIA DE ESTUDOS LIVRES

(Texto retirado da internet, com a devida vénia)

Joaquim Antônio de Sousa Pintassilgo
Centro de Investigação em Educação
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Eixo Temático 2: História da profissão docente e das instituições escolares

A presente comunicação decorre de uma pesquisa mais vasta, sobre o tema das Universidades Populares, realizada no âmbito de um projecto de cooperação luso-brasileiro, e insere-se numa mesa coordenada que pretende articular a história de instituições escolares, com os projectos de educação popular e as concepções relativas à profissão docente por elas difundidas. Usa-se, além disso, a imprensa de educação e ensino como fonte principal de pesquisa.
Nas décadas finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX o tema da educação popular entra na ordem do dia, associado à “descoberta” dos elevados índices de analfabetismo da população portuguesa e à assunção, por parte do republicanismo e da maçonaria, de um projecto alternativo de formação do cidadão, na sua luta pelo derrube da monarquia e pela construção da ambicionada sociedade “nova”.
Para o combate ao analfabetismo assistimos então à proliferação de iniciativas várias, ao mesmo tempo que surgem diversas instituições vocacionadas para a educação permanente de adultos, as quais assumem as designações de Universidades Livres ou Universidades Populares e que conhecem também alguma difusão no período. A presente comunicação pretende reflectir sobre a actividade de uma destas últimas instituições – a Academia de Estudos Livres. Pretendemos, fundamentalmente, delimitar o conteúdo do projecto de educação popular desenvolvido pela Academia.
Utilizaremos como fonte principal da pesquisa, no que se refere ao presente texto, uma das publicações da Academia - o periódico estudantil A Mocidade (1910-1911), depois de em trabalho anterior termos analisado a revista Anais da Academia de Estudos Livres – Universidade Popular (1912-1916) (Cf. PINTASSILGO, 2006). Ambas as publicações divulgam informações sobre a vida da instituição e as actividades aí desenvolvidas. As balizas cronológicas são as decorrentes do período abrangido pela publicação aqui analisada, ou seja, os anos de 1910-1911.

1. A Academia de Estudos Livres e a Escola Marquês de Pombal
A Academia de Estudos Livres foi fundada em 1889. A iniciativa pertenceu à Maçonaria, através da loja «Simpatia e União» de Lisboa. Os seus Estatutos originais foram aprovados por Alvará de 10 de Setembro de 1889. São aí assumidos como objectivos “desenvolver o gosto pelo estudo e pela ciência” e “proporcionar aos sócios o conhecimento das ciências”. Tendo em vista a sua consecução, são previstas as seguintes actividades:
A Academia promoverá conferências públicas sobre assuntos científicos e de interesse público; fará publicações, nomeadamente dessas conferências; manterá aulas, gabinete de leitura, biblioteca, gabinete de física, observatório, laboratório, museus; organizará uma oficina-escola que facilite aos investigadores os meios de trabalho mecânico e sirva também para a reparação dos instrumentos de estudo da Academia; facultará a quaisquer professores a abertura de cursos-livres e celebrará exposições. Em 1904, por via do Alvará de 24 de Junho, são aprovados novos Estatutos, os quais consignam a alteração da designação (através do acréscimo de um subtítulo) para Academia de Estudos Livres – Universidade Popular. Os objectivos e as actividades previstas mantêm-se, relativamente ao documento anterior. Uma alteração importante, datada desse mesmo ano de 1904, é a integração na Academia da preexistente Escola Marquês de Pombal, que passa a ser considerada, pelo Regulamento Geral da mesma escola, uma “Secção da Academia de Estudos Livres”, situada então no Alto do Pina (um bairro lisboeta). Alguns anos após, em artigo de uma das publicações da instituição, clarifica-se a história da escola:
Foi fundada em 1882 por um grupo de dedicados amigos da instrução, sócios da loja maçónica Razão Triunfante, que por essa forma quiseram concorrer para o derramamento da instrução popular e, ao mesmo tempo, prestar homenagem ao grande vulto da nossa história – o Marquês de Pombal... Inaugurou-se em 21 de Maio daquele ano na Portela de Sacavém, com o título de Escola Marquês de Pombal – Sebastião José de Carvalho e Melo.
Não deixa de ser curioso o facto de ambas as entidades serem de iniciativa maçónica. Os propósitos enunciados – e, em particular, “o derramamento da instrução popular” - são, de resto, coerentes com o contexto doutrinário em que a escola se insere, sendo igualmente significativo o nome da loja maçónica de onde ela emana – “razão triunfante”. A assunção do Marquês de Pombal como seu patrono é bem sintomática da incorporação desse vulto do absolutismo reformista – por via da sua política anti-jesuítica - na memória da nação, tal como é reconstruída pelo republicanismo, que se vai tornando a ideologia dominante nas lojas.
A escola começa a funcionar na Portela de Sacavém (arredores de Lisboa) com 40 crianças pobres de ambos os sexos e uma professora, sendo transferida em 1899 para o já referido Alto do Pina. Em 1904, “quando se dissolveu o Grande Oriente de Portugal, em que estava filiada a loja maçónica Razão Triunfante, que ainda tinha a escola sob a sua protecção”, desenvolveram-se, então, negociações entre os dirigentes de ambas as instituições que concluíram com a integração da escola na Academia, aprovada nas respectivas assembleias gerais (8 e 9 de Setembro). O Regulamento Geral, então aprovado, anexa igualmente ao título a expressão «Aulas gratuitas para crianças pobres», especificando que se pretende “ministrar nesta Secção o ensino primário (1º e 2º grau), gratuito para crianças pobres de ambos os sexos, dos 6 aos 12 anos de idade”, para além de promover “conferências e outros trabalhos educativos”. A instituição compromete-se, ainda, a distribuir “livros e outros auxílios a alunos órfãos e de pobreza manifestamente reconhecida”. As preocupações com a educação popular e o filantropismo típico da maçonaria são uma presença visível.
O Regulamento Geral em apreciação define as aulas como “diurnas” e manifesta, ainda, a preocupação com a necessidade de uma definição clara do tempo escolar, tanto no que se refere ao calendário – fixado entre Outubro e Agosto – como ao horário quotidiano,
entre as 9h e as 16h, entrecortado por intervalos de 10m ao fim de cada hora, “para descanso dos alunos”, e de uma paragem de 30m para uma refeição. As aulas funcionariam “em todos os dias não declarados feriados”, sendo “as disciplinas a ministrar... as dos programas primários oficiais”. Fica claro que a educação popular a fomentar pelo movimento associativo de inspiração maçónica tem como referência o modelo escolar de educação então em fase de implementação, designadamente no que se refere às coordenadas espaciais e temporais do mesmo, já impregnadas de pressupostos de natureza pedagógica. Não é, por isso, de estranhar que se pretenda submeter os alunos a mecanismos de vigilância e de controlo disciplinar típicos do modelo escolar:
Os alunos só podem ser admitidos nas aulas, apresentando-se decentes e limpos; devem respeitar os professores, conservar as suas carteiras e artigos de estudo em estado de irrepreensível asseio, não danificar estes nem os móveis da Secção, não se ausentar sem licença dos professores, não cometer faltas, as quais em todo o caso deverão sempre justificar com bilhete ou carta dos pais ou tutores, frequentar com assiduidade as aulas nos dias e horas que lhes forem marcados, apresentar-se nas aulas munidos dos livros e de todos os artigos indicados pelos professores.
É bem visível, neste articulado, a presença de um projecto de integração social e de moralização dos costumes das crianças pobres a que a escola se destina. A limpeza pessoal, o cuidado com os materiais escolares, o respeito pelos professores, a assiduidade, são comportamentos incentivados e o não cumprimento das regras – sob a forma de “mau comportamento, falta de assiduidade ou de aplicação” - penalizado.
O regulamento define, também, os principais rituais que deveriam pontuar a vida da instituição, em particular a sessão solene comemorativa do aniversário da fundação da escola (21 de Maio) e a “sessão solene de distribuição de prémios por ocasião da abertura das aulas”. Dos prémios farão ainda parte o “quadro de honra” e os “diplomas de mérito”, algo que será posteriormente alvo de contestação. Abre-se, finalmente, a possibilidade, em articulação com a Academia, da criação de “aulas nocturnas para adultos”, uma opção que marcará decisivamente a actividade de ambas as instituições, dentro do espírito de universidade popular que passa a caracterizar a Academia9.
Em 1908 a escola é transferida para a nova sede da Academia na Rua da Paz (bairro de São Bento), passando a dispor de melhores condições de funcionamento e de um acompanhamento mais próximo por parte da direcção da mesma. De 40 crianças e uma professora naquele ano10, passou-se, no ano lectivo de 1910/1911, a que nos iremos principalmente reportar, para 137 alunos matriculados (distribuídos por 4 classes) e 4 professoras, apoiadas ainda por um professor de ginástica e por um professor de música e canto, isto só na Escola Marquês de Pombal, porque a Academia de Estudos Livres possuia ainda 326 alunos nas aulas nocturnas, tanto ao nível da instrução primária, como nas disciplinas então oferecidas: português, francês, inglês, desenho, matemática elementar, matemática financeira, economia política, contabilidade, taquigrafia, rudimentos de música, piano, violino, harmonia e curso livre de música, para além de um curso de admissão à Escola Normal.
Como vimos, o ano de 1904 ficou assinalado pela incorporação de uma escola do ensino primário particular – que passará a ter grande visibilidade no conjunto das suas actividades - e pela assunção do seu carácter de universidade popular – de que os cursos nocturnos são uma das suas marcas -, uma das primeiras, de resto, a aparecer em Portugal, à semelhança do que acontecia desde os últimos anos do século XIX também em França. Esta dicotomia enriquece-a, mas transporta também consigo alguma ambiguidade, como ulteriores discussões em assembleia geral se encarregarão de demonstrar.
No cumprimento da sua vocação a Academia de Estudos Livres vai, então, desenvolver diversas actividades na área da vulgarização científica e cultural, as mais características das universidades populares, delas sendo exemplos a realização de cursos livres, conferências, visitas de estudo, etc. Em relação aos primeiros, surgem noticiados em 1910-1911, entre outros, os seguintes temas: «História Universal» (Agostinho Fortes), «História Social e Política da Península Ibérica» (José Augusto Coelho) e «Os Lusíadas» (Barbosa de Bettencourt). As conferências foram em grande número, destacando-se as seguintes: «Literatura portuguesa no século XIX» (Fidelino de Figueiredo), «A educação na futura democracia» (Fidelino de Figueiredo), «Porque precisamos saber Física» (Almeida Lima), «O que deve ser uma educação moderna» (Reis Santos), «O céu
português – lições de astronomia» (Pedro José da Cunha) e «Unificação de Itália» (Agostinho Fortes). Para além da relevância dos temas ligados à História e à Literatura portuguesas, por razões que se prendem com formação cultural de cariz patriótico pretendida pelos sectores republicanos, sublinhe-se a presença dos temas científicos, em conformidade com a ideia, muito presente nos meios ligados à educação popular, de que é possível levar esses conhecimentos até ao povo.
As visitas de estudo e excursões constituíam uma das actividades mais acarinhadas pela Academia. Nesse ano foram visitados, entre outros, os locais a seguir indicados: a cidade de Tomar, o Mosteiro dos Jerónimos, o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu Nacional dos Coches, o Aqueduto das Águas Livres, uma Fábrica de Chocolate, a Vila de Sintra (numa visita guiada por um arquitecto muito ligado às construções escolares - Adães Bermudes), a Torre de Belém, A Figueira da Foz e o Buçaco (neste caso uma excursão no Verão) e a Estação Elevatória de Água dos Barbadinhos. A Academia – como, de resto, todos as escolas da época que afirmam fazer “educação moderna” – é fortemente marcada pelo seu carácter excursionista. As saídas são muito frequentes e tanto têm como objectivo a visita a monumentos e museus – tendo em vista o aproveitamento das potencialidades educativos que lhe estão subjacentes -, a fábricas, para um contacto in loco com a realidade social, ao campo ou à praia, na procura dos benefícios decorrentes de uma relação mais próxima com a natureza e dos exercícios físicos a ela inerentes.
Foram, igualmente, realizados vários concertos de música clássica, para além de concertos com o Quarteto Silveira Pais, o professor de música na Academia. Encontramos aqui espelhada, de novo, a crença na possibilidade de popularizar uma arte e uma cultura consideradas, à partida, como de carácter erudito e dirigidas a um público mais elitista. O quotidiano da Academia e da sua escola era, ainda, pontuado pela realização de festividades diversas, de que são exemplo a festa de aniversário da escola, a festa evocativa do aniversário da morte de Camões (10 de Junho) ou a Festa da Árvore, para além de outros eventos comemorativos, como o relativo à unificação italiana ou o cortejo aos Jerónimos em homenagem a Alexandre Herculano.

2. A Mocidade e a Educação do Povo
A Mocidade inicia a sua publicação no dia 15 de Julho de 1910, apresentando-se como folha quinzenal, periodicidade que, em geral, vai conseguir manter, se exceptuarmos o período de férias lectivas. Originalmente surge como sendo propriedade de um Núcleo de Instrução da Academia de Estudos Livres. O primeiro Director é Abel Ôteda, então estudante da Academia. O derradeiro número – o n.º 20 - está datado de 8 de Julho de 1911 e com ele se afirma completar “a 2.ª série e o 1º ano de A Mocidade”12. Na verdade, não voltou a conhecer a luz do dia. A publicação cobre praticamente um ano, coincidindo, em boa medida, com as actividades relativas ao ano lectivo de 1910/1911. Esse é, inquestionavelmente, um ano de enorme riqueza do ponto de vista do contexto político. A fase inicial de publicação de A Mocidade acompanha os três últimos meses de vida da monarquia constitucional portuguesa. O n.º 4 do jornal – que se segue à uma paragem de quase dois meses, parcialmente coincidente com as férias escolares – tem a data de 10 de Outubro de 1910, ou seja, cinco dias após a revolução republicana do 5 de Outubro. Esse e, particularmente, o número seguinte contêm, de resto, amplas referências à República, efusivamente saudada, o que dá conta do ambiente político que se vivia no interior da Academia. Todo o restante período de publicação acompanha a fase inicial – uma fase de grande vitalidade – do novo regime.
A Mocidade é, na realidade, “um jornal de estudantes” (como se apresenta no número inicial) e é isso mesmo que então apregoa - “A Mocidade vai falar: têm a palavra os alunos da Academia de Estudos Livres”. Conta, no entanto, com a visível cumplicidade da direcção da mesma, dentro do espírito do self-government (ou «autonomia dos escolares», como preferia Adolfo Lima) que então começa a difundir-se nos sectores pedagógicos ligados à Educação Nova. Isso é reconhecido pelos seus responsáveis: “A Mocidade tem condições de longa vida, porque a protege a direcção desta casa”. Passa a ser distribuído a todos os sócios e subscritores da Academia e compromete-se a publicar “por acordo com a direcção, todos os avisos oficiais das excursões, visitas, conferências e outros trabalhos da Academia, assim como dará nota do movimento das aulas, biblioteca, etc.”. Essas informações relativas ao quotidiano da instituição vão preencher, de facto, uma parte substancial do conteúdo do jornal, o que o torna (a par de uma periodicidade que se mantém regular) uma fonte inestimável para o conhecimento da sua actividade. O facto de ser produzido pelos estudantes da Academia acrescenta-lhe um tom de irreverência juvenil, sem nunca assumir a forma de crítica às opções da direcção. Muito pelo contrário, aquela “casa” (como é referida a certa altura) e os seus directores são sempre tratados com algum carinho, que dá conta da assunção dos valores subjacentes à identidade institucional.
No n.º 12 de A Mocidade insere-se uma Circular da Direcção da Academia, subscrita pelos seus membros de então – entre eles, Sá Oliveira e Cardoso Gonçalves – apelando à sua assinatura e dando conta de uma ligeira alteração do estatuto da publicação, ao afirmar-se que a “sua propriedade pertence a esta associação”. A Mocidade acaba por assumir, em termos práticos, o papel de órgão da Academia e da sua escola, papel esse que, mais tarde, passará a ser desempenhado pelos Anais da Academia de Estudos Livres (1912-1916). A finalidade pretendida por via da cumplicidade que directores e professores mantêm face à publicação é claramente assumida: “O fim que visamos é proporcionar aos alunos da Academia, que são os redactores do pequeno jornal, um meio prático de se educarem e de estudarem... Consideramo-lo, repetimos, do mais alto alcance educativo”. O discurso dos estudantes afina pelo mesmo diapasão: “nós, os que fazemos este pequeno jornal, levamos em mira, trabalhando nele, a nossa própria educação... Todos temos, entrando nesta casa, um desejo único: instruirmo-nos, educarmo-nos”16.
Para além desse propósito de auto-formação, diríamos hoje, a grande finalidade que está subjacente à publicação – e à actividade da Academia em geral – é a da “educação do povo”. Esse desiderato é proclamado de forma veemente:
A cidade já está capaz de compreender os seus deveres cívicos? Pois bem! Abalemos para essas aldeias e para essas serras a espalhar a boa nova. Demos aos camponeses a instrução de que tanto precisam. Vamos, aos domingos, até os mais ínfimos lugarejos e assentemos arraiais nos adros das suas igrejas... Ali, perante o numeroso auditório atraído pela curiosidade, ensinemos as mais singelas verdades da ciência e as suas aplicações vulgares. No Inverno, pelas noites tempestuosas, reunamos essa rude gente em qualquer celeiro e, com uma simples lanterna de projecções, recreemos-lhes o espírito, educando-lhe o cérebro... Estas missões científicas e patrióticas... trariam sempre palavras de paz e falariam de coisas úteis, de verdades conquistadas pelos verdadeiros amigos do povo, os sábios... Trabalhemos pela educação do povo!
A anterior citação é particularmente interessante em vários sentidos, a começar pelo proselitismo que a caracteriza. Aquilo a que os jovens redactores de A Mocidade se propõem é uma verdadeira ida ao povo. Este surge como “rude gente”, carente de formação cívica. A difusão da instrução e da educação, na terminologia da época, é “a boa nova” que importa espalhar por todo o lado. Assumindo-se como detentores do saber – qual vanguarda esclarecida -, aos estudantes competia “dar” ao povo a instrução que eles estariam necessitados. As “verdades da ciência” são claramente sacralizadas, acreditando-se na possibilidade da sua vulgarização, bem como os seus cultores, os “sábios”, considerados os “verdadeiros amigos do povo”. Esta é, sem dúvida, uma concepção que atribui aos intelectuais o protagonismo maior no processo de educação popular – concepção esta que está, em geral, subjacente ao projecto das universidades populares – e que acredita nas virtualidades formativas da ciência e da cultura letrada e na possibilidade da sua popularização. É nessa linha que se pode compreender a importância de estratégias como a organização de conferências eruditas sobre história e literatura ou a realização de concertos de música clássica. O apelo final a essa elite esclarecida é mobilizador: “Trabalhemos pela educação do povo”!
A concepção atrás referenciada surge também de forma clara num contexto em que um grupo de alunos da Academia – a partir da iniciativa dos responsáveis pelo jornal – decidem convidar os professores ligados à Sociedade de Estudos Pedagógicos -que se reúnem habitualmente nas próprias instalações da Academia – para realizarem um conjunto de conferências e cursos livres sobre assuntos de ciência e de arte, “imitando nisso o que fazem os professores franceses nas Universidades Populares de Paris”. Esta referência é sintomática do facto de serem as Universidades Populares francesas que servem de referência à tentativa de aproximação da Academia de Estudos Livres em relação a esse paradigma. A justificação dessa proposta – tendo por base “a indispensável aproximação de intelectuais e trabalhadores” - é, ainda, mais esclarecedora sobre os pressupostos que lhe estão subjacentes: “É preciso arrancar ao seu isolamento os cultores da Ciência e da Arte. Venham até ao povo e iniciem-no nos estudos, que há séculos eram feudo das classes privilegiadas. Pela Ciência e pela Arte! É a divisa da Academia de Estudos Livres”.
No entanto, curiosamente, as referências a essa entidade mítica que é o povo caracterizam-se por alguma ambivalência. Por um lado, o povo é valorizado, idealizado mesmo, como quando se elogia a “inquebrantável ordem” manifestada nos “grandes cortejos apoteóticos”, que seria uma clara “manifestação de qualidades, de tendências fundamentais, que distinguem o povo português como uma verdadeira raça”. O novo contexto republicano terá, até, despoletado, segundo o autor do artigo «O Povo»:
[uma] fase interessante da vida da nossa gente, dando ao mundo civilizado tantas admiráveis lições de civismo, aceitando todas as indicações dos dirigentes, praticando até sem resistência e sem má vontade – caso raro em gente ignorante! – as regras de higiene aconselhadas pelos médicos – como se deu há poucos dias nesse infecto bairro de Alfama, aquando da epidemia pestífera. Qualidades positivas são estas, que caracterizam um grande povo, uma inconfundível raça.
Esta citação é particularmente curiosa por conter em si, simultaneamente, os elementos de valorização e desvalorização do povo, que dá “admiráveis lições de civismo” ao “mundo civilizado” – ainda que a partir das indicações dos dirigentes, acolhidas sem “resistência” nem “má vontade” -, mas, por outro lado, é retratado como “gente ignorante” (ou “rude gente”) que habita um “infecto bairro”. O paradoxo relativamente ao “grande povo” e à “inconfundível raça” da retórica final – bem típica duma época que sacraliza, no âmbito do discurso patriótico, a entidade raça - é por demais evidente. Mas outros “vícios” – a par das reclamadas virtudes - são apontados ao povo português. “Uma das suas péssimas tendências é - o pedir... Pedir? Mendigar? Degradante situação para um Homem”. A interpretação desse defeito vem bem na linha do discurso produzido sobre as chamadas causas da decadência dos povos peninsulares a partir da Geração de 70 (e, em particular, de Antero): “Junte-se o bom freire, o torvo inquisidor e o jesuíta manhoso – e ter-se-á encontrado a razão porque Portugal se abandalhou – perdida a integridade do carácter”. A solução é, igualmente, coerente com o optimismo pedagógico que caracteriza o período: “A tamanho mal encontramos só um remédio – educar o povo até à compreensão da dignidade do trabalho”.
É bem um projecto global de moralização dos costumes e de mudança de mentalidades que está subjacente aos discursos impressos em A Mocidade e que tem em vista a construção do “homem novo”, preparado para a vida na recém instaurada República. Para isso é necessário vencer, primeiro que tudo, “o monstro – a ignorância popular”.

Referências:
PINTASSILGO, J. (2006). Imprensa de educação e ensino, universidades populares e renovação pedagógica. Comunicação apresentada ao 6º Congresso Luso-brasileiro de História da Educação – Percursos e desafios da pesquisa e do ensino de História da Educação. Uberlândia – Minas Gerais – Brasil. 17 a 20 de Abril de 2006.












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