sexta-feira, 29 de outubro de 2010



Transcrevemos, com a devida vénia, o texto do Professor Doutor Amadeu Carvalho Homem, retirado do blogue "Livre e Humano":


BERNARDINO MACHADO, INIMIGO DAS DITADURAS

Bernardino Luís Machado Guimarães foi o mais completo exemplo do homem civilizado, do político patriota e do pedagogo incansável. Ficou lendária a sua bonomia e esmeradíssima educação. A sua eloquente chapelada tanto saudava o Par do Reino como o mais obscuro cavador de enxada. No decurso de um longo exercício de vida pública, nem uma só vez curvou a vontade da sua razão à força bruta das ditaduras. Deixou ao seu país, como professor universitário, uma obra distinta e memorável.

Nascido no Brasil no seio de uma família aristocrática, ingressaria na Universidade de Coimbra em 1866, depois de ter feito os estudos preliminares no Porto. A sua geração académica sucederia imediatamente à de Antero de Quental e Teófilo Braga, assumindo a responsabilidade, com os seus condiscípulos e colegas desse tempo, de render a mais célebre tertúlia estudantil alguma vez acolhida pela serena cidade do Mondego.

A primeira parte da sua vida iria ser inteiramente dedicada à causa da educação. Doutorou-se em Filosofia Natural cerca de dez anos após o ingresso na Universidade, defendendo a tese Dedução das leis dos pequenos movimentos periódicos da força elástica. Passado algum tempo, vemo-lo, como lente catedrático de Filosofia, completamente devotado às tarefas da investigação e do ensino. O seu método científico diferiu saudavelmente, pela prática de um experimentalismo excepcional, da tradição retórica e medievalizante que se instalara na Universidade, mesmo em Faculdades que pretendiam cultivar saberes de exactidão. O Partido Regenerador fê-lo deputado. A sua voz ergueu-se na câmara baixa do Parlamento para tratar dos mais variados aspectos concernentes à instrução pública. Pugnou pela organização do Conselho Superior da Instrução Pública e conseguiu que ele fosse criado; reivindicou para Portugal um Ministério da Instrução Pública, que chegou a existir, embora efemeramente; impulsionou a Academia de Estudos Livres e contribuiu para a pôr ao serviço daqueles que não tinham podido fazer estudos superiores com regularidade. A devoção de Bernardino Machado a tão meritórias causas foi reconhecida quando os seus colegas catedráticos o elegeram, em 1890, Par do Reino, como representante da Universidade.
Mas 1890 foi o ano do Ultimato. Os seus efeitos contribuíram para arrefecer muitas dedicações monárquicas e há todas as razões para supor que Bernardino Machado não tenha escapado a tal erosão de crenças. Era ele encarado, pela vox populi de então, como um homem íntegro e de impecável reputação, repartindo entre as exigências da profissão e o lar feliz, ninho de uma numerosa prole, o melhor dos seus talentos e afeições. Quando se constituiu, em 1893, o gabinete regenerador chefiado por Hintze Ribeiro, tendo João Franco na pasta do Reino, Bernardino Machado foi chamado para as Obras Públicas. A sua probidade, a honradez da sua imagem, associada à boa reputação de Augusto Fuschini, davam a tal elenco governativo o desejado lustre de equilíbrio e de moderação liberal. Porém, os sequazes do cesarismo régio viriam a conseguir que o ministério inflectisse para uma recomposição de sentido autoritário, a qual se consumou quando Bernardino e Fuschini foram sumariamente derribados. Bernardino Machado retirou do episódio as devidas consequências, abandonando o Partido Regenerador. Voltou à sua Universidade para fazer singrar os estudos de Antropologia, cadeira por si planeada, e para criar nela um maravilhoso museu antropológico. As convulsões e controvérsias em que os partidos monárquicos continuaram a perseverar, bem como a reiterada desorientação das mais diversas instituições do regime, levaram Bernardino Machado a aderir de alma e coração ao Partido Republicano. Nos primeiros anos do século XX iremos vê-lo como uma das figuras cimeiras do Directório republicano e até como um dos seus mais escutados mentores ideológicos.

Em 1907 estala a crise académica em Coimbra, após a reprovação por unanimidade do candidato ao grau de doutoramento José Eugénio Ferreira, que dedicara a sua tese a Teófilo Braga, malquisto no Paço das Escolas pelo seu positivismo teórico, pela crítica que deixara escrita na História da Universidade de Coimbra e pela sua militância revolucionária. Os estudantes declararam a greve académica e João Franco irá responder com o encerramento da Universidade e com o levantamento de processos aos chefes estudantis, seguidos de numerosas sentenças de expulsão. A resposta de Bernardino Machado aos acontecimentos foi das mais eloquentes. Declarou que se excluía do magistério universitário e que só a ele regressaria quando todos os réus fossem declarados inocentes. A partir deste momento, a sua acção funde-se inteiramente com os visos do republicanismo português.
A segunda parte da vida de Bernardino Machado inicia-se, em nosso entender, com a revolução de 5 de Outubro de 1910. Teófilo Braga ocupara o lugar de presidente do governo provisório da República, mas era forçoso que fosse votado subsequentemente um Presidente para gerir, ao mais alto nível, os destinos do novo regime. Teófilo Braga e Afonso Costa, este último chefe do chamado Partido Democrático, bateram-se pela eleição de Bernardino Machado. António José de Almeida e Brito Camacho, temerosos da força dos “democráticos”, fundiram-se num “bloco” e conseguiram o triunfo eleitoral de Manuel de Arriaga. Este desaire não interrompeu a sua vida política. Ele será o nosso primeiro embaixador junto do governo brasileiro. Em 1914, pretendendo obter-se alguma acalmia entre as forças partidárias existentes, Bernardino passou a chefiar um governo de conotação menos rígida, ao qual competiu a primeira reacção às enormes repercussões que a primeira grande guerra desencadeou no contexto europeu e no plano nacional. Mas seria no plano da reacção às vertigens ditatoriais anti-republicanas que Bernardino alcançaria o seu protagonismo mais notável. Assim, agirá energicamente em 1915 contra a ditadura de Pimenta de Castro, patrocinada por Manuel de Arriaga, vindo e rendê-lo na mais alta magistratura da Nação, em Agosto desse mesmo ano. Seria deposto em Dezembro de 1917 por Sidónio Pais, trânsfuga da República e traidor confesso dos ideias que num passado próximo dissera abraçar. Bernardino Machado jamais aceitou esta usurpação de funções, vendo nela uma simples violência anti-constitucional. Considerou-se o verdadeiro e único Presidente da República, mesmo contra a opinião e a prática de outros republicanos mais transigentes. Por isso, quando voltou ao cargo, em Dezembro de 1925, na continuidade da renúncia de tais funções pelo presidente Manuel Teixeira Gomes, Bernardino Machado considerou que Portugal regressava finalmente ao veio da normalidade constitucional, finalmente reposta. Será novamente privado do seu cargo pela revolução militarista de 28 de Maio de 1926. Transigiu então em entregar o poder ao capitão-de-mar-e-guerra Mendes Cabeçada, porque o tinha na conta de sincero republicano e o julgava capaz de repor, tão rapidamente quanto possível, a autenticidade cívica, ética e política do regime. Mesmo no exílio, não perdeu uma oportunidade para mover à ditadura militar e depois ao Estado Novo salazarista a mais irredutível resistência. Ao morrer em 1944, em Portugal, mas com residência fixa e vida pessoal rigorosamente vigiada pela polícia política, o país talvez não tenha sabido que se finava um dos mais dignos lutadores pela Liberdade e pela Democracia. É indispensável que isto hoje seja sabido e sublinhado. Tiremos o nosso chapéu à memória de Bernardino Machado, com a mesma cortesia com que ele saudava os portugueses do seu tempo, fossem eles quem fossem, do médico ao trolha, do professor ao agricultor, do carpinteiro ao funcionário público.



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