quinta-feira, 12 de agosto de 2010



O Dr. Amadeu Gonçalves, ilustre investigador e meu querido Amigo, transcreveu hoje no seu blogue literatura&filosofia(http://www.litfil.blogspot.com/) - um texto de Teixeira de Pascoaes, retirado do jornal "O Mundo", de 3 de Janeiro de 1905, que gentilmente me dedica. Desconhecia o artigo, que também para mim foi uma grande surpresa! Um apertado abraço de gratidão, Dr. Amadeu!




A "ORAÇÃO INAUGURAL"
DE
BERNARDINO MACHADO

Estava eu bastante doente quando a Oração Inaugural de Bernardino Machado, obra sublime de Verdade e de Justiça, deslumbrou a nocturna «Sala dos Capelos». Foi a primeira luz que se fez naquela espessa penumbra moral e intelectual. Há pouco tempo ainda consegui ler essas páginas imortais, onde vibra vitoriosamente um hino de amor e de esperança e onde transparece, num esplendor de glória, uma alma rara e puríssima de Eleito. Que admiração estupenda ampliou a minha alma! Que gratidão infinita eu senti por esse espírito heróico que concebeu tal discurso libertador! Que o concebeu e recitou com a firmeza inabalável e férrea serenidade de que apenas são capazes os que acreditam no que dizem. Bernardino Machado é um sincero e um crente. Em todos os seus livros preciosos e discursos extraordinários, a frase é simples como a sinceridade e firme como a Fé. Por isso ele arrebata e converte, e tão rapidamente fez sentir ao povo que nele existia a vontade realizadora das mais justas e legítimas aspirações populares. E assim é.
Nunca vi este homem perfeito percorrer uma rua, sem que os olhos dos transeuntes o não seguissem, comovidos. Quantas vezes o encontrei no meio de crianças esfarrapadas que lhe sorriem e de mendigos e de mendigos que o abençoavam! Em Coimbra, principalmente toda a gente pobre e trabalhadora o estremece. Bernardino Machado é um ar saudável e benfazejo para aquelas almas oprimidas e sufocadas. Entra nos casebres miseráveis como um raio de luz num subterrâneo, e aparece do meio das multidões ansiosas e revolucionárias, como uma força orientadora e imperecível. Não representa só uma aspiração política, mas também uma aspiração religiosa. Não é apenas o cidadão modelo, é um Homem. Não vive somente dentro das fronteiras portuguesas; vive também na humanidade. Não se apresenta apenas nos comícios a pugnar pelo ressurgimento da nossa raça, aparece também nas choupanas dos famintos e oprimidos a aliviar desventuras e desgraças. Bernardino Machado é o Raciocínio e o Sentimento. A Oração de Sapiência, deste ano, é o discurso meditado e sentido que se ouviu na Sala dos Capelos. Foi o primeiro sorriso de fraternidade dirigido por um mestre aos estudantes, e a primeira palavra anunciadora dum ensino moderno, livre e verdadeiro que será o factor primacial da salvação do País; mas foi, também, consequentemente, uma palavra destruidora. Ele abalou em todos os seus fundamentos, o velho e o jesuítico convento universitário. Destruiu o velho tempo para edificar o novo Templo. Por isso, a oração de Bernardino Machado é um verdadeiro facto histórico, duma importância enorme. É a única página bela da nossa História, nestes últimos tempos.
Já fui, infelizmente, estudante, de direito; vivi durante cinco anos naquela inquisitorial e miasmática atmosfera da Universidade, envenenadora de almas. Ouvi muitas Orações de Sapiência. Eram sermões fúnebres e sonolentos, cheirando a velhos latins da igreja, cobertos de teias de aranha de arqueológicas teorias, todas sujas do pó de ideias que morreram há muito, tresandando à terra infecta das prisões do Santo Ofício, que nos deixavam a nós, estudantes uma impressão, uma impressão terrível de asfixia, que nos causavam náuseas e enjoos intelectuais, como se nossos espíritos vogassem sobre encapeladas ondas de estupidez. Que diferença entre essas e roufenhas ladainhas e a oração do dr. Bernardino Machado! Verdadeira oração da religião moderna! Religião da Vida que há-de dar aos corpos a beleza da saúde e da força e as almas a perdição moral que reside na suprema Justiça. O sublime discurso de Bernardino Machado é um canto aureoral de Amor e de Liberdade que inundou a alma da oprimida mocidade portuguesa de radiosa esperança num futuro melhor.
Bernardino Machado, ao subir à cátedra, na Sala dos Capelos, devia ter causado aos estudantes a impressão de um sol que se levanta! E as sombras negras, sinistramente sentadas nas cadeiras doutorais, gelaram concerteza de pânico, ante a invasão súbita da Luz. Luz que não acalentou simplesmente a alma da mocidade portuguesa, mas também a de todos os portugueses que ainda são puros e inteligentes e que trabalham na formação dum novo Portugal honrado e livre. Refiro-me ao povo sofredor, que tem numa mão o cabo da enxada e na outra o Futuro. O povo é a única parte sã da nossa sociedade. Só ele poderá florir e frutificar. É terra inculta e virgem, a vida de sentir germinar no seu seio glorificando a semente do Ideal. O resto é podridão e esterilidade. As nossas chamadas classes preponderantes agonizam num charco de criminoso egoísmo e da estupidez, sem uma crença, sem uma ideia. E são elas que, apoiadas na força bruta das espingardas, tentam perder um Povo e assassinar uma Pátria! Desgraçado País, este, submetido a um regime criminoso e horrendo, que, há pouco tempo ainda, se definiu claramente, condenando a inocência, em Olhão, e tentando, no Porto, massacrar o Génio. É um regime que não se limita a atentar contra a riqueza material da Nação. O criminoso quer ir mais longe na prática de seus crimes. Quer assassinar o Espírito, esse fantasma que o aterroriza! Quer rastejar no lodo infecto, sem nada que o incomode. Puro engano! Pura ilusão! O pântano há-de ser enxuto, o foco pestilento há-de ser destruído. As palavras redentoras de Bernardino Machado, heróico obreiro, da nossa regeneração, que nova energia, que novo vigor insuflaram em todas as almas que esperam ver este morto Portugal quebrar a tampa do túmulo e ressurgir à luz bendita da Liberdade e da Justiça! Eis o motivo porque essas palavras são sagradas e divinas, são imorredoiras, e merecem o nosso eterno reconhecimento. Bernardino Machado é um dos grandes portugueses que mais merece o amor e a gratidão do Povo.

Teixeira de Pascoaes

3 comentários:

Amadeu Gonçalves disse...

Exmo Sr. Dr. Sá Marques: um exagero da sua parte quando me denomina "ilustre investigador" - declaro-me sempre um curioso e um simples aprendiz, partilhando as minhas descobertas! E partilhá-las consigo é um prazer inolvidável. Um abraço fraternal de amizade.

Amadeu Gonçalves disse...

Dr. Sá Marques: o texto de Pascoaes foi publicado no "Mundo" a 3 e não a 5!!! Ups!!! Peço desculpa. Abraço

Manuel disse...

Dr. ASmadeu e querido Amigo:
Ivestigador que não deixa escapar nada...
Obrigado! Está sempre atento...
Abraço cordial
Manuel Sá Marques