domingo, 1 de dezembro de 2013






Dr. Amadeu Gonçalves
Adicionar legenda



Com a devida vénia, transcrevemos o artigo do Dr. Amadeu Gonçalves - A "Nova Alvorada": O espírito comemorativo republicano (1891-1899) -  escrito no Boletim Cultural - Vila Nova de Famalicão - 6/7 - III - 2010/2012




A “NOVA ALVORADA”:
O ESPÍRITO COMEMORATIVO REPUBLICANO
(1891-1899)
Por Amadeu Gonçalves

É uma visão de combate por uma certa visão do nosso Passado, eivada de certas ilusões do século, mas atravessada por um intenso e nobre fervor patriótico, orientado para o Futuro.
           Eduardo Lourenço

A faceta do espírito comemorativo esteve bem presente, por um lado, não só na organização do Partido Republicano nas estruturas locais, como também, por outro lado, na propaganda efectiva dos seus ideais pela imprensa, seja na política ou na de ordem cultural, visando, acima de tudo, a elevação moral e cívica da sociedade portuguesa. Se o espírito comemorativo republicano tem o seu início com o IV Centenário de Os Lusíadas (1880), e em outras celebrações posteriores nos finais do século XIX, no nosso caso concreto, a revista famalicense vai precisamente incorporar esta genuína faceta de propaganda republicana para, nas palavras de Eduardo Lourenço, entronizar “no espírito colectivo esta ideia, sã e útil entre todas, de que o autêntico amor da Pátria e da Liberdade não só se opõem, como se confundem.” Aqui está bem patente a noção hegeliana do espírito do povo – Volksgeist – na qual a pessoa, nas suas características ontológicas, não é absorvida por esse mesmo espírito colectivo, mas que o assimila, partindo do princípio que tenha uma participação naquilo que a ultrapassa, a exprime e a define: a família, a cultura e o povo, estando bem patente a noção de liberdade pessoal.
Assim sendo, as estruturas locais do Partido Republicano não fugiram a este duplo ideal: a comemoração das figuras gradas não só da comunidade, no nosso caso em particular a famalicense, como também de âmbito nacional e internacional. Quando em Novembro de 1909 Bernardino Machado vem a V. N. de Famalicão proferir a conferência no Centro Republicano (e com o seu próprio nome) com o título Têm Liberdade os Monárquicos em Portugal?[1], (em 14 de Novembro) foi, precisamente, um acto não só de propaganda política, como igualmente para os republicanos famalicenses homenagearem o republicano conterrâneo Manuel Dias Gonçalves Cerejeira (1871-1899) – avô de Armando Bacelar. Cerejeira, conhecido não só como republicano, mas igualmente como poeta (Cinzas, 1896), teve sempre uma intensa actividade política em favor do ideal republicano, quer em Braga como estudante liceal, em Coimbra como estudante universitário e em Famalicão. Em Braga, começou a escrever nos jornais académicos A Pátria e Canto Académico, fundando a Alma Nova, de combate anti-monárquico e anti-jesuítico, redigindo-o até à sua ida para Coimbra. Nesta cidade foi um dos fundadores do Cenáculo, promovendo a homenagem a José Falcão com a publicação da Cartilha do Povo (editada na Tipografia Minerva e com uma subscrição pública em Famalicão), tendo sido ainda em Coimbra um dos redactores do jornal Portugal. Em Famalicão escreveu no jornal O Porvir, de Sousa Fernandes, o órgão do Partido Republicano famalicense, a sua mais do que famosa coluna Palavras Vermelhas (continuada com o mesmo título por dois republicanos, Américo de Castro e Nuno Simões).
Aliás, Fernandes, na abertura da sessão na homenagem a Cerejeira (segundo o Estrela do Minho de 21 de Novembro de 1909), pronuncia as seguintes palavras, melhor, as seguintes ideias: “Acentua a importância dos Centros Democráticos de propaganda e instrução. Organizando naquela vila um desses núcleos, criava-se uma obra cuja utilidade não beneficiava apenas o Partido Republicano, visto que ele concorria também para a instrução e a educação cívica do povo.” E mais à frente: “Faz depois a apologia do credo republicano e afirma a necessidade de instruir e de educar o povo, pelo jornal, pelo livro e pela conferência.”
Nesta perspectiva, os republicanos famalicenses de 1891 apostaram na divulgação das ideias republicanas através do discurso cultural, sendo o seu veículo paradigmático a revista. Não sem incidentes de percurso: como foi com o texto de Antero de Quental Três Épocas Religiosas[2], suscitando tal artigo uma Explicação[3] da redacção aos editoriais do jornal portuense A Palavra, estando para este jornal a Nova Alvorada no índex sagrado porque atentava contra os princípios da Igreja, levantava um sistema ímpio, pregava a rebelião dos homens e a dissolução da sociedade, maçonizando-se.
A nova mentalidade festiva era, então assim explicada por A. P. Magalhães e Almeida num texto com o título Os Centenários Perante a Filosofia:
A História, é certo, já não é, como durante longo tempo foi considerada até ao primeiro quartel do século que se vai findar uma mera resenha dos factos curiosos, ou uma série de milagres dos homens. A teoria dos grandes homens (Carlyle, Emerson) já deixou de construir um critério científico e hoje a História é uma série de factos naturais ligados uns aos outros pela lei da causalidade, cuja expressão sociológica é a lei da filiação histórica, formulada pela intuição genial de A. Comte[4].

Esta lei da filiação histórica comtiana proclama que o ser humano deve procurar leis e não causas, já que todos os fenómenos, e cito Comte “se subordinam a leis naturais invariáveis cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível são o fim de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente inacessível e vazia de sentido, para nós, a investigação daquilo a que se chama causas, tanto primeiras como finais.”
A revista famalicense, com o subtítulo “revista mensal, litteraria e scientifica”, e com alguma indecisão titular no início (o n.º 1 chegou a ter três edições, retomando o título da primeira revista famalicense literária A Alvorada (1885-1887), fundada por Joaquim de Azuaga, então chefe da estação em Famalicão), vai congregar à sua volta ilustres colaboradores, socialistas e republicanos, nomeadamente Teófilo Braga, Raul Brandão, Trindade Coelho, João de Deus, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Joaquim de Araújo, entre tantos outros, nacionais e internacionais, caso de Tommazzo Cannizzaro, ou de Wilhelm Storck, os quais traduziriam para italiano e sueco alguns autores e/ou escritores famalicenses, caso de Júlio Brandão. Dos famalicenses republicanos destaca-se inquestionavelmente Sousa Fernandes e Sebastião de Carvalho, Eduardo de Carvalho (que esteve quase a ser Ministro da Justiça no governo de Bernardino Machado em 1914, conferindo-lhe os republicanos em 1920 o Grau de Grande Oficial de S. Tiago de Espada por causa dos seus trabalhos jurídicos), Júlio Brandão (José Ribeiro e Castro convidou-o para ministro, declinando, contudo, o convite em 1915), etc. Mesmo um monárquico como José de Azevedo e Menezes, figura grada da comunidade famalicense, pontificava na revista com os seus estudos genealógicos e camilianos.
No editorial da revista (n.º 1) podemos ler, a dado passo, o seguinte:
Pelos costumes e pelas ideias, pelo esclarecimento da razão e justa moralidade das aspirações, pelo sentimento do justo aplicado a tudo e a todos – por estes agentes de ordem e civilização é que mais fácil e eficazmente se pode preparar o espírito do povo para deliberar as reformas do seu organismo social e aplicar ao seu meio as instituições que mais o engrandeçam e melhor penhor de felicidade lhe sejam.

Neste contexto, para além do espírito do povo hegeliano, e não sem uma indicação subtil ao utilitarismo de Stuart Mill, um desses paradigmas para a renovação social e mental será o espírito comemorativo. A revista famalicense vai imprimir ao longo dos seus anos de existência essa mesma realidade (a qual será retomada no pós-25 de Abril em Famalicão com o Ciclo de Homenagens[5] a ilustres figuras famalicenses, caso de Bernardino Machado, Daniel Rodrigues, Bernardo Pindela, Armando Bacelar, Lino Lima, Nuno Simões, Sousa Fernandes ou Alberto Sampaio, e mesmo Ana Plácido, para não falarmos do sempre homenageado Camilo, o qual congregou ao longo dos anos monárquicos e republicanos, assim como o próprio Estado Novo, ou, mais recentemente, o Ciclo Gentes da Terra) à volta de personalidades, perante os seus respectivos acontecimentos históricos, não só portuguesas, como também estrangeiras: Camilo (no primeiro aniversário do seu falecimento), Oliveira Martins (que por razões desconhecidas não teve um número propriamente especial, apesar de ter sido noticiado, após o seu falecimento, aparecendo os textos do referido n.º quase um ano depois, mais propriamente nos números de Março, Abril e Maio de 1895), Jules Michelet (Centenário de Nascimento), Vasco da Gama (IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia), o Infante D. Henrique (V Centenário de Nascimento) e que será retomado nas comemorações henriquinas do Estado Novo, não passando despercebido em Famalicão, Latino Coelho, Antero de Quental, o poeta-filósofo na designação da revista (uma referência constante)[6], Sousa Martins, ou Santo António (o qual também não ficou indiferente em 1895 em Famalicão. Também encontramos na revista algumas notícias das figuras republicanas que então iam desaparecendo, caso de Reis Dâmaso, perdendo o Partido Republicano, segundo a revista, “um convicto e entusiasta correligionário” e habitual colaborador até então (1895).
Nesta perspectiva, não será sem alguma ingenuidade inicial perante as estruturas governamentais monárquicas locais os dizeres de Fernandes, quando nos diz que “a revista não tratará de política, na acanhada e fútil significação desta palavra; não envolverá nas questões de interesses partidárias em que se esterilizem os melhores dos nossos homens. / A sua missão mira apenas a esteira uminosa por onde outros dos seus colegas se têm alçado à invejável posição de serem prestáveis à instrução pública e à literatura pátria.” De facto, pelo que já temos visto, alguma ingenuidade, mas não assim tão ignorante! De facto, logo no início do editorial surge uma referência indirecta ao Ultimatum e ao 31 de Janeiro e, paralelamente, a um conteúdo programático para a regeneração da sociedade portuguesa:
Na hora angustiosa porque a pátria atravessa, gemendo simultaneamente sob o peso afrontoso da vilania estrangeira e sob os erros acumulados dos seus governos imprevidentes; neste momento histórico de sombrias apreensões para a gloriosa nação portuguesa, ainda há pouco nobilitada por tantos e extraordinários heroísmos e felicitada por tantas e ditosas conquistas de progresso, forçoso é que os seus filhos menos egoístas e mais patriotas não deslembrem a justa nação do dever e colaborar na medida das suas forças para a regeneração da sua nacionalidade, trazendo á reforma dos costumes e ao aperfeiçoamento da instrução o contingente mais ou menos valioso de que possam dispor.

O espírito do povo entre a liberdade pessoal e a pátria, enquanto identidade colectiva, poderá ser visto igualmente no primeiro número comemorativo da revista, dedicado a Camilo, num texto assinado pela Redacção, entenda-se Fernandes, onde lemos que “o povo que assim guarda e zela o seu glorioso património, nem é indigno duma existência livre e independente nem se deixa espoliar dos seus vínculos nacionais com a fraqueza dos povos corroídos pelo vício e insensibilizados pelo egoísmo, baldes de brio e abatidos de ânimo”[7]. Conclui Fernandes com o número que então a Nova Alvorada publicou, perante o acolhimento da ideia e da colaboração dos escritores que teve, foram estes factos que deram a “justa medida do espírito da nacionalidade que ainda nos anima e da religião que ainda professamos pelas grandes individualidades da nossa pátria.”
Só falta saber se, de facto, Portugal se cumpriu pela instrução e pela educação, tendo como veículo de divulgação a imprensa, o livro e a conferência.

Amadeu Gonçalves

 [1] In Pela Republica: 1908-1909 – II. Lisboa: Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1910, pp. 673-697. Não deixa de ser curioso, que o próprio Bernardino Machado acaba por realçar alguns famalicenses e políticos nacionais que se então destacaram, todos convivendo na Casa da Vila, em “recepções e banquetes políticos em casa de meus pais”. Cito: “Já houve em Portugal uma monarquia liberal. Aqui em Vila Nova de Famalicão, pulsou já fortemente a vida pública. Tínhamos oradores populares. Neste concelho houve um de impressionante eloquência natural, Narciso dos Carvalhais, tio do célebre poeta brasileiro, Casimiro de Abreu. Estou a vê-lo passar fogosamente à testa dum magote de manifestantes, que soltavam vivas, e Júlio Dinis, que se achava doente, a ares, neste mesmo edifício, onde era então a estalagem da Eugénia, a boa Eugénia, vindo à janela e dando com ele, puxar pela carteira e pelo lápis e pôr-se a desenhar-lhe a figura cortante e o gesto intrépido, marcial. Nesse tempo os deputados davam conta do seu mandato aos eleitores. Aqui veio repetidamente dar-lhes em recepções e banquetes políticos em casa de meus pais Joaquim Januário de Sousa Torres e Almeida, notável parlamentar, por todos então indigitado para ministro na primeira situação do seu partido, que, duma dessas vezes, fui, dias depois, encontrar no Bom Jesus do Monte a descansar das lides oratórias, lendo a História da Filosofia em Portugal do Dr. Lopes Graça e a Poesia do Direito do Dr. Teófilo Braga […] / Que saudades eu tenho desse tempo! A minha casa era um centro de actividade política. Nela fiz a minha iniciação, sob os auspícios do nosso querido Torres, de Castelões, que logo prognosticou generosamente que eu havia de ser ministro, enganando-se só com a pasta. Raro era o dia em que eu não ouvisse meu pai dizer para minha mãe: «Manda por mais um talher à mesa!» E não esqueço nunca que era ela, minha mãe, quem, com a sua nobre figura, parecia querer comentar ternamente a política liberal de meu pai, indo ela mesma abrir a porta ao pobres para lhes dar, com a esmola a carinhosa consolação das suas palavras.” (pp. 695-697).
[2] In Nova Alvorada, Ano 2, n.º 1 (1 Abr. 1892), pp. 117-118.
[3] In Nova Alvorada, Ano 2, n.º 2 (1 Maio 1892), pp. 127-128.
[4] … o espectáculo suscita naturalmente ao espírito esta pergunta: qual a causa deste facto? Qual a significação filosófica destas festas? Qual o motivo, secreto e íntimo, que determina este entusiasmo? Qual a revolução da consciência humana que traduz esta manifestação tão expressiva, da emotividade? […] A inteligência humana vai tendo, felizmente, cada vez mais clara, no espírito como na natureza: o presente é a derivação lógica, a consequência necessária do passado, e uma grande dívida, por saldar, de sentimentos, de pensamentos, de interesses, nos prende aos homens de ontem, factores irrefragáveis dos acontecimentos de hoje […] A velha fase da psicologia está prestes a findar. Os símbolos poéticos  que o génio místico das religiões e da metafísica fundiu com tanto amor e tanta arte, caíram por terra quebrados, desfeitos em pó… […] A estrutura do tipo moral e mental, legado pelos nossos passados, por efeito da força dissolvente em si próprio contida, foi-se, pouco a pouco, degenerando; e, na nova fase de psicologia, um dos estados mais acentuadamente definidos, é o que provém da substituição das velhas fórmulas tradicionais, quiméricas, sem significação, derivadas do símbolo católico, e referindo a marcha da humanidade a causas hiper-físicas, a entidades sobrenaturais, ao acaso, à Providência, pelas fórmulas positivas, precisas, de um novo simbolismo em que o homem, contemplando o progresso do mais alto, num golpe de vista mais profundo, relaciona a obra da civilização com os próprios esforços humanos, consagrando a humanidade mesma na pessoa dos seus representantes que mais a enobreceram e honraram (In Nova Alvorada, Ano 2, n.º 8, 12 Out. 1892, pp. 189-190).
[5] “Segunda República: o ciclo das homenagens”, In Uma Aproximação Aos Autores Famalicenses: catálogo da Exposição. Coord., Invest. e textos Artur Sá da Costa, Amadeu Gonçalves. V. N. de Famalicão: Câmara Municipal, Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco, 1998, pp. 97-116.
[6] A Nova Alvorada foi por vezes honrada com a colaboração do egrégio poeta que tão tragicamente vem de desaparecer de entre nós; ela aqui verte uma lágrima da mais profunda saudade pelo ilustre companheiro que os fados adversos prostraram a meio caminho da sua gloriosa jornada, assumindo desde já o compromisso de honrar-lhe condignamente a memória, consagrando-lhe o seu próximo número (In Nova Alvorada, Ano 1, n.º 6, 1 Out. 1891, p. 60; Ano 1, n.º 7, 1 Nov. 1897
[7] Podem os povos materialmente mais ricos e poderosos do que nós vangloriarem-se da sua fortuna, desdenharem da nossa pequenez a ferida pela sua grandeza atentarem insolentemente contra o nosso património e contra a nossa independência. / Que esses povos se pavoneiem e abusem muito embora da sua efémera fortuna para salvaguarda da autonomia e glória da nacionalidade portuguesa basta 0o zelo que consagramos ao inventário das nossas honrosas tradições e o culto que dispensamos aos nossos grandes homens, aos compatrícios ilustres que enaltecem a nossa pátria (In Nova Alvorada, Ano 1, n.º 2, 1 Jun. 1891, p. 24).










Sem comentários: